Esse conto narra o prelúdio de um personagem que estou montando para a Mesa "A Queda da Aliança Mística".
I. Sonho transcendental
Numa manhã de sábado feito outra qualquer, eu despertei do mesmo jeito de sempre: de uma só vez, fiquei consciente por completo, mas sem mover um músculo do corpo. Antes mesmo de abrir os olhos, porém, eu pensei: "esse sonho não foi banal; esse vale a pena contar".
Me levantei rápido e fui tomar o café da manhã. Assim que eu terminasse, iria ligar para o meu Mentor e amigo para dizer que tive um sonho transcendental. Preparei os ovos com bacon e as panquecas com um pouco de pressa, comi mais rápido que de costume. Assim que terminei a refeição, a campainha tocou. Soube na mesma hora que era ele.
- Oi, Paul! Vamos entrando. O que te traz nesta hora da manhã?
- Fui no Walmart aqui perto e tive um pressentimento de que você precisava falar comigo, Ronnie.
- Pois eu ia te ligar justo agora. Lidar com mago agiliza bem as coisas, ha, ha, ha.
Ofereci chá, mas ele se sentou no sofá e disse, animado, que preferia ir direto ao assunto. Narrei o sonho.
"Eu estava acampado, à noite, num grande deserto. Estavam comigo um cara branco, um negro e um índio. Ficamos sentados em semicírculo, perto da fogueira, examinando um mapa com as nossas lanternas. O mapa indicava uma cidade chamada Zobeide, o lugar para onde íamos. Então, uma mulher passou correndo bem ao nosso lado. Veio tão rápida e silenciosa que, quando a gente olhou, ela já estava várias passadas adiante. Tinha a pele muito clara, cabelos pretos lisos, bem compridos, e estava nua. Os três caras largaram o mapa, as lanternas e saíram correndo desvairados atrás dela! Eu fui logo em seguida, gritando":
- Vocês são loucos! Essa aí não é a Nathicana. Não é quem a gente procura. Nathicana é divina, jamais ficaria nua! Voltem!
"Eles corriam, não alcançavam a mulher, nem eu os alcançava. Ela subiu uma duna e sumiu quando começou a descer pelo outro lado. Eu parei, cansado, e gritei":
- Vocês vão se perder no deserto, porra!
"Seguindo os passos dela, os três desapareceram por trás da duna, e eu voltei para o acampamento. Resmunguei comigo mesmo: 'Idiotas! No final, eles são como todo mundo: se perdem correndo atrás de futilidades e nem sequer conseguem perceber que seus objetivos são fúteis porque, como não conseguem alcançá-los, sofrem e ficam presos à ilusão de que seriam felizes se alcançassem. Me saio melhor sozinho, como sempre'"!
"Então, houve um salto temporal no sonho. Eu caminhava ao sol do deserto, cansado, muita sede, e a pele ardia. Mas eu ia feliz porque já avistava as altas muralhas de pedra cinza e os portais de Zobeide. Quando cheguei perto, tive vontade de chorar. Os portais eram de madeira velha, desgastada pelo tempo, e traziam uma inscrição entalhada: 'Esta cidade é triste. Nathicana não mora aqui'".
Paul fez um comentário.
- Hmmm… É um sonho interessante, de fato. Simboliza vários aspectos da sua personalidade. A dificuldade em se socializar, o menosprezo pelas pessoas de espírito mundano, seu desinteresse por sexo…
- "Desinteresse" é uma palavra meio forte. "Pouco interesse", eu diria.
- OK, Ronnie. Mas então você acha esse sonho transcendental por revelar a necessidade de saber quem é Nathicana?
- Não só por isso. Eu ainda não terminei de contar…
- Puxa, me desculpe, cara! Continue.
- Não esquenta, Paul. Dá nada. Vou terminar:
"Então, desconsolado, eu caí de joelhos. Não sabia para onde ir. Olhei para o céu, depois para as muralhas. Foi assim que eu reparei, no arco de pedra logo acima dos portais, um símbolo, um emblema. Tenho certeza de que nunca vi aquele símbolo em lugar nenhum, nem na Clavícula de Salomão, nem nos outros livros herméticos que já li. E sei que não inventei aquele desenho de curvas simples, mas tão perturbador. Nem sequer imagino por que o emblema me despertou sensações tão ambivalentes. Eu tinha medo daquilo, mas, ao mesmo tempo, me sentia fascinado. Um símbolo como aquele não representa nada que exista no mundo material. Seja lá o que for, só pode existir no Sonhar, em alguma parte da Umbra, em outro Plano"!
A expressão de Paul ficou muito séria. Fiz uma pausa, mas, como ele não disse nada, continuei. "Eu me ergui, e não parava de olhar o símbolo no arco. Hesitava. Devia voltar para o deserto em busca da divina Nathicana ou adentrar os portais para descobrir algo sobre o símbolo amedrontador? Encostei as duas mãos na madeira dos portais, me preparando para empurrá-los. De repente, senti um medo muito grande, um pânico inexplicável, que veio como uma descarga elétrica, e acordei"...
Paul fez um silêncio curto antes de falar.
- Esse símbolo, mesmo sendo algo que você nunca viu antes, tinha um estilo gráfico reconhecível? Seria algo que lembra a arte nativa americana?
- Não, Paul, nada a ver com minha ascendência.
Não pude deixar de sorrir ao dar a resposta. Paul e eu temos origem indígena. Mas eu e minha família somos totalmente desenraizados: nossos nomes e sobrenomes são de origem europeia, e não temos a menor vontade ou curiosidade de saber a qual povo nossos antepassados pertenciam. Já o Paul se orgulha de ser um legítimo descendente dos povos powhatan, que fizeram os primeiríssimos contatos com os colonizadores. Tanto que seu nome verdadeiro é Opechancanough Pamunkey, mas, como ele sabe que esse nome é de pronúncia difícil para quem não fala uma língua algonquina, deixa as pessoas chamarem ele de "Paul". E, claro, sendo um Orador dos Sonhos, ele é um típico xamã, conectado aos espíritos da Terra, aos totens da tribo Pamunkey, aos espíritos de seus ancestrais. Desde que se tornou meu Mentor na arte da mágika, vem insistindo para eu me religar às minhas raízes culturais. E eu leio mesmo os livros que ele me manda ler sobre história e cultura nativas, embora sem entusiasmo nenhum. Então, não admira que ele tenha perguntado se havia relação estilística entre o símbolo no sonho e a arte nativa: teimoso, ele não desperdiça oportunidades de insistir numa ideia. Mas, diante da resposta negativa, ele pareceu ficar preocupado.
- Ronnie, esse emblema que você viu era feito de ouro ou talvez pintado com tinta amarela?
- Não, era esculpido na pedra.
- Isso é bom… mas o que seria? Consegue desenhar?
- Claro!
Busquei caderno, caneta, fiz o desenho o melhor que pude, e o entreguei para Paul. Ele jogou o caderno na mesinha de centro da sala como se o papel lhe queimasse a mão, e se levantou de repente.
- Que merda, Ronnie. Isso aí pode ser até pior do que o Emblema Amarelo!
- Como assim?
- Esse aí é o emblema de um ser, ou talvez de um poder impessoal, quase desconhecido, geralmente nomeado "Koth". E os poucos que lidam com essa coisa são Nefandi! Não é à toa que você não tenha visto isso nos livros herméticos.
- Ah, tá… bom, não sei nem o que dizer.
Paul começou a caminhar pela sala com a cabeça baixa e as mãos entrelaçadas nas costas. Depois de um ou dois minutos, falou:
- Sua alma está dividida, meu amigo. Por isso, o Sonhar te colocou numa encruzilhada: buscar pela tal Nathicana ou descobrir mais sobre… Koth.
- Bem, agora que você já me alertou, pode ficar sossegado. Se eu sonhar de novo com o Emblema, nem chego perto.
Ele olhou para mim muito compenetrado. Falou como se medisse bem as palavras:
- Você encontra paz na solidão, e isso pode ser uma coisa muito boa. Entre nós, os Oradores dos Sonhos, há uma corrente conhecida como "Solitários". São magos que vivem como eremitas para melhor se conectarem à natureza e aos espíritos. Mas, às vezes, o desejo de solidão pode degenerar em comportamentos misantropos, e aí...
- Qual é, Paul!
- Desculpa, desculpa. Não tô dizendo que você vai ficar assim, nem sequer que você possa querer ser assim. Só acho que esse sonho é um aviso de que você está dividido e de que precisa escolher seu caminho com cuidado.
- Tá legal. Entendi. Vou refletir sobre isso.
- Vou te ajudar a descobrir quem é Nathicana, pois ela parece ser uma entidade oposta a Koth dentro da Trama. E também acho importante fazer um ritual de auto-imersão com você. Um ritual que te ponha em contato com o seu eu interior. Você deveria passar por isso mais tarde, mas é melhor agora. Se apronte e vem comigo pra minha casa!
- Agora mesmo?
- Já!
Numa manhã de sábado feito outra qualquer, eu despertei do mesmo jeito de sempre: de uma só vez, fiquei consciente por completo, mas sem mover um músculo do corpo. Antes mesmo de abrir os olhos, porém, eu pensei: "esse sonho não foi banal; esse vale a pena contar".
Me levantei rápido e fui tomar o café da manhã. Assim que eu terminasse, iria ligar para o meu Mentor e amigo para dizer que tive um sonho transcendental. Preparei os ovos com bacon e as panquecas com um pouco de pressa, comi mais rápido que de costume. Assim que terminei a refeição, a campainha tocou. Soube na mesma hora que era ele.
- Oi, Paul! Vamos entrando. O que te traz nesta hora da manhã?
- Fui no Walmart aqui perto e tive um pressentimento de que você precisava falar comigo, Ronnie.
- Pois eu ia te ligar justo agora. Lidar com mago agiliza bem as coisas, ha, ha, ha.
Ofereci chá, mas ele se sentou no sofá e disse, animado, que preferia ir direto ao assunto. Narrei o sonho.
"Eu estava acampado, à noite, num grande deserto. Estavam comigo um cara branco, um negro e um índio. Ficamos sentados em semicírculo, perto da fogueira, examinando um mapa com as nossas lanternas. O mapa indicava uma cidade chamada Zobeide, o lugar para onde íamos. Então, uma mulher passou correndo bem ao nosso lado. Veio tão rápida e silenciosa que, quando a gente olhou, ela já estava várias passadas adiante. Tinha a pele muito clara, cabelos pretos lisos, bem compridos, e estava nua. Os três caras largaram o mapa, as lanternas e saíram correndo desvairados atrás dela! Eu fui logo em seguida, gritando":
- Vocês são loucos! Essa aí não é a Nathicana. Não é quem a gente procura. Nathicana é divina, jamais ficaria nua! Voltem!
"Eles corriam, não alcançavam a mulher, nem eu os alcançava. Ela subiu uma duna e sumiu quando começou a descer pelo outro lado. Eu parei, cansado, e gritei":
- Vocês vão se perder no deserto, porra!
"Seguindo os passos dela, os três desapareceram por trás da duna, e eu voltei para o acampamento. Resmunguei comigo mesmo: 'Idiotas! No final, eles são como todo mundo: se perdem correndo atrás de futilidades e nem sequer conseguem perceber que seus objetivos são fúteis porque, como não conseguem alcançá-los, sofrem e ficam presos à ilusão de que seriam felizes se alcançassem. Me saio melhor sozinho, como sempre'"!
"Então, houve um salto temporal no sonho. Eu caminhava ao sol do deserto, cansado, muita sede, e a pele ardia. Mas eu ia feliz porque já avistava as altas muralhas de pedra cinza e os portais de Zobeide. Quando cheguei perto, tive vontade de chorar. Os portais eram de madeira velha, desgastada pelo tempo, e traziam uma inscrição entalhada: 'Esta cidade é triste. Nathicana não mora aqui'".
Paul fez um comentário.
- Hmmm… É um sonho interessante, de fato. Simboliza vários aspectos da sua personalidade. A dificuldade em se socializar, o menosprezo pelas pessoas de espírito mundano, seu desinteresse por sexo…
- "Desinteresse" é uma palavra meio forte. "Pouco interesse", eu diria.
- OK, Ronnie. Mas então você acha esse sonho transcendental por revelar a necessidade de saber quem é Nathicana?
- Não só por isso. Eu ainda não terminei de contar…
- Puxa, me desculpe, cara! Continue.
- Não esquenta, Paul. Dá nada. Vou terminar:
"Então, desconsolado, eu caí de joelhos. Não sabia para onde ir. Olhei para o céu, depois para as muralhas. Foi assim que eu reparei, no arco de pedra logo acima dos portais, um símbolo, um emblema. Tenho certeza de que nunca vi aquele símbolo em lugar nenhum, nem na Clavícula de Salomão, nem nos outros livros herméticos que já li. E sei que não inventei aquele desenho de curvas simples, mas tão perturbador. Nem sequer imagino por que o emblema me despertou sensações tão ambivalentes. Eu tinha medo daquilo, mas, ao mesmo tempo, me sentia fascinado. Um símbolo como aquele não representa nada que exista no mundo material. Seja lá o que for, só pode existir no Sonhar, em alguma parte da Umbra, em outro Plano"!
A expressão de Paul ficou muito séria. Fiz uma pausa, mas, como ele não disse nada, continuei. "Eu me ergui, e não parava de olhar o símbolo no arco. Hesitava. Devia voltar para o deserto em busca da divina Nathicana ou adentrar os portais para descobrir algo sobre o símbolo amedrontador? Encostei as duas mãos na madeira dos portais, me preparando para empurrá-los. De repente, senti um medo muito grande, um pânico inexplicável, que veio como uma descarga elétrica, e acordei"...
Paul fez um silêncio curto antes de falar.
- Esse símbolo, mesmo sendo algo que você nunca viu antes, tinha um estilo gráfico reconhecível? Seria algo que lembra a arte nativa americana?
- Não, Paul, nada a ver com minha ascendência.
Não pude deixar de sorrir ao dar a resposta. Paul e eu temos origem indígena. Mas eu e minha família somos totalmente desenraizados: nossos nomes e sobrenomes são de origem europeia, e não temos a menor vontade ou curiosidade de saber a qual povo nossos antepassados pertenciam. Já o Paul se orgulha de ser um legítimo descendente dos povos powhatan, que fizeram os primeiríssimos contatos com os colonizadores. Tanto que seu nome verdadeiro é Opechancanough Pamunkey, mas, como ele sabe que esse nome é de pronúncia difícil para quem não fala uma língua algonquina, deixa as pessoas chamarem ele de "Paul". E, claro, sendo um Orador dos Sonhos, ele é um típico xamã, conectado aos espíritos da Terra, aos totens da tribo Pamunkey, aos espíritos de seus ancestrais. Desde que se tornou meu Mentor na arte da mágika, vem insistindo para eu me religar às minhas raízes culturais. E eu leio mesmo os livros que ele me manda ler sobre história e cultura nativas, embora sem entusiasmo nenhum. Então, não admira que ele tenha perguntado se havia relação estilística entre o símbolo no sonho e a arte nativa: teimoso, ele não desperdiça oportunidades de insistir numa ideia. Mas, diante da resposta negativa, ele pareceu ficar preocupado.
- Ronnie, esse emblema que você viu era feito de ouro ou talvez pintado com tinta amarela?
- Não, era esculpido na pedra.
- Isso é bom… mas o que seria? Consegue desenhar?
- Claro!
Busquei caderno, caneta, fiz o desenho o melhor que pude, e o entreguei para Paul. Ele jogou o caderno na mesinha de centro da sala como se o papel lhe queimasse a mão, e se levantou de repente.
- Que merda, Ronnie. Isso aí pode ser até pior do que o Emblema Amarelo!
- Como assim?
- Esse aí é o emblema de um ser, ou talvez de um poder impessoal, quase desconhecido, geralmente nomeado "Koth". E os poucos que lidam com essa coisa são Nefandi! Não é à toa que você não tenha visto isso nos livros herméticos.
- Ah, tá… bom, não sei nem o que dizer.
Paul começou a caminhar pela sala com a cabeça baixa e as mãos entrelaçadas nas costas. Depois de um ou dois minutos, falou:
- Sua alma está dividida, meu amigo. Por isso, o Sonhar te colocou numa encruzilhada: buscar pela tal Nathicana ou descobrir mais sobre… Koth.
- Bem, agora que você já me alertou, pode ficar sossegado. Se eu sonhar de novo com o Emblema, nem chego perto.
Ele olhou para mim muito compenetrado. Falou como se medisse bem as palavras:
- Você encontra paz na solidão, e isso pode ser uma coisa muito boa. Entre nós, os Oradores dos Sonhos, há uma corrente conhecida como "Solitários". São magos que vivem como eremitas para melhor se conectarem à natureza e aos espíritos. Mas, às vezes, o desejo de solidão pode degenerar em comportamentos misantropos, e aí...
- Qual é, Paul!
- Desculpa, desculpa. Não tô dizendo que você vai ficar assim, nem sequer que você possa querer ser assim. Só acho que esse sonho é um aviso de que você está dividido e de que precisa escolher seu caminho com cuidado.
- Tá legal. Entendi. Vou refletir sobre isso.
- Vou te ajudar a descobrir quem é Nathicana, pois ela parece ser uma entidade oposta a Koth dentro da Trama. E também acho importante fazer um ritual de auto-imersão com você. Um ritual que te ponha em contato com o seu eu interior. Você deveria passar por isso mais tarde, mas é melhor agora. Se apronte e vem comigo pra minha casa!
- Agora mesmo?
- Já!