A MONTANHA

– Será que foi um pesadelo? – David se perguntou, quando alisou o pescoço e não encontrou nada. Por mais que desejasse que fosse, ele sabia que havia sido tudo real. Ele ainda estremecia só de relembrar do toque frio de Joseph e do seu sentimento de fragilidade. David não compreendera o que o guia pretendia com aquilo tudo - a mordida, a conversa sobre matar os hóspedes, a batalha e o jogo -, mas isso eram só mais algumas gotas no meio de um mar de dúvidas. Ele tampouco entendera como ficara tão inerte e invulnerável diante da presença do homem. – Talvez ele tenha me dopado com algo? – Supôs, mas não recordava de nada que pudesse evidenciar sua suspeita. 

Além do painel de controle e de uma mesa de madeira, a cabine onde se encontrava estava vazia. Ele fitou a escuridão da noite pela abertura por onde vinha o bonde, se perguntando quanto tempo ficara desacordado ali. Até onde sabia, poderia facilmente ter se passado algumas horas ou vários dias. O vento soprou pela abertura e invadiu o ambiente, levantando poeira e  beijando as bochechas de David. Era uma sensação estranha; ele sentiu o frio, mas seu corpo não recuou e nem estremeceu. 

Mas ele sentia fome. Se tivesse trago toda a bagagem e não só a mochila, poderia agora estar comendo uma das barrinhas de cereais que trouxera. Mas ele deixara a mala com a mulher simpática e agora se arrependia disso. Na mochila que trouxera estava só a câmera fotográfica que tanto o acompanhava. Ele amava o que fazia, no entanto. Poder, através de cliques, registrar momentos especiais para eternidade era um de seus fascínios. Era como mágica. Por isso, o que iniciou-se como um hobby, logo evoluiu para se tornar uma de suas paixões e sua profissão. Infelizmente o mundo real era menos mágico do que seus sonhos de adolescência podiam supor, mas ele nunca se arrependera de tê-los seguido.

Na Montanha, ele esperava poder registrar a bela paisagem através de suas lentes. Era em momentos como esse que ele se sentia mais livre e contente. Todos os problemas, brigas e perdas eram esquecidos e ele não tinha mais nada para se preocupar além do que estava sendo capturado pela sua lente. Quando pegou a câmera nas mãos - como muitas vezes já fizera -, sentiu uma sensação estranha. Uma energia parecia emanar do objeto e ele recuou, guardando-o novamente. – Tem certeza de que não é um pesadelo? – David se perguntou, novamente. Ele nunca sentira algo assim antes e logo chegou a conclusão de que aquele era o dia mais estranho de sua vida.

Chacoalhou os pensamentos e se pôs de pé, colocando a mochila nas costas. Estava na hora de sair dali. Estava na hora de agir. Sair às cegas na noite poderia ser perigoso, é verdade, mas também o era em plena luz do dia. Ele não tinha muitas escolhas. Os hóspedes corriam perigo com aquele lunático do Joseph por aí. Só Deus podia saber o que aquele homem pretendia. David então foi até a mesa de madeira e ergueu-a até uma altura considerável, antes de jogá-la no chão com toda sua força. Com sorte, ela se quebraria e ele conseguiria um pedaço que pudesse usar como um porrete. Não seria uma grande arma, mas seria algo. Mataria Joseph com ela, se necessário, antes que o homem pudesse fazer qualquer coisa com ele novamente.

Na porta da pequena sala, David fitou o terreno do lado de fora se recordando do caminho que fizera para chegar até esta cabine. Seguiria por ele até a outra estação, onde iria decidir os seu próximos passos.

A mesa de madeira se partiu em pedaços quando encontrou o chão, fazendo lascas voarem e um ruído de madeira se quebrando ecoarem pela pequena cabine. David comprimiu os lábios quando notou que a madeira estava apodrecida. – Que droga. – Pensou. Mesmo assim, ele pegou um dos pés da velha mesa - aquele que julgou ser o mais firme - e ensaiou golpes no ar, sentindo o peso do objeto bem como sua praticidade. Não era o que ele queria, mas teria de servir para suas necessidades. 

Pôs-se então a caminhar em direção a única porta de saída, com a mochila nas costas e o pedaço de madeira em umas das mãos. Ele deu uma última olhada no ambiente vazio e deteriorado daquela cabine. Tentou imaginar a quanto tempo ela estaria assim, abandonada e jogada as traças. Não deixou, também, de se perguntar se aquelas paredes desgastadas já haviam presenciado anteriormente outros 'episódios' como o de Joseph - ele sequer podia denominar com exatidão o que havia sido aquele fatídico acontecimento. – Ou seria eu, o primeiro e único infeliz? – Indagou. Das paredes não vieram nenhuma resposta e, particularmente, ele não sabia qual seria a pior. 

Deu então os primeiros passos pela neve, deixando a cabine e seus segredos para trás, focando sua atenção para o cenário a sua frente. Ele tentou procurar ao longe a floresta indicada anteriormente por Joseph, por onde os outros hóspedes seguiriam para a tal casa. A essa altura, ele não duvidava que toda a história fosse uma mentira. Só Deus poderia saber onde estava os hóspedes do bonde que sumiu e só Ele poderia ajudá-los. Mas quanto aos que foram pela floresta, David sentia que era seu dever avisá-los. Nenhum deles eram conhecidos ou amigos seus, mas todos poderiam estar correndo perigo. Ele sentia-se obrigado a não permitir que sofressem pelas mãos de Joseph o mesmo que ele sofrera.

Após seguir mais alguns metros adiante, David encontrou uma pegada e, em seguida, outra. Eram pés humanoides que marcavam a neve, seguindo montanha à cima. Mas não eram pegadas do Joseph e, pelo tamanho, de nenhum outro ser humano. Elas eram três vezes maiores do que as pegadas do próprio David, o que o fazia questionar a própria lucidez. – Isso... isso não poder ser real. – Todo aquele dia era anormal de mais para ser.

Ele fitou o percurso pela qual as pegadas seguiam, coincidentemente era o mesmo que ele fizera antes e o mesmo que pretendia fazer agora. Retirou, então, a mochila das costas e apoiou-a no chão. Correu o zíper de um lado pro outro e abriu-a, pegando a sua câmera. Ele não sabia exatamente por que estava fazendo aquilo. Talvez fosse o seu espírito jornalístico; ou talvez fosse só uma tentativa de comprovar que não estava ficando louco. De qualquer forma, fez o que de melhor sabia e retirou em vários cliques uma sequência de fotos. Conferiu-as rapidamente e guardou novamente a câmera, colocando a mochila nas costas em um movimento ágil.

Seu próximo passo à frente foi engolido pela pegada monstruosa marcada anteriormente. E assim ele prosseguiu, segurando inutilmente o pedaço de madeira enquanto caminhava em direção a floresta. – Ou em direção a morte. – Pensou, mas isso não parecia abala-lo. Ele já havia sofrido de mais nos últimos meses. A morte já quase soava como uma chance. Chance de encontrar novamente aquela que mais o amou; e chance de parar de perseguir aquela que ele mais amava. Ambas haviam deixado-o, mas só uma por vontade própria.

Assim que o flash disparou uma figura humanoide se projetou no campo de visão de David, fazendo o mesmo recuar subitamente, enquanto reparava no corpo descarnado e monstruoso da criatura, assim como no baú que carregava. Um segundo depois e o flash dissipou, fazendo o monstro desaparecer da mesma forma que havia surgido.

David ainda encarava sobressaltado as pegadas desumanas no solo, quando uma voz surgiu em sua mente, fazendo-lhe explicações sobre a criatura da qual ele acabara de ver. – Trata-se de um Koschei, um antigo demônio que foi um rei no passado. A mitologia dos homens diz que ele é russo, mas isso não é verdade, ele é anterior a raça dos homens. Ele utiliza de uma maldição muito antiga, para matá-lo é preciso destruir o que está dentro do baú e não o seu corpo, ele é imortal, tal como todos os demônios são, isso eu bem sei. Ele quer todos os humanos que vieram para montanha mortos, todos com exceção de um.

– Demônios? Imortal? – David se perguntava, desorientado. – Ele quer todos mortos, assim como Joseph. Todos, com exceção de um. – Se antes ele duvidava da própria estabilidade mental, agora ele tinha certeza. Certeza de que havia algo de muito errado com ele... ou com aquele lugar.

Num ato de desencargo de consciência, David decidiu conferir o registro da câmera, imaginando se teria o monstro sido fotografado ou não. Suas mãos tremiam e ele sabia que não eram por causa do frio. – Meu Deus... – Ele sussurrou. – Me ajude. – David não era um homem religioso, mas ainda restava nele alguma temência. E diante de tantas adversidades, era um alento imaginar que alguém lá em cima o guardava.

Após passar por todas as fotografias retiradas e repassa-las mais algumas dúzias de vezes, David não encontrou nada além das pegadas demarcadas na neve. — Estou ficando louco? Meus olhos viram demais? — Ele se perguntou. Mas aquela experiência fora real, e no fundo ele sabia disso. O verdadeiro problema estava em entender o que aquilo tudo deveria significar. O monstro e a mensagem, e como eles se conectavam com Joseph e seus “jogos”.

Após remoer sobre o assunto por alguns minutos e não chegar a nenhuma conclusão satisfatória, ele decide que é hora de pensar no que fazer. — Minha mente está bagunçada. Preciso me acalmar. Preciso me focar. Preciso encontrar alguém. — Era preciso voltar para a estação e depois seguir para a casa. Fora para onde Joseph mandara os outros e era para onde ele muito provavelmente teria ido.

Quanto mais protelasse, portanto, pior seria, então David decidiu que era melhor seguir de uma vez. Deixou a câmera pendurada no pescoço, como tantas vezes já ficara, e pegou o pedaço de madeira apodrecido que pretendia usar como arma. Seu primeiro passo, no entanto, foi dado com muito receio, enquanto ele encarava a paisagem branca ao redor, temendo que algo estivesse à espreita pelas árvores. É no silêncio e na escuridão da noite que tudo vem à tona, ele sabia, quando as estrelas são as únicas testemunhas, seja de um crime ou de um ato de amor. Fora assim com seus beijos com Camilla – tanto no primeiro quanto no último –, e fora na noite que recebera a notícia de sua mãe. Também eram testemunhas agora, mesmo que ele ainda não fizesse ideia do quê.

O segundo e o terceiro passo foi dado em seguida e logo ele estava caminhando, mesmo que de forma tensa. Diante de si, a luz bruxuleante da noite iluminava as pegadas do monstro marcadas na neve. Ele sentia-se quase como um desses detetives de romances policiais, seguindo as pegadas de um alvo. Mas, por mais que desejasse o contrário, era ele o perseguido ali e, afligia-lhe pensar que, na realidade, ele deveria era estar caminhando para a outra direção.