Delfir examina atentamente os ferimentos de seu companheiro de patrulha: A orelha esquerda, que parecia ter sido em grande parte arrancada pela mordida de um animal robusto – sua melhor aposta era um urso, embora nesse caso fora uma proeza Kiran ter sobrevivido a um embate chegado a esse ponto –, estava além de seus cuidados, mas vê que pode fazer algo para estancar o sangue de sua mutilada coxa direita, que aparentava que deixaria de jorrar para a neve cada vez mais enegrecida somente quando pouco mais houvesse o que fluir dali. Aquilo pedia um pedaço de tecido para servir de torniquete; uma tira de suas vestes serviria, embora sua grossura e sujeira fizessem com que não fosse o objeto mais adequado... Bem, mas era com o que no momento podia contar. Já começava a rasgar uma de suas mangas quando, no entanto, lembrou-se que naquele momento, na verdade, podia contar com mais: A fita da sorte de Kiran ainda estava lá, fielmente atada a seu escudo. Provavelmente mais limpa que as vestes negras de qualquer um dos dois – e de espessura adequada –, Delfir tinha poucas dúvidas de que ela fosse uma candidata mais próxima do ideal. A pensar que ainda a pouco estava refletindo justamente sobre ela. Um sorriso, tênue como seria, teria sido esboçado pelos lábios de Delfir, não fosse o fato de a gravidade da situação ainda tensioná-lo de modo a não se permitir a quaisquer momentos de bom humor, por menores que fossem.
A fita cumpriu seu papel de estancar o sangue; Kiran não se debilitaria mais por aquilo, pelo menos. Ainda assim, estava ciente de que não era muita coisa. Mas o fato é que, quanto mais pensava sobre aquilo, mais certo estava de que, ali, não havia mais o que fazer. Em Torre Sombria, seria diferente; recursos mais apropriados, irmãos mais experientes como curandeiros do que Delfir... Se pelo menos Kiran resistisse – mais que isso, despertasse –, após aquela tempestade passar era para lá que rumariam, e mesmo antes da existência de alguma tempestade ou de um patrulheiro mutilado, a propósito. Estavam inclusive atrasados; se aquele patrulhamento tivesse ocorrido de acordo com os moldes da previsibilidade, bem poderiam já estar abrigados naquele castelo, e não ainda em busca da casinhola de madeira. As palavras de Qhorim ressoam mais uma vez em sua mente, agora com um requinte de ironia cruel, como se a natureza tivesse ao longo deste dia se empenhado para ridicularizar o patrulheiro: "O tempo vai estar firme, não creio que irá fazer muito frio. Temos uma boa oportunidade aqui."
Mas, pelo que vê de Kiran, parecia haver algo mais perigoso que aquele horrível tempo intencionando desgraçá-los. Será que Qhorim e os outros dois patrulheiros também foram atacados por algo semelhante? Com uma preocupação crescente, recorda-se dos últimos dizeres de Kiran... "Eles" e "Mortos no gelo" sobressaem-se. Seriam "eles" os "mortos no gelo"? Provável. Então, quem seriam os mortos? Delfir, com um aperto no coração, compreende que, pelo fato de Kiran ter se referido aos seres através de um pronome, deveria supor que Delfir soubesse a resposta, e ele temia que de fato soubesse. Qhorim e os novatos! Seria isso? A coisa que atacou Kiran – que, até onde sabia, podia bem ser o detentor dos olhos azuis que há pouco o observavam com interesse – também atacou – e, pior, matou – os demais patrulheiros? Não... Estava sendo muito precipitado; não pode garantir que foi isso que Kiran tentou dizer. Talvez "eles", na verdade, se referissem aos "selvagens", o motivo por que essa patrulha estava sendo feita. Os selvagens, que, quando não conformados com suas comunidades tribais, costumeiramente tentavam atravessar Garganta no intuito de contornar a Muralha, haviam inexplicavelmente desaparecido daquela região – e, pelo que era reportado pelos outros dois castelos ativos da Patrulha, de suas regiões também. Talvez Kiran tenha encontrado alguns selvagens, que estariam mortos no gelo... Mas, apesar de ser uma explicação mais cômoda, era menos crível; até ontem, nada indicava que encontrariam apenas um selvagem que fosse, quem diria um grupo durante uma nevasca, e que ainda estaria morto no gelo por um terceiro elemento... E, agora que pensava sobre isso, na primeira conclusão, os selvagens poderiam ser os responsáveis pela morte dos patrulheiros, não havendo necessidade desse terceiro elemento – mas onde aqueles olhos azuis entrariam, então, naquilo tudo. Talvez simplesmente não entrariam; talvez nunca sequer tivessem existido. Fora tudo tão breve que podia creditá-los como impressão sua... De fato, isso também lhe seria muito cômodo, e... Bem, se o ser de olhos azuis tivesse sido o causador dos "mortos no gelo", então não só seria imperativo haver mais de um como também um motivo para aquele não ter atacado Delfir e o já moribundo companheiro, o que tornava essa hipótese a mais improvável de todas, para seu alívio... Mas seja o que fosse, uma coisa era certa: Um humanoide capaz de portar uma lâmina – que no momento, provavelmente, era uma espada curta – fizera aquele ferimento na coxa de Kiran; Delfir já vira muitos ferimentos semelhantes para negar a origem desse, por mais conveniente que lhe fosse. Mas, de modo a deixar as coisas mais misteriosas – ao invés de menos –, aquilo contradizia com seu ferimento na orelha, que parecia ter sido trabalho de uma mordida; não era preciso ser um patrulheiro experiente para saber que Para-lá-da-Muralha não existia nenhum selvagem cujas mandíbulas se rivalizassem com as de um urso, e tampouco tivera a oportunidade de conhecer um patrulheiro tão feroz. Poucos foram os dias de serviço na patrulha – talvez, nenhum – que transcorreram sob uma sucessão de acontecimentos tão improváveis ou misteriosos como aqueles, e, para seu desagrado, pressentia que aquele onirismo pesadelar ainda não atingira o máximo de si.
Delfir, porém, pode prever com muita acurácia o próximo patamar de desgraça que aconteceria aos dois caso permanecessem ali: Morte por hipotermia. Kiran, vamos, acorde! Não deixaria o patrulheiro abandonado a própria sorte; isso já decidira mesmo antes de saber se realmente podia fazer algo por seus ferimentos. Nesse caso, porém, sua única opção era permanecer ali: Sentia-se debilitado demais para carregá-lo; o fato de Kiran ser um patrulheiro mais robusto e pesado do que Delfir contribuía para essa impotência – certamente –, mas, ainda que carregasse uma criança, também era provável que seu avanço em direção ao abrigo lentificasse-se mais, além do fato de que, se não conseguisse colocá-lo a suas costas, necessitaria prescindir também do apoio de sua espada ao caminhar na neve, que por tantas vezes já evitara quedas.
Felizmente, sua espera não foi em vão. Após o que lhe pareceu uma eternidade de torturas pelo frio e vento incessante, o alívio cresce ao ver Kiran despertar; um alívio logo também convertido na comedida euforia por saber que tanto as vidas sua como a dele ainda não estavam entregues à natureza implacável. No entanto, o patrulheiro portava feições calmas, senão apáticas; era quase como se o prazer de ter mais tempo para viver lhe escapasse. Delfir sabia, contudo, que isso era um mecanismo de defesa que se podia esperar de alguém que fora abatido por experiências tão desagradáveis como as que passou. Fora o Meistre Halthes que o ensinara isso; ainda se lembrava do momento, uma tarde de seus dez ou talvez onze anos, enquanto ele lhe explicava os padrões do comportamento humano ante a situações de risco... Mas não era hora para pensar em Halthes; agora que Kiran estava desperto, não era, na verdade, hora para pensar em nada que não envolvesse a sobrevivência dos dois.
Kiran levanta-se com morosidade, e a ajuda de Delfir. Com ele apoiando-se em seu ombro – não obstante todo o vigor e estoicidade que o patrulheiro em outras situações demostraria –, os dois iniciam um resto de jornada silencioso até o abrigo. Delfir se perguntava se o que ocorrera a Kiran foi intenso o suficiente para que os deuses permitissem que sobrevivesse como uma lembrança. Mas as perguntas a fazer eram tantas que ele estava esperançoso de que, ainda que Kiran tivesse se esquecido do ou dos confrontos por que passou naquele dia, ainda encontraria a resposta para algumas, como o motivo de ele ter se afastado do local onde dormiam sem o seu conhecimento, e para onde foi após isso. Mas Delfir, que esperava que o companheiro, em algum momento da caminhada, revelasse-lhe então isso – ou qualquer coisa de que se lembrava, ou ao menos perguntasse, confuso, o que havia acontecido se não se lembrasse de coisa alguma –, decepcionou-se com o silêncio que imperou. Em um ponto do percurso suspeitou, frustrado mas reconhecendo certo exagero, que voltar à tarefa mental de contar seus passos seria mais interessante do que a até então expectativa mental pelo que o amigo l(o...o...o...o)go lhe diria. Ele simplesmente ainda está abalado demais para falar qualquer coisa; precisa de um tempo para organizar seus pensamentos... Convenceu-se por fim. De todo modo, não tomava por bem pressioná-lo, principalmente após esse estranho silêncio que já se instaurara.
Felizmente, não houve novos incidentes até a chegada ao abrigo, embora a nevasca – para Delfir, uma das mais desagradáveis incidências que poderia ter ocorrido durante aquele patrulhamento que já não seria mais de um dia e meio – persistisse, afincada em sua tarefa de fatigá-los mais e mais. Desde que partiu com Kiran, não demorou muito para que localizasse, a partir do formato e disposição das rochas circundantes, uma trilha que, margeando o despenhadeiro acima de Guadeleite, levava diretamente ao abrigo. Muito pouco antes de a noite chegar, os pinheiros que ladeavam o lado oposto ao despenhadeiro adensaram-se de modo a Delfir ter segurança de que o bosque no centro de que situava-se a casa de madeira estava muito próximo. E, de fato, após continuarem seguindo a trilha por uma curva que afastava-se do despenhadeiro, os patrulheiro avistaram-no e, por fim, adentraram-no.
Seu represeiro, como esperado, continuava lá, como a árvore mais proeminente do bosque, o que, naturalmente, condizia com o desejo dos deuses da floresta. Deuses aos que tenho de agradecer por terem salvado Kiran. Estava certo de que foram eles que fizeram seu companheiro despertar; que salvaram, assim, os dois da morte pela neve e sob a desolação. Ele ainda os agradeceria por isso, com toda a certeza; mas, primeiro, precisava guarnecer-se com Kiran na casa de madeira até a tempestade acabar. Uma casa que, também como o esperado, continuava ao lado do represeiro. Porém... Nesse momento, com luzes acesas em seu interior, pelo que via por uma abertura na parte inferior de sua porta. Delfir tinha a impressão de que uma ou mais das respostas que tanto esperava serem ditas por seu companheiro poderiam ser descobertas quando abrisse aquela porta, para o seu bem, ou para o seu mal.
Kiran continuava apático, alheio ao ambiente em torno e, ao que aparentava, profundamente imerso em devaneios que Delfir julgava que não fosse sábio interromper com perguntas sobre quem eram "eles" ou sobre suas lembranças de ter visto alguma criatura de olhos bem azuis... Mesmo assim, julgava que seria ainda menos sábio entrar naquela casa sem saber se encontraria um anfitrião ou um algoz quando podia ter a oportunidade de o saber; considerava, logo, válida tal tentativa para certificar-se de que o que estava lá dentro não seria outra das surpresas indesejadas do dia. Em adição – e assumindo, na pior das hipóteses, que independentemente disso fosse morrer –, queria pelo menos que seu amigo lhe falasse alguma coisa pela última vez – qual seria o sentido de tê-lo salvo, se assim não fosse e ele também viesse a ser morto por quem estivesse lá dentro?
— Kiran, me escute, o que aconteceu com você hoje... Você sabe quem pode estar lá dentro? Ou quem não pode estar?
Inevitavelmente pensou Qhorim e nos dois patrulheiros novatos ao fazer a última pergunta, desejando, em todo o seu íntimo, estar enganado. Poderiam ser precisamente eles que estavam lá dentro, e se perguntando, sob ironia da reciprocidade, se ele e Kiran não estariam mortos, pela que está sendo uma inesperada demora para chegarem.
Poderiam também ser selvagens, mas essa possibilidade não o atemorizava tanto quanto o atemorizaria em outras circunstâncias; sim, se aquele fosse o caso estaria diante de uma ameaça em potencial, mas, assim como a nevasca o debilitou, provavelmente fez o mesmo a eles, pelo que mesmo os mais bárbaros não poderiam ter sequer interesse pelo conflito – e quanto aos menos... Bem, se dependesse de Delfir, ele não via nenhuma razão para atacá-los apenas pelo fato de estarem a procura de um abrigo para se protegerem da tempestade, e sua experiência como patrulheiro lhe indicava que a mentalidade de selvagens mais pacíficos era similar, a despeito de sua cultura mais primitiva. Além disso, se fosse esse o caso e os selvagens também, por alguma extrema improbabilidade que aquele dia ainda reservava, fossem-lhe simpáticos, poderia até mesmo saber o motivo do desaparecimento dos demais.
Por fim, uma última possibilidade que lhe vinha em mente... Não, não queria pensar na criatura de olhos azuis. Ela, para começar, não poderia passar de um momentâneo delírio que aquela tempestade lhe provocou...