Prólogo: Uma Noite Chuvosa

A chuva caia torrencialmente. Relâmpagos rasgavam o céu escuro para logo serem sucedidos por trovões longos e vigorosos. Pegos de surpresa ainda à meio dia de viagem de Monte Putrefato, o grupo agora estava completamente encharcado, assim como objetos e roupas extras que não estivessem devidamente protegidas. O rio Peixe-Rei, que margeava os muros da cidade, era uma massa agressiva e barulhenta de água que parecia ter o volume atual muito acima do normal. Pequenas barcos, presos nas docas da cidade, chacoalhavam e rangiam, tentando resistir à violência da água. Além de nuvens negras e rubras de chuva, não se via nada no céu por muitos quilômetros e o vento da noite castigava qualquer um que estivesse caminhando sob a chuva, causando tremores involuntários e deixando a pele e roupas geladas. A estrada era um mar de lama escorregadia, e por vezes os aventureiros tomaram sustos ao quase cair ou ter as botas presas numa poça de lama.

O grupo vinha do oeste e logo avistaram a primeira ponte que leva à Monte Putrefato - aquela que foram aconselhados a evitar, pois ela acaba na Imundice, a pior parte da cidade. Foi dito aos quatro aventureiros que o lugar era desagradável durante o dia, então de noite com certeza o melhor era evitar o lugar. Foi Elan quem primeiro atravessou a ponte e chegou à parte da cidade chamada de Emaranhado. Uma rua lamacenta e larga o suficiente para uma carroça passar se alongava da ponte, cruzando uma outra rua e seguindo entre duas casas até sumir, escondida pela água da chuva. Logo Lance, Orianna e Tora alcançaram o bardo, que parou no cruzamento sem saber para onde ir. O grupo então notou dois homens ali, em pé sob a chuva e resistindo ao frio, um de cada lado da rua. Eles vestiam sobretudos negros de lã que pareciam muitas vezes mais pesado e no peito dos sobretudos havia uma ave branca com as asas abertas bordada. Os dois homens usavam botas de couro de deviam chegar até os joelhos, uma espada longa pendia do cinto de cada um deles e lanças de madeira se erguiam ao lado dos dois. Elmos simples de metal cobriam as cabeças dos guardas e uma peça de metal cobra seus narizes. O mais alto deles, que está à direita do grupo, teve que gritar para ser ouvido debaixo da chuva.

- BOA NOITE, AMIGOS! - O guarda falava com o corpo um pouco inclinado para frente, evitando que a chuva lhe atingisse diretamente o rosto. Era difícil distinguir qualquer particularidade da voz do homem nessa situação - QUAL O MOTIVO DA VISITA DE VOCÊS À NOSSA CIDADE?

Elan puxa um grande sorriso e com a mão esquerda protegendo o rosto da chuva acena com a direita para ambas as figuras

-BOA NOITE CORVOS! MAL DIA PARA ESTAR DE GUARDA, OU VIAJANDO NÃO É MESMO? - grita tentando ultrapassar o volume da chuva e do vento - PRIMEIRO GOSTARIAMOS DE UM LUGAR QUENTE E SECO PARA EVITAR QUE NOSSOS OSSOS ENFERRUJEM, ESTAMOS TÃO MOLHADOS QUE NOSSOS PEIDOS ESTÃO SAINDO EM BOLHAS

Tora, a clériga de Torag olhou e ouviu a conversa e não poderia ter expressado em melhores termos as intenções do grupo é claro que seu humor já não estava tão bom assim e provavelmente ela usasse uma linguagem com termos mais xulos do que os apresentados até então, mas pode acrescentar...

- EM RESUMO, QUEREMOS SAIR DESTA CHUVA E SE POSSÍVEL CONSEGUIR UMA CERVEJA EM ALGUM LUGAR SECO.

Tony já está acostumado a seguir em frente em condições adversas, mas o frio nos seus ossos o incomoda e deixa a sua paciência mais curta e maldita hora que aceitou se aventurar para estas bandas. Mas seu lema é literalmente "Se está na chuva é para se molhar" e torce para que os companheiros bons de papo consigam levá-los a uma boa taverna, com aquela conversa mole com esse dois guardas bundões, e que seja uma taverna com cama quente e cerveja gelada, pois o papo estava se alongando demais.

"Chuva, chuva e chuva, todo mundo toma banho para ficar limpo, mas quando a água cai do céu todo mundo corre". Pensava ela enquanto caminhava tranquila enquanto a tempestade desabava sobre eles e também não se importava com o lamaçal no qual as suas botas se apoiavam. A sua maquiagem de palhaça desbotada se desfazia com os pingos de chuva a cair sobre o seu rosto. A tinta escoria pelo seu pescoço e roupa, dando um aspecto mais assustador e destorcido a aparência já amedrontadora.

Não sentia-se nem um pouco desconfortável, mas entendia o ponto de vista de Tora e Elan. Não era todos que se sentiam confortáveis na mãe natureza e com as suas manifestações. As pessoas falhavam em entender a natureza na sua essência. Piff! Quem era ela pra dizer isso? A druidinha palhaça das piadas ruins. Não tão ruins quanto as de Elan. Peidos com bolhas? Até a sua ultima piada parecia melhor que isso. Qual era mesmo? Ah não se lembrava, paciência. A falta de memoria minguava sempre o seu orgulho.

Parou ao lado dos dois e tirou a sua cartola molhada e surrada da cabeça:

- Boa noite rapazes! - saudou os dois guardas - Querem ver um truque de magica, meninos?

Botou a mão na cartola revirando lá dentro com uma expressão de esforço. Segundos depois puxou um coelho de pelucia maltrapilho com um sorriso e um bilhetinho preso na barriga. Estava escrito num garracho feio:

"Por favor deixe-nos passar "

Tudo transcorria como em todas as outras vezes que viajantes chegam em Monte Putrefato. Os corvos pedem para quem chega se identificar e dizer o motivo da visita, os viajantes obedecem e seguem seu caminho sabendo que serão vigiados por um tempo e depois esquecidos, sendo apenas mais alguns entre os moradores e comerciantes. Esta poderia ser mais uma vez em que estas coisas aconteceriam como deveriam, mas Orianna surgiu.

O guarda que estava próximo da druida, para quem Orianna fez seu truque, deu um passo para trás e ameaçou baixar a lança na direção da mulher, mas parou quando viu que a druida tinha apenas tirado um animal de pano. Se aproximando, ele leu o que estava escrito e depois encarou Orianna.

- VOCÊ PODERIA TER UMA PONTA DE FERRO ATRAVESSANDO O SEU PEITO AGORA, MULHER! TOME MAIS CUIDADO, TENTE ESCOLHER MELHOR OS MOMENTOS EM QUE VAI FAZER ESSES TRUQUES.

O outro corvo, que estava do outro lado da rua, se aproximou para ver melhor o que acontecia. Orianna sempre atraia olhares para si, mesmo quando apenas caminhava por algum lugar. O corvo que conversava com o grupo, visivelmente transtornado, aponta para a rua entre as casas.

- SIGAM POR ALI E ENTREM À ESQUERDA! TEM UMA TAVERNA CHAMADA "A INTROMETIDA E O ESTÚPIDO", ELES TAMBÉM TEM ALGUNS QUARTOS. NÃO SÃO OS MELHORES DA CIDADE, MAS TEM ÁGUA QUENTE E CAMAS SEM PULGAS, ALÉM DE UM BOM GUISADO - o corvo falava para Elan e Tora quando apontou para Orianna - E CUIDEM DESSA DOIDA!

Tora ouviu o que os guardas disseram e meio que para não destoar o ambiente disse em resposta Pode deixar. Vamos embora. Vamos. Fazendo sinal para ir na direção que os guardas apontaram e finalmente sair dessa chuva.

Elan desconcertado com o tratamento dado a Oriana olha feio pra ela, depois a esquerda e caminha um pouco na direção indicada antes de cair na gargalhada e abraça-la pelos ombros

Orianna se empertiga toda fazendo uma posição de continência para o guarda. Numa voz seria ela responde:

- Mas você está certo, senhor. Proteger e servir. Numa noite como essa, uma estranha palhaça vem oferecendo um truque de magica. Quem pensaria boa coisa? - ela para e abre um sorriso - mas divertido foi. A proposito adorei o nome da taverna que sugeriu não teria outro lugar para ir que senão esse.

Ela bota a mão no ombro do guarda fazendo uma saudação e segue para cidade.

- Vamos meninos, que a intrometida e o estúpido nos esperam. Será que lá tem piadas boas? - disse aceitando o abraço de Elan e sorrindo para ele de volta.

Sabe qual era o lado bom de andar com esses quatro? Não precisava arrumar um circo para ela, já tinha o seu próprio grupos de palhaços, além do mais não tem circos que não utilizam animais. Veja só junto com ela tem a mulher barbada sem barba, o domador sem animal e o bardo sem graça. Não era o grupo perfeito para ela?

Por Torag. Juro. Que nunca vou entender os humanos... Diz Tora.

sigo com meus companheiros até a taverna

Caminhar na chuva, depois do truque de Orianna, ficou um pouco menos incômodo para o resto de grupo. Para a druida, tudo estava tão bom quanto cinco minutos atrás. O problema era que andar pela cidade se mostrou um desafio ainda maior já que Monte Putrefato, como o nome sugere, é uma cidade erguida em uma colina. A correnteza de lama obrigava os quatro a caminharem com cautela. Mal viraram a esquina e a rua se tornou uma subida não muito íngreme, mas que demandava um certo esforço em lutar contra a enxurrada de lama. Era difícil ver muito do caminho já que a chuva impedia que qualquer tocha ou outra fonte de luz fosse acesa na rua, não havia lua ou estrelas no céu e as únicas coisas que iluminavam o caminho eram as eventuais velas nas casas ao redor. Ao menos a chuva parecia estar diminuindo.

Anthony e Tora seguiam pelo caminho com certa tranquilidade, mas Orianna e o bardo não estavam tendo tanto sucesso. Elan tinha abraçado a druida pelos ombros e, pega de surpresa por toda aquela lama, Orianna não conseguia se equilibrar muito bem enquanto andava. Um relâmpago cortou o céu quase no exato momento em que a druida escorregou, dando um grito e caindo quando a perna direita foi arrastada para trás. Em busca de algo para se segurar, a druida automaticamente se apoiou em Elan, que não conseguiu ficar de pé e caiu junto com a druida, gritando também. Orianna caiu de frente e Elan de lado, mas ambos foram arrastados pela lama até a esquina, próximo da ponte que tinham acabado de atravessar. Orianna e Elan estavam cobertos de lama, que escorria por cima dos olhos fechados e entrava pela boca. Os dois tentaram se levantar algumas vezes, mas as mãos e pés escorregavam, fazendo-os cair mais uma vez de cara na lama. Uma voz, que parecia mais distante do que estava, pode ser ouvida pelos dois enquanto lutavam para se erguer.

- EI! - Era o guarda que não tinha gostado muito do truque de Orianna - VOCÊS ESTÃO BEM?

Elan se conseguir se levantar termina de ajudar Oriana e depois de cochichar algo pra ela dizendo que a maquiagem dela nunca esteve tão bem responde de mau humor para o guarda:
-SIM e mais baixo, - maldita lama tudo certo contigo?

Tora genuinamente lamentava a queda de seus colegas nessas condições e disse Vocês estão bem ai? Querem alguma ajuda?

Quem precisa de uma mascara de maquiagem se tem uma de lama na cara? Pode parece legal, ficaria parecendo um monstro do pantano, mas na verdade era uma droga. Imagina quando jogasse água? Sua maquiagem ia sair e ficaria com o seu rosto a mostra, obviamente isso era ruim, não acha? Quem quer mostrar o seu rosto?

Após tantas tentativas frustadas de se levantar fechou os olhos e encostou a cabeça no chão lamacento desanimada. Será que teria que queimar os seus poderes para sair dali? Mas isso não faria perder a graça das coisas? Levantou a cabeça do chão olhando para o guarda e falou:

- Ei bonitinho não dá para vir aqui dar uma ajuda para jovem palhaça não? Aposto que você deve ter tomado palmada da mãe por ter espiado meninas trocando de roupa pela fechadura, que tal salvar agora uma garota enlameada?

Orianna recebia ajuda do corvo em quem pregara a peça ao mesmo tempo que Elan se colocava de pé sozinho.

- Eu nunca espiei ninguém - o corvo diz enquanto ajuda Orianna a se levantar - Agora você tem jeito de alguém que espiava os meninos tomando banho no rio.

Tony miseravelmente vê seu gesto altruísta se voltar contra ele quando as botas do guerreiro deslizam na lama, fazendo Tony "correr" para trás desesperadamente antes de cair de costas com um baque sonoro e um gemido abafado pela chuva. O guerreiro é arrastado através da lama até seus companheiros, já de pé e se limpando como conseguiam. Elan se sente aliviado ao ver seu instrumento intacto e a druida fica feliz ao ver que sua cartola não ficou amassada, apesar de estar toda enlameada. Tony estava deitado de costas no chão com a roupa e os cabelos cobertos de lama; a chuva, impiedosa, caída sobre o rosto do guerreiro, obrigando-o a fechar ou cobrir os olhos. O corvo que não tinha falado com o grupo e que pareceu ter achado graça do susto que o companheiro levou do truque de Orianna agora gargalhava sonoramente.

Tora, de onde estava, conseguia ver com certa clareza como estavam seus companheiros e sabia que não havia nada ferido além, talvez, do ego deles.