ANO ZERO / DIA 10
As primeiras horas correram em excitação, assim como os dias seguintes, fluíndo em incrível velocidade, carregados de confusões e brigas: coisas desaparecidas, reclamações sobre a convivência, pedidos de troca de acomodações, desrespeitos, assédios.
Em suma, quase não houve trabalho.
Por outro lado, teve bastante “fofoca”.
Uma das principais era a dúvida sobre a origem daquele “incidente” final. Acidente ou crime?
Não havia eletricidade que justificasse um curto-circuito e combustíveis eram recursos limitados, especialmente naqueles últimos preparativos, com a faminta boca d’O Projeto. Porém eram mutantes e uma fogueira poderia nascer de maneiras alternativas: pirocinese.
Não ajudava que ao menos duas pessoas desaparecidas naquela correria, Hugan, um dos homens de Heckyl, e Barina, proeminente líder doutra gangue, dominassem justamente tal força.
O resultado era que, mesmo sem provas ou que a lógica de tudo fosse estranha, as reações fossem guiadas por imediatismo e preconceito: mesmo desfeito, o grupo de Barina era bastante hostilizado. Igualmente, olhava-se torto – ou mais torto que o normal – para Heckyl.
Também questionavam a decisão de partir de imediato, não se tentando salvar o HangardeTestes05 da ruína. “Por que não pararam quando estávamos fora?”. Culpava-se o maquinista, mas até exatamente quem acionara os motores era uma informação confusa. Boatos. Alguns aceitavam que fora a própria Anciã a dar a ordem, enquanto outros afirmavam categoricamente que o comando fora de uma ou outra figura importante. Fosse como fosse, o argumento de "não podemos colocar a máquina em perigo" era bastante forte.
Priscila era uma envolvida naqueles "disse que disse". Vozes sussurravam para que tivesse cuidado. Fora ela que não “captara” que ficaria separada da mãe ou haviam propositalmente a deixado desinformada? Quem sabe mera coincidência, um deslize de organização, de modo que, ao contrário, devia-se desconfiar de quem plantava a intriga?
Naquela situação, a opinião de Izu talvez fosse a mais importante para ela, único guia e conselheiro de confiança. Ou não? Fosse como fosse, panos quentes, apatia e individualismo – todos já tinham muitos problemas a resolver – não transformaram aquilo numa grande confusão. E a própria “mãe” tivera seu papel nisso.
- Somos aqui uma grande família. Não podemos viver na desconfiança. Tudo será investigado e revelado a seu tempo... .
Aquela era exatamente a atitude que certas figuras viam como fraqueza nela: a fé e o carinho que a tornava “naïve”, incapaz de reconhecer uma cobra peçonhenta arrastando-se na direção dela. Ela amava as próprias crianças e queria apenas que tudo estivesse em harmonia. Mesmo que problemas precisassem ser “ignorados”. Mais que uma autoridade, era alguém que "estragava" filhas e filhos, incapaz de "nãos".
Talvez as coisas mudassem numa “próxima era”.
Apesar de tudo, havia quem seguisse as próprias obrigações. Argoro, um dos arquivistas, batera em algumas portas perguntando se havia algum “presente” para ele.
- Ouvi que você tem algo para a Câmara do Amanhecer – perguntava sempre que iniciava a abordagem –. Nesse momento de grande necessidade, qualquer coisa é ainda mais importante.
O coletor batera a porta de Mutt, o qual sempre possuia coisas interessantes. Além, queria verificar o boato de que conseguira o privilégio único de estar sozinho num quarto, espaço de sobra para a própria bagunça.
Daquela vez, era sim verdade. O esquisito só não conseguira uma chave, tendo de improvisar uma fechadura com arames e coisas do tipo - ao menos quando saída, uma vez que o trinco interno parecia suficiente.
A maioria não se recusava a seguir o protocolo, mas uma pontada de desconfiança podia ali surgir. E se estivessem alimentando o inimigo, entregando de boa vontade qualquer vantagem que pudessem ter? Dizia-se aqui e ali que algumas pessoas não entregavam tecnologias encontradas fora, usando-as apenas secretamente.
O tipo de acusação que sempre terminava em socos e tapas.
Passado aquele período de assentamento, uma assembleia fora convocada, a primeira do pós-partida.
O trem encontrava-se parado em meio a um grande descampado. Tochas foram acesas para dar visibilidade e afugentar criaturas noturnas. À frente, tapando a noite, barreira mais escura que o próprio breu, uma enorme formação montanhosa cuja única passagem era uma fenda.
Era como um muro dividindo o mundo diminuto daquela gente.
“Precisamos voltar ao nosso curso normal. A Arca precisa do nosso suor", falava Anciã. “Além, como sabem, atingimos hoje o limite dos nossos mapas. Precisamos descobrir o que há para lá antes de seguirmos". Aquilo queria dizer que, pelos próximos tempos, ficariam estacionados lá, esperando que um grupo de batedores fosse e voltasse com informações.
Se retornasse.