Herança (Rahva)

As últimas semanas foram paradas, mas com a chegada da primeira havia esperança de mudança. Com o estoque esgotado do inverno, toda a sorte de crime começava a acontecer agora. Bastava estar atenta e tão logo uma oportunidade iria surgir, às vezes, nem tão atenta - as oportunidades à procuravam às vezes. Não faltava trabalho para alguém com uma lâmina e disposto a arriscar a pele, como tão cedo Rahva descobriria.

- Aen Seidhe...

Um homem a chamou, estendendo a mão ao mesmo tempo em que se aproximava. Nas mãos, havia uma carta - ele era do exército, a ver por seus trajes, mas não era um soldado - sua aparência deixava claro que não se encaixava com o modelo militar, apesar de utilizar as cores e as identificações. Além disso, sob hipóstese alguma um soldado a chamaria pelo nome antigo de sua raça. O homem tinha a complexão leve e poderia também ser facilmente confundido com um elfo, mas nada em sua aparência deixava isso claro, mesmo qualquer tipo de conexão entre os Aen Seidhe poderia ser sentida ali, era um humano com traços mais delicados apenas.

- O capitão pediu para que te entregasse isso. Disse que é um trabalho.

Não deu mais detalhes, mas continuou com o braço estendindo, aguardando que pegasse a carta de suas mãos. A carta estava em um envelope, estava selado e tinha o selo do capitão. Ele já era um homem velho, mas sempre a tratou bem, mesmo depois de terem se distanciado. De vez em quando recebia esse tipo de pedido, claro que sempre com um pagamento direto dos cofres do imperador e um agradecimento por ter auxiliado a nação em mais um trabalho de conquista.

- Vou aguardar sua leitura, devo apenas instruir - mas não sei exatamente o que o capitão deseja lhe dizer.

Ficando claro que não leu a carta e também não achou que devesse explicar ou deixar explícito, mas com a expansão do culto do Fogo Eterno, não seria prudente envolver-se em assuntos não-oficiais tão claramente, afinal, estavam solicitando trabalho para um elfo. E, embora o Fogo Eterno não tivesse elfos como alvo, eles não perdiam a chance de importunar qualquer não humano ou humanos que se envolvessem com estes.

O rosto de Gimhal era impassível durante todo o encontro, mas apertou um pouco os olhos, numa expressão mínima, quando Rahva o respondeu, chamando-o de humano.

- Assim que possível, mas sair na cobertura da noite seria mais prudente dadas as condições do garoto.

Citar 'condições' do filho do capitão, poderia sugerir que ele estava com algum tipo de doença e faria até um pouco de sentido levá-lo até Dol Blathanna, alguns do povo antigo tinham uma facilidade com ervas e a chance de cura era mais acertada. Gimhal então fez uma leve reverência, mas sem muita cerimônia. Em uma última informação, retornou a falar.

- Junte o que precisar para a viagem, estarei com o garoto na borda da cidade - na saída ao sul. Va fail.

Mais uma vez utilizou-se da língua antiga para falar com Rahva, nã havia sotaque ou dificuldade para falar o idioma - saia até que com certa naturalidade, não era impossível de acontecer, mas também, não era comum um humano falar assim, ainda mais estando no exército.

Gimhal estava no local combinado antes de Rahva chegar. Estava montado em um cavalo, ao seu lado, uma figura encapuzada montava outro cavalo e um terceiro cavalo estava selado ao lado de ambos. Por fim, uma mula levava suprimentos em sacas que pediam em suas laterais.

- Ceádmil...

O enviado do capitão havia mudando suas roupas, não estava mais com o uniforme do exército, mas com roupas simples e placas de couro batido lhe servindo como proteção em pontos vitais, assim como nos antebraços. Uma armadura leve que permitia mobilidade. De arma, tinha duas facas cruzadas no peito e uma espada curvada presa na cintura, nenhuma daquelas armas cortaria uma peça de armadura mais pesada, mas eram rápidas.

O garoto, o filho do capitão V'os, não usava nenhuma armadura - estava com o rosto coberto por um capuz e a capa cobria o resto de seu corpo e escondia roupas comuns, diferente dos outros animais, o cavalo que levava o garoto tinha uma viseira impedindo que olhasse para os lados, mas parecia bastante calmo, apesar disso.

- Não sabia se você teria uma montaria ou não, o capitão forneceu o evall.

Como sempre, as palavras eram diretas, apenas informativas. Se desviasse os olhos para o filho do capitão, poderia ver que ele mal se movia no cavalo. Mantinha as mãos soltas, junto do corpo e a cabeça abaixada, com o capuz escondendo o seu rosto.

- Devemos aproveitar a noite para nos afastarmos o máximo possível da cidade, o garoto está sob o efeito de uma poção e não acordará tão cedo.

Havia um senso de urgência na voz de Gimhal, apesar da objetividade. Assim que terminou de falar, começou um trote vagaroso com o cavalo, puxando a mula e o cavalo que levava o garoto, esperando que Rahva o acompanhasse.

- Gimhal. Meu nome é Gimhal.

Disse sem virar o rosto, tinha os olhos fixos no garoto, ainda com o mesmo capuz desde o primeiro encontro, mesmo com a lua baixando e a temperatura começando a aumentar - o garoto, que já começava a dar alguns sinais de que acordaria em breve, se mexia um pouco na cela, como se brigasse para ficar acordado. Era pequeno, não devia ter mais do que 12 anos - pelo o que sabia do capitão, os filhos dele tinham morrido em combate e não lembrava também de um tão novo, mas sabia que dentro das campanhas do exército era relativamente normal que anos mais tarde aparecessem crianças bastardas, o que podia ser o caso.

- Ele é Tisein. Gosta de ser chamado de Tis-...!

Ao fim de sua voz, um dardo cruzou a distância da ponta da estrada até Gimhal, antes do choque, foi possível ouvir o assovio do dardo cruzando o vendo noturno - por movimento rápido, jogou o corpo para trás, girando no cavalo e caindo atrás do mesmo.

- Proteja Tisein!

Sacou a espada da cintura e tão logo os atacantes apareceram. Eram cinco no total - quatro armados com espadas e bastões e um com a besta que disparou o dardo, esse um tenta armar a besta novamente, com alguma dificuldade. Pareciam bandidos comuns, as armas não eram da melhor qualidade, nem mesmo usavam qualquer peça de armadura.

- Aberrações, sempre isso, hehe! Entrega o garoto e tudo de ouro que tiverem aí, aí vocês vão assoviar na floresta!

Um deles tomou a frente e disse, apontando uma espada curta na direção dos três. Tisein balançou a cabeça, ainda todo encoberto pela capa e capuz, finalmente estava acordando.

A reação de Rahva foi mais rápida do que o esperado. Bandidos de estrada costumam ser rápidos, fazem o que tem que fazer e vão embora, mas como acreditaram na vantagem numérica - a confiança fez com que tivessem palavras com o grupo antes de tudo, um ainda cometeu o terrível erro de tentar armar uma besta - uma arma que leva um tempo considerável para isso - e perder a pouca vantagem inicial. A flecha de Rahva cortou a bruma da manhã e atingiu o meio do antebraço do besteiro, ficando travada ali naquele local. O homem jogou a besta de lado e urrou de dor, usando o braço ainda bom para segurar o braço ferido. Entre os gritos, vociferou para os demais:

- RÁPIDO! PEGUEM O MOLEQUE E VAMOS!

Gimhal também não perdeu muito tempo, puxou a espada e em riste avançou contra um dos atacantes - seu avançou foi interrompido por um segundo ataque contra ele, uma lâmina escura e enferrujada em alguns pontos, mas de um ferro pesado bateu contra sua espada curvada e na base de seu capuz. O impacto jogou a espada no chão enquanto Gimhal girava, cortando essa peça de sua roupa, revelando os cabelos muito escuros e um detalhe importante - suas orelhas pareciam ter sofrido algum tipo de mutilação antiga, pois embora tivessem o formato élfico, estava com as pontas cortadas de modo grosseiro, com uma cicatrização ruim.

Aquilo pareceu o ter afetado mais do que o ataque, girou em torno do próprio eixo com uma leveza que era comum aos aen seidhe e com as mãos livres, fez um cone com as palmas da mãos, viradas para a frente.

- Gwellaglain!

Do centro das palmas de suas mãos, um feixe de luz se formou em um flash e cegou o atacante, que largou a arma e levou as mãos aos olhos quase que imediatamente. Aquilo daria um tempo para que se recompusesse. Enquanto isso dois mais próximos de Rahva, avançavam contra ela. Um ainda corria na direção, enquanto outro deu um pequeno salto e trazia a espada do alto, visando o ataque direto contra o ombro de Rahva.

Tudo aconteceu rápido demais, e geralmente era assim que as lutas de verdade eram. Não havia tempo para pensar ou se defender, as pessoas caíam rápido.

O homem que atacou de cima, fez o que era esperado e não mudou o curso de sua arma, tãopouco tentou desviar - já que havia saltado, seria necessário um nível de habilidade que aquele atacante não possuia para sair da frente do cavalo, com isso, o tronco do cavalo chocou-se diretamente contra o peito do atacante que saltou e este caiu no chão, largando a arma e levando as duas mãos para o local atingido enquanto buscava ar desesperadamente.

O outro que vinha em sua direção, continuou a corrida e acabou por golpear o flanco do cavalo, sua arma era apenas um tacape com a ponta afiada, não causou um corte fundo - mas feriu o animal que relinchou com a dor e empinou imediatamente, mesmo que não fosse a tentativa ou a intenção do mesmo, jogou Rahva para trás, para fora de sua cela enquanto o atacante continuava o passo contra Rahva.

O saldo até o momento eram três atacantes incapacitados - um pela luz de Gimhal, outro pelo choque contra o cavalo de Rahva e o besteiro que tinha uma flecha atravessando o seu braço.

O quinto, avançou contra Gimhal pelas costas, aproveitando os poucos segundos de distração do mesmo ao usar a magia contra seu companheiro, sua espada era de um material um pouco melhor do que a dos demais, mas mesmo assim, qualidade baixa. O ataque vinha de cima para baixo, na diagonal, parecia ter um pouco mais de treinamento que os outros, também.

- ... ahm. Aahh! V'os desgraçado!!

Ouviu uma nova voz, era Tisein. Acabara de acordar de seu sono forçado - tinha a voz estridente de um garoto de 12 anos. Jogou o capuz para trás, deixando que caísse com toda a capa - revelando um corpo magro, cabelos rebeldes e o corpo completamente marcado com tatuagens infantis ou sem sentido. Coisas que uma criança faria se tivesse o acesso e pela aparência largada, ele saberia onde encontrar esse tipo acesso.



O garoto subiu na cela do cavalo, de pé, saltou com os pés descalços na cabeça do homem que vinha na direção de Gimhal, o derrubando. Era extremamente ágil.

- O velho que mandou você fazer isso?! E quem é aquela ali?!

Referindo-se a Rahva. Pegou um dos tacapes que estava no chão e jogou na direção do atacante de Rahva, chamando a atenção do mesmo para ele e com isso, dando uma abertura para que ela pudesse revidar mais rapidamente, alguns segundos que seriam importantes para virar o jogo. Ao mesmo tempo que tudo isso se desenrolava, tanto o homem ferido no braço como o que havia sido cegado se afastavam a médio passo e aumentando a velocidade para fugir de tudo aqui, já que o plano foi completamente frustrado.

- Quê?!

O homem foi pego de surpresa, primeiro pelo golpe de Tisein e em seguida pela espada passando por baixo de uma das escamas de sua armadura, havia sentido a pontada da lâmina então o golpe dos pés, o jogando para o chão. Não teve como revidar nessa situação e ergueu as mãos, novamente repetindo.

- ... Quê?!

Entendeu a parte do nome, mas talvez não tenha entendido exatamente sobre o que era a segunda parte de sua fala. Tisein apareceu um pouco mais atrás, segurando um outro tacape que tinha pego no chão, a arma estava em seus ombros, apoiada nos mesmos e sendo segurada por apenas uma das mãos. Ele retribuiu o sorriso, mostrando os dentes brancos - alguns faltando, talvez mesmo pela idade.

- HAHA! Ela te chamou de cocô!

Ele riu, se divertindo com a situação. Parecia não entender muito bem a gravidade de tudo a aquilo, ou mesmo não entender exatamente o que era tudo o que ocorrida. Gimhal vinha logo depois, guardando suas armas de volta nas bainhas e olhando feio para o garoto.

- Ele sabe, esse outro sangue podre!

Disse imediatamente, apontando para Gimhal. A referência do sangue era por conta da herança élfica, que agora, comprovava-se de que Gimhal era um elfo completo, não um meio e parecia esconder mais do que uma aparente aliança com o capitão V'os. Assim que o homem terminou sua frase, um dardo atingiu sua garganta e ele começou a lutar contra o sangue o sufocando.

- São os Aen Elle.

O dardo havia vindo de Gimhal. Ele proferiu as palavras e então caminho para recolher o dardo que atirou contra o homem.

- Esperava manter isso em segredo por mais tempo. Tisein é um Aen Elle, ele não é filho de V'os, mas descende indiretamente de Auberon, o falecido rei dos Aen Elle. A história de como ele foi parar em Novigrad é complexa demais e de como ficou sob os cuidados de V'os, pior ainda.

Puxou o dardo do pescoço do bandido, agora já morto, e o puxão trouxe um pequeno esguicho de sangue. Manchando o grama de vermelho escuro.

- Tenho... Temos. Temos que levar ele até Dol Blathanna para que fique em segurança e possa chegar perto de ser alguma coisa da realeza e mudar o rumo dos Aen Elle.

Tisein ouviu tudo atento, não gostava das palavras e gostava menos ainda de estarem falando dele daquele modo, mas parecia um pouco orgulhoso olhando os bandidos correndo. Talvez por sua última ação de ter acertado um deles. Realmente, o garoto elfo estava bem distante de ser qualquer coisa da realeza.

Tisein retribuiu o elogio com um sorriso e tão logo, voltou-se para Gimhal.

- Não vou!

Jogou o tacape no chão e recuperou a capa e capuz da qual havia se livrado, colocando novamente sobre suas costas, prendendo com uma amarra. Apesar do dia estar surgindo, estava um pouco frio - fosse esse o motivo de ter pego a capa.

- Eu vou entrar para o exército, como o meu pai!

Ao mesmo tempo, Gimhall também recolocava seu capuz - deu um nó com as partes rasgadas e cobriu as orelhas cortadas novamente. Fez uma leve reverência para Rahva e pronunciou seu pedido de desculpas.

- Squaess...

Entendia a dificuldade de aceitar trabalhar em segredo, mas não podia faz muito naquela situação. Os segredos eram partes importantes. Muita gente já sabia sobre Tisein e embora não fosse um estudioso de artes arcanas, sabia que o garoto tinha um potencial escondido, caso contrário, teriam procurado o Rei para garantir uma caravana até Dol Blathanna. Seria mais fácil viajar com uma comitiva de verdade.

- Sim, você irá, baeg. Monte no cavalo ou será obrigado. V'os não é seu pai de verdade, já conversamos sobre isso.

A medida que Gimhall falava era possível ver a expressão de Tisein mudar, transformando a face inocente de criança em algo feroz.