Desígnio (Yui de Karasu)

Yui já saíra da fortaleza do Corvo algumas vezes após o ritual. Ela sabia que, fora daquele lugar, sua mente funcionava de uma forma diferente. De jeito que não era tão agradável. Mas assim como todos os outros Magi de Karasu, dentro da fortaleza havia tipo estranho de paz. Não era mais um rumor, mas uma certeza, dada a situação - embora ninguém ousasse falar - de que a fortaleza estava realmente sob encanto, pois dessa forma Akui, a grã mestra do local, poderia viver sem que mente fosse estilhaçada, presa eternamente no local.

Havia uma movimentação diferente, não podia ser de outra forma, era o início da primeira e os Magi de Karasu iriam deixar a fortelaza para cumprir seus contratos (ou ainda, alguns outros, para buscar contratos ilícitos). Amaya, sua Serow a empurrou de leve com o meio da cabeça, costume do animal para pedir atenção.

Atenção.

Sua mente divagou um pouco, mas pensou e ouviu.

- ATENÇÃO!

Era Akui. Estava no parapeito de uma entrada próxima da fortaleza, onde podia ver todos, todos podiam vê-la e mais importante, ouví-la. Sua voz era firma. Sua presença era imponente. A máscara carmesim que adornava seu rosto fazia com que a autoridade emanasse de seu ser com facilidade, os mais novos, além de certa adoração, tinham até mesmo um medo saudável da líder da fortaleza do Corvo.

- O poleiro do Corvo abre seus portões mais uma vez, embora o Imperador não faça questão de nos fornecer muitos contratos - havia certo desprezo em sua voz, ao citar o Imperador, mas não desrespeito. Era difícil de decifrar - nós ainda realizamos nosso trabalho. Dessa vez, teremos contratos para todos, mas alguns deverão sair em duplas, dada a complexidade da missão oferecida.

Os Magi de Karasu se entreolharam, pensando em como quem seriam alocados ou, se ainda, seriam os que iriam sozinhos, sem uma dupla. Os entreolhares se tornaram um rápido falatório, interrompido pela voz de Akui.

- Dirijam-se ao intendente da fortaleza e boa sorte no caminho.

O intendente, um Magi mais velho, estava sentado de fronte a uma mesa com rolos de papel, alguns tubos de cera vermelha e um selo do corvo.



Alguns dos Magi se dirigiram a ele e começaram a conversar e pegar suas atribuições. Outros conversavam entre si, alguns não tomaram a iniciativa em nenhuma das alternativas. Dos poucos que sobreviveram ao treinamento nos mesmos anos de Yui, ela podia encontrar facilmente com os olhos, dois deles: Amise e Jirai. Não era absurdo pensar que poderia estar alocada com um deles, afinal de contas, os níveis de conhecimento eram parecidos e talvez ficassem com missões mais simples, já que estavam iniciando no caminho. Mas era só suposição, não tinha como saber de fato até falar com o velho Magi e receber seu propósito. Eles próprios, Amise e Jirai, ficaram parados, talvez esperando que o amontoado de Magi saíssem de perto do velho intendente.

 
 Yui conseguia sentir no ar aquela tensão leve que indicava o começo da primavera, o burburinho animado dos outros magi, os toques agudos de metal das espadas sendo afiadas e de armaduras sendo vestidas. Sim, ela sentia paz na fortaleza, se sentia segura e tranquila como jamais se sentira em nenhum outro lugar nesse mundo duro; contudo a jovem não podia negar a eletricidade que corria por seu corpo, a excitação da caçada que se aproximava... Seu cérebro rogava para que saísse por aí e exercesse sua vingança contra o mundo! Tentando conter a animação com a perspectiva da abertura dos portões, Yui descansou as mãos sobre Amaya, dando alguns tapinhas carinhosos nos pelos escuros da Serow. Amaya sempre conseguia acalmar seus ânimos. Os olhos carinhosos da Serow, em conjunto com o encantamento ao redor da fortaleza, eram incrivelmente efetivos em manter a tranquilidade e a figura blasè que Yui tentava transpirar.

 Mestra Akui enfim apareceu e falou. Yui e Amaya ergueram os olhos para a mulher, encantadas, como sempre. Akui era admirável. Seu poder, sua presença eram intoxicantes. Um dia, Yui sabia, ela veria se o rosto da Mestra era tão terrível quanto diziam. Em resposta a esse conhecimento, Yui sabia que teria que pagar com a vida, e ansiava pela oportunidade de desafiá-la em um duelo de morte. Mas não ainda. Não agora. Yui ainda tinha muito para aprender antes de poder ter a honra de se engajar em batalha com adversária tão formidável. Quem sabe? Talvez ela até vencesse. Baixando os olhos para seus companheiros, Yui brevemente se perguntou quantos outros ali não desejavam a mesma coisa.

 Em sua inspeção do pátio, a jovem magi viu alguns rostos conhecidos. Com um sorriso neutro, acenou para Amise e Jirai, mas não fez nenhum gesto para se aproximar dos companheiros. Ela preferia caçar sozinha, ou melhor, só ela e Amaya. Mas não ia causar problemas se tivesse que trabalhar com os outros, desde que tivesse a chance de destruir, de derramar sangue, de arranc... Amaya encostou o focinho gelado nos ombros de Yui, quebrando o ritmo de suas divagações. Sacudindo a cabeça, o coração batendo acelerado pela perspectiva de violência, Yui avançou em direção ao velho intendente, abrindo caminho em meio a multidão às cotoveladas.

- Senhor Intendente - ela fez uma breve mesura, tentando esconder sua empolgação. - O que você tem para mim?  

- Ahh. - O velho Magi soltou um pouco do ar do chá que tomava, o vapor saiu rápido de sua boca e dispersou no ar rapidamente. O clima estava começando a esquentar, era até estranho o velho continuar tomando a bebida, não tinha gosto de nada, Yui conseguia perceber pelo cheiro, era só água quente com alguma cor. Pouquíssimas ervas. Depois das mutações, imagina-se que busquem gostos e sabores mais fortes, para que possam sentir com maior intensidade. Pensando nisso, era tudo bem estranho - não só os hábitos do velho, mas como explicar as sensações que tinha após o ritual das gramíneas. Ao mesmo tempo em que era mais sensível para tudo ao seu redor, busca mais e mais estímulos.

- Certo, tenho algo para você. Akui pediu para que separasse isso. - Da pilha de pergaminhos, puxou um deles, não diferente dos demais - se ele não falasse nada, aparentemente, não tinha absolutamente nada de diferente daquele pergaminho, para os demais ali disponíveis. - Boa sorte no caminho.

Não trocou mais muitas palavras e voltou a atenção para os outros Magi que se aproximavam para saberem de suas missões. Foi entregue apenas para ela, então não sabia se essa missão seria compartilhada de alguma forma, só havia uma forma de saber. O pergaminho. Lia-se:

(Enviado via PM - Manter em segredo dos outros jogadores)

A carta era preocupante e uma missão inesperada para a escola do Corvo. Tudo o que tinha aprendido até então, não iria lhe ajudar com essa demanda - deveria tomar uma decisão de como buscar mais informações sobre como lidar com esse caso ou partir, contando com a agilidade de chegar rapidamente onde deveria e uma vez ali, entender de fato o que estava acontecendo com o alvo da missão.

Com um breve aceno de cabeça, Yui afastou-se do velho intendente, apertando o rolo de pergaminho entre as mãos. Não gostava muito do velho, nem de seus olhos calmos que pareciam penetrar os recônditos mais obscuros de sua alma. Talvez aquela bebida insossa que ele consumia em grandes quantidades o tivesse levado a um novo nível de consciência. Yui não sabia e, honestamente, não se importava. O que ela queria mesmo era sentir seu sangue correndo nas veias, seu cérebro inundado de adrenalina. Em passos largos, se afastou do burburinho ao redor da mesa do intendente e foi abrir o pergaminho num canto mais reservado do pátio, seguida de sua fiel Amaya.

Ao terminar de ler o pergaminho, sentiu a boca seca. O que era aquilo? Como ela poderia lidar com aquilo? Não fora treinada para isso, não sabia nem mesmo por onde começar! Nada em seu treinamento, nada nos anos resistindo física e mentalmente aos desígnios de seus mestres a preparara para aquele tipo de missão. Yui era uma caçadora. Uma guerreira. Uma vingadora! Era a garra do corvo! Aquela seria sua primeira grande missão, sua primeira chance de passar um tempo longo fora da fortaleza, e ela se sentia tão inadequada que era como se estivesse indo despida para uma batalha de morte. Por que a tinham escolhido para aquela missão?

Sentindo seu desespero, Amaya esfregou a testa carinhosamente contra a mão livre de Yui. Sobressaltada, a jovem Magi se voltou para a Serow, procurando a calma dos olhos negros do animal. Amaya parecia entender exatamente o que lhe assaltava o coração, e seus olhos ternos diziam exatamente o que Yui precisava ouvir. Que ia ficar tudo bem. Que ela era capaz de fazer aquilo. Que aquela era uma grande honra, e que ela não teria sido escolhida sem motivo. Yui acariciou o focinho de Amaya, pensando... O corvo é feroz, mas também é astuto. Entre as aves de rapina, sua caça é a mais criativa. Yui era a garra cortante, o bico que penetra, mas tinha também que ser os olhos que aguardam e o cérebro que calcula. Ela era capaz de ser aquilo. Ela e Amaya, elas iam conseguir. E o que quer que estivesse por trás disso encontraria seu fim por sua lâmina!

Sem maiores delongas, Yui recolheu os poucos pertences que já tinha preparado para a missão e preparou-se para montar Amaya. A viagem seria longa e provavelmente perigosa, mas a jovem devia partir o quanto antes. Enquanto se aprontava para partir e observava os outros Magi partindo ou se preparando, uma ideia foi se formando na cabeça de Yui. Ela precisava de informações. Precisava de uma hipótese sobre o que exatamente estava caçando. Precisava, enfim, de ajuda. Mas ela sabia a quem recorrer. Ele era agora um velho ranzinza, e nunca tinha sido exatamente cortês, mas Yui já colocara sua vida em suas mãos mais de uma vez e ele nunca lhe tinha falhado: Ootome, seu antigo mentor, aquele que a havia trazido à fortaleza do corvo. Yui estava certa de que ele poderia lhe dar uma dica, colocá-la no caminho certo e, por sorte, ele morava numa floresta não muito longe da fortaleza, não era totalmente fora do caminho.

Estava decidida. Passaria pela morada de Ootome para pedir informações e depois seguiria viagem. Não importava como, mas cumpriria aquele contrato. Com um último olhar para a fortaleza, Yui montou Amaya e partiu a galope, rápida como o vento.

Amaya era uma Serow forte e se sentia em sintonia com sua Magi, as passadas eram fortas e rápidas - deixavam sua marca pelo chão onde passava, não apenas pelo simples galope, mas o animal parecia fazer questão de marcar por onde passava. Era genioso e tinha suas vontades. O galope rápido e constante foi o que bastou para chegar à morada de Ootome, não ficava diretamente na fortaleza, mas em um pequeno casebre nas proximidades

Não havia qualquer luxo no local. Na verdade, não havia nenhum tipo de luxo em nada no poleiro do Corvo. As coisas eram práticas e feitas no intuito de serem funcionais. É claro, coisas e bens não eram desprezados pelos Magi dali, mas não havia muito do aspecto de se acumular coisas. Tinham propósito e o dinheiro que ganhavam era utilizado para que a vida fosse mais prática e prazeirosa. Assim que Amaya parou de frente ao casebre, a porta estava sendo aberta e dali saia Ootome, com o mesmo rosto plácido, de pouca expressão, mas que passava certa calma.

Ali, também, Yui já estava fora dos muros do castelo e sentiu como se um choque elétrico passava pela sua nuca e um cochicho sussurando em seus ouvidos, incompreensível. Poderia ter se perdido com o conjunto da dor e vozes, mas a voz grave de Ootome quebrou o impacto.

- Uma nova lição para o próximo ano. Nunca saia rápido demais da fortaleza. Ela está sob encanto, como o ritual cobra demais de todos nós, esse encanto mantém nossas mentes em ordem dentro da fortaleza, mas quando saímos, tudo 'volta ao normal'. Voltar ao normal rápido demais pode ser um problema. Desmonte, diga o que veio tratar.

Fechou a porta de seu casebre e estalou os dedos. Da lateral do lugar, veio seu Serow, um animal médio de pêlos tigrados. Se aproximou a baixou a cabeça. Assim como Amaya tinha uma conexão e personalidade próxima com Yui- aquele Serow parecia ser exatamente como Ootome, calmo, olhos fundos e complacentes. Quando o animal se aproximou, Ootome passou a mão por entre os chifres dele e subiu até o meio da cabeça - o Serow balançou a cabeça rapidamente e de forma gentil, como se sentisse cócegas.

Ootome sentou-se logo em seguida, bateu duas pedras e com um movimento rápido um pequeno fogo se iniciou em um punhado de gravetos. Apontou uma pedra próxima, para que Yui sentasse-se também.

(Pode interagir o que precisar com Ootome ou com qualquer outro NPC no Poleiro - na próxima resposta, respondo tudo e inicio a viagem - se não houver nada na interação que impeça).

Assim que Yui apeou na frente do casebre de Ootome, sentiu uma dor de cabeça ressoante, como se tivesse ido de encontro à parede. Cambaleando um pouco e tentando firmar a visão, apoiou-se em Amaya enquanto ouvia as palavras de Ootome abafadas, como se ele estivesse falando do outro lado de uma cachoeira. Demorou alguns segundos para espantar a zoeira em seu cérebro, mas logo fincou os pés no chão e conseguiu olhar bem nos olhos calmos do seu antigo mentor, agora companheiro de clã.

- Ootome-senpai, - ela meneou a cabeça cordialmente, ignorando uma pontada residual no crânio. - Nada como aprender na prática, não é mesmo? Parece que eu enfiei a cabeça dentro de um sino tocando!

Yui deu uma coçadinha nos chifres de Amaya e sentou-se na pedra que Ootome oferecia, incerta de como começar. Agora que estava ali, a jovem se perguntava se ela poderia mesmo dividir suas atribuições com mais alguém. Observou em silêncio por alguns minutos, enquanto ele acendia o fogo, mas enfim se decidiu. Com um suspiro, puxou o pergaminho do meio das vestes.

- Senpai, recebi hoje minha primeira missão sozinha - ela começou. - É uma grande honra, mas estou incerta... Não sei exatamente o que fazer, ou por onde começar. Não sei nem o que é isso!

Yui estendeu o pergaminho para Ootome ler o que estava escrito e observou cuidadosamente as reações do homem enquanto ele lia.

- O que me diz? O que você acha que é isso? Você tem alguma ideia do que devo esperar? - suas perguntas escaparam subitamente de seus lábios, sua voz traindo sua preocupação e um pouco de raiva com a situação. - Qualquer ajuda que você puder oferecer será de grande valia. Eu não posso falhar!

Pegou o pergaminho imediatamente e passou os olhos. Leu rápido e o devolveu. Encarou as chamas recém acesas e pareceu pensar um pouco no que tinha acabado de ler, como se não soubesse muito bem o que responder. Mas falou de qualquer forma, havia oferecido ajuda e talvez, não fosse a melhor delas, mas de qualquer forma, iria indicar um caminho.

- Isso não parece certo, Yui.

Respondeu e seu rosto gentil se tornou sério, um semblante até que preocupado. Ootome era um Magi experiente, já tinha muitos anos em suas costas e o que diziam sobre homens como ele, era verdade: "cuidado com um velho em uma profissão onde se morrem jovens". Era perigoso ser um Magi e Ootome sabia disso, era astuto e cauteloso, mas nunca covarde. Sendo assim, suas preocupações pareciam ter fundamento.

- É estranho e não consigo dizer nada além disso. Acho que você deve ir atrás, mas tenha cuidado - não se arrisque à toa. E não mostre esse pergaminho para mais ninguém, há um risco de que realmente seja o que se diz, então é importante ter discrição. Se for o caso, não tenho como lhe dar nenhum conselho, você deve ver o que acontece com seus próprios olhos, estudar a situação e usar seus conhecimentos para decifrar. É o que eu faria.

Era um bom conselho, sem ter tanta informação. Cautela.

- E claro, boa sorte no caminho.

...

Dadas as devidas despedidas e preparações, a estrada que tinha pela frente era longa e não seria prudente perder muito mais tempo. Aproveitou o restante da luz do primeiro dia, mas em dado momento, era necessário deixar seu Serow descansar para prosseguir. Por mais que tivesse avançado, o terreno ainda lembrava muito o território da escola, ficavam em uma espécia de baía que propiciava o crescimento de árvores volumosas. Amaya deitou-se onde seria o descanso pela noite. Yui poderia apenas meditar e recuperar-se parcialmente ou de fato dormir, para descansar o máximo possível.