Solidão
Bela Noite, 25 de agosto de 1992, 2h da madrugada
A lua minguante sorria no céu estrelado. A janela aberta deixava aquele parco fio de luz entrar, revelando um contorno corporal em meio às sombras do quarto. A jovem adolescente se debatia na cama, rasgava sua roupa em meio ao sono agitado. Os longos cabelos castanhos suados colavam nas costas, as cobertas e lençóis no chão. Aos poucos, o invejável corpo se mostra e a lua continua sorrindo em seu formato minguante.
Sou uma loba, estou no Parque da Itatiaia, conheço o local como ninguém. Era como se tivesse nascido ali, era como se fosse parte dali. Sou um animal selvagem, passeio por tudo, sou temida por todos os outros animais. Corro livre à luz da lua, o vento sob meus pêlos. Mas há algo etéreo nesse ambiente, algo translúcido. Os contornos das coisas são mais fortes, o brilho das árvores é mais forte. Eu subo uma colina e uivo com todas as minhas forças. Estou no meio de uma alcateia. Me sinto segura. Mas a terra se abre e dela começam a vir sombras grotescas, dizimando todos os meus companheiros. Uma força voraz se apossa de mim, o mundo se transforma.
A jovem adolescente acorda. Cada curva do seu corpo está banhada em suor, revelando sua pele morena de menina-mulher. Ela põe as mãos na cabeça, tonta, as roupas semirrasgadas. Era mais um daqueles sonhos que a assombrava. Sempre o mesmo, sempre como uma loba, sempre em um lugar etéreo, sempre no Parque da Itatiaia.
Levantou-se e cruzou o quarto até o banheiro, onde ligou o chuveiro para uma ducha. Precisava de um banho para relaxar os músculos, ainda tensos de toda aquela cena. Era como se efetivamente toda a sua estrutura corporal tivesse mudado e agora voltasse ao normal. Que sonhos reais...
Ao sair do banho, olhou-se no espelho. Seus olhos castanhos esverdeados estavam reluzindo um verde mais vívido. Esfregou-os por um momento. Voltaram à cor normal. Precisava marcar um oftamologista, não podia ser normal.
Toalha vermelha enrolada na cabeça, robe de seda cor vinho cobria seu corpo. Sentou-se na cama e começou a pensar na vida. Acendeu o abajur, ligou o som baixinho, colocou o CD novo do R.E.M, uma banda que gostava muito, escolheu uma música que preencheu sua mente. Puxou uma caixa que estava há muito guardada embaixo da cama, enxotou a poeira, abriu. Ali jazia, entre outros papéis, uma foto feliz, de uma família feliz. A música seguia:
Nightswimming
Deserves a quiet night
The photograph on the dashboard
Taken years ago
Turned around, backwards, so the windshield shows
Every street light reveals a picture in reverse
Still, it's so much clearer
I forgot my shirt at the waters edge
The moon is low tonight
Deserves a quiet night
The photograph on the dashboard
Taken years ago
Turned around, backwards, so the windshield shows
Every street light reveals a picture in reverse
Still, it's so much clearer
I forgot my shirt at the waters edge
The moon is low tonight
“Sempre seremos felizes, se essa lembrança sempre estiver no seu coração. Com amor, mamãe.”
A frase escrita no verso da fotografia transportava a jovem de dezesseis anos para outra época, para suas férias, para a alegria pueril da infância. De mãos dadas com seu pai, ela seguia satisfeita e feliz. Os sorrisos preenchiam aquele agradável dia ensolarado, o marulho das ondas, indo e vindo. Sua mãe, logo ali, tomava sol. Os cabelos dela eram dourados e lindos, sob o corpo moreno e esbelto. A criança amava fazer tranças naquelas madeixas, a mãe ria.
Nightswimming
Deserves a quiet night
I'm not sure all these people understand
It's not like years ago
The fear of getting caught
The recklessness in water
They cannot see me naked
These things, they go away
Replaced by every day
Deserves a quiet night
I'm not sure all these people understand
It's not like years ago
The fear of getting caught
The recklessness in water
They cannot see me naked
These things, they go away
Replaced by every day
Mas logo isso se acabava. Todos os momentos felizes eram tragados por uma única imagem. Ela tinha que ir embora. E então, todo o doce frescor das férias ia junto com ela. Todas as lembranças mais pungentes da jovem sempre eram de sua mãe indo embora. Ela trabalhava longe. Seu pai dizia que era algo importante, mas ela simplesmente não conseguia entender o que seria mais importante do que ficar com sua filha. E então começaram os sonhos. Sempre os mesmos.
Nightswimming
Remembering that night
September's coming soon
I'm pining for the moon
And what if there were two
Side by side, in orbit
Around the fairest sun
The bright tide that ever drawn
Could not describe
Remembering that night
September's coming soon
I'm pining for the moon
And what if there were two
Side by side, in orbit
Around the fairest sun
The bright tide that ever drawn
Could not describe
Quando ela finalmente veio para ficar, aquela criança já não era criança, aquele lugar já não era o mesmo. Aquele coração já tinha se distanciado dela. Agora, sua mãe voltava para lecionar na faculdade, sob o pretexto de ficar mais próxima da sua família. Mas já não era o bastante.
Nightswimming
You, I thought I knew you
You, I can not judge
You, I thought you knew me
This one laughing quietly
Underneath my breath
You, I thought I knew you
You, I can not judge
You, I thought you knew me
This one laughing quietly
Underneath my breath
Lágrimas escorrem teimosas por seus olhos. Ela segura aquela foto cheia de riso feliz e alegria velada. O dia de sol na praia é sugado pela lua, que continuava seu sorriso sarcástico pela janela do quarto.
Nightswimming
The photograph reflects
Every street light a reminder
Nightswimming
Deserves a quiet night
Deserves a quiet night
The photograph reflects
Every street light a reminder
Nightswimming
Deserves a quiet night
Deserves a quiet night
De repente, leves batidas na porta irrompem sob a música baixa. A maçaneta gira. A jovem enxuga as lágrimas. Uma voz feminina invade o quarto.
- Daye? Aconteceu alguma coisa?
- Não, mãe. Estou bem. Me deixe em paz. - em seguida a porta se fechou novamente.