Prólogo - Faith Elderly

"A verdade pura e simples é raramente pura e nunca simples."
Oscar Wilde

Faith Elderly teve uma manhã estressante, teve de tudo: pessoas malcriadas, alunos desinteressados, humanos ignorantes e colegas de trabalho incômodos. Quanta raiva seus iguais causavam-lhe, por isso era incapaz de considerá-los como semelhantes. Mas agora estava em sua mesa, na sala dos professores. Ela recebera uma pasta estranha com diversas folhas velhas, não havia nome no remetente, apenas dizia "Para Faith, é de seu interesse". Apesar desse mistério, logo ignorara ao notar que eram textos considerados perdidos até pouco tempo, textos tão antigos que até mesmo uma professora de latim tinha dificuldade para acompanhar.

O tempo passava e um colega de trabalho saía por vez, até restar somente ela, mas nem percebera isso.

[...]

Após muita dificuldade, pôde juntar o quebra-cabeça. Eram páginas perdidas do Codex Gigas, a Bíblia do Diabo.

Sempre existiu lendas sobre esse manuscrito, acessara um documento de seu computador para relembrar sobre o que dizia a lenda: "Segundo a lenda, o escriba foi um monge que quebrou os votos monásticos e foi condenado a ser emparedado vivo. A fim de evitar esta severa sanção, ele prometeu a criação, de um livro que glorificaria o mosteiro para sempre e que incluiria todo o conhecimento humano. Perto da meia-noite, ele teve a certeza que não conseguiria concluir esta tarefa sozinho e, por isso, fez uma oração especial, não dirigida a Deus, mas ao arcanjo banido, Lúcifer, o Satanás, pedindo-lhe que o ajudasse a terminar o livro em troca da sua alma. O monge vendeu, assim, a sua alma ao diabo. Assim o manuscrito do monge foi concluído e acrescentada uma imagem do diabo como agradecimento pela sua ajuda."




Podia concluir, que as páginas que tinha em mãos, seriam as folhas que poderiam comprovar essa lenda.

"Contato direto com o demônio."

Poderia pensar.

Ao ler sobre a lenda, folhear as páginas do Codex Gigas e encarar a ilustração bestial, Faith sentiu um incômodo calafrio percorrer seu corpo. Ajeitou-se na cadeira e voltou sua atenção às folhas em sua mesa, havia ainda muitas frases enigmáticas que não conseguia decifrar sem consultar outros materiais escritos na mesma língua. A lenda sobre a bíblia do diabo era apenas isto: uma lenda. Certa vez Faith esteve quase impelida a acreditar que a história pudesse ser real, mas o conteúdo do livro não evidenciava as superstições misteriosas que surgiram sobre ele e que alimentavam seu caráter diabólico. Nunca o lera, contudo, e infelizmente eram poucos os que tinham acesso ao livro e ela estava muito longe para sequer tentar ter uma chance remota que fosse de manuseá-lo. Não conseguia crer, e não ousava se permitir crer, que as páginas em suas mãos se tratassem de páginas perdidas do Codex. Seria amadorismo e insensatez acreditar que fossem. Como teriam ido parar ali e de maneira tão duvidosa? Poderia ser obra de qualquer um que quisesse entretê-la um pouco. Afinal seu extremo interesse em estudar tais conteúdos não era segredo nem mesmo para quem a conhecesse vagamente.

Nesse ínterim, entre vagar no mar profundo de seu ceticismo e buscar respostas palpáveis, Faith olhou ao redor e notou mais uma vez que todos haviam ido embora e desta vez o silêncio era total. Recolheu as folhas e decidiu que era hora de ir pra casa.

"Por que dariam folhas falsas do Codex Gigas?"

Poderia questionar-se.

Afinal, é um livro extremamente raro e que fica guardado na biblioteca de Estocolmo, como ainda alguém poderia encontrar algumas folhas perdidas deste livro e procuraria por Faith, uma professora de latim como tantas outras que há por aí? Apesar da possibilidade de ser uma brincadeira de alguém, aquilo em suas mãos era muito fiel, parecia original; e o seu conteúdo, intrigante. Estava tão imersiva que perdera a noção do tempo e, após perceber isso, decidiu que seria melhor continuar com a pesquisa em casa.

[...]

A caminho de casa, divagava sobre sua posse. Isso a fazia pensar nos seus pais consequentemente, já que com a morte deles, causada por um acidente inexplicável, fizera-a querer continuar com os estudos de seus pais sobre satanismo e ocultismos. Haveria algo, em algum momento, que a morte deles seria esclarecida e todas as verdades do mundo seriam reveladas. Assim poderia pensar.

Então, um barulho de muito incômodo amontoara-se em seu inconsciente, sendo até difícil de ouvir com clareza os próprios pensamentos. Doía a cabeça, mas não tão forte como uma enxaqueca. Focando no barulho, era como se fossem vozes sendo balbuciadas em alguma língua desconhecida, não parecia ser um idioma contemporâneo. Porém uma frase pôde ser compreendida, apesar de mal, no meio disso, sendo dita apenas uma vez em latim, que seria, em sua tradução: Fa-le-com-o-Di-a-bo!




As vozes sumiram.

Aquilo talvez fosse assustá-la, entretanto, talvez já estivesse ciente dos riscos desde que começou com essas pesquisas. Seria este material verdadeiro de fato? Poderia se perguntar.

Absorta em pensamentos, a passagem do tempo lhe era indiferente. Não conseguia parar de pensar naquelas páginas, no mistério incógnito que as envolvia. Talvez houvesse na biblioteca da casa algum livro que pudesse norteá-la nessa busca caliginosa que tais páginas pretendiam desafiá-la fazer. Era preciso procurar por fontes confiáveis que relatassem as origens do Codex Gigas e a veracidade de seu conteúdo, ao menos o que fora divulgado a qualquer público que não seja aquele encarregado de conservar o livro. Faith cogitava e arquitetava meios e planos de conseguir obter alguma resposta, ainda que vaga e incerta. Naquele momento podia apenas confiar que se tratassem de folhas autênticas vindas de algum lugar muito obscuro para chegar até suas mãos. Talvez nem mesmo viessem de mãos humanas para as dela...Faith pensou por um momento; surpreendeu-se tanto com o próprio devaneio que não pôde evitar um riso escárnio ante a aceitação de tão absurda possibilidade...Seu ceticismo tinha de resistir.