Sonho & Pesadelo
Amsterdam, 20 de maio de 1940.
A barriga roncava ao sentir o cheiro da chalá no forno, sua mãe é uma ótima cozinheira. Sexta-feira, em breve sua família, como qualquer outro lar judeu, estaria celebrando o Shabat, cumprindo seus devidos requerimentos de shamor e zachor (mantê-lo e lembrá-lo).
Aliza, a irmã mais velha preparava a mesa com as velas, o cálice em que o vinho seria santificado, tarefa do pai, na realização do Kidush.
Enquanto isso, a jovem Eliora lia Da Terra à Lua, um romance de ficção científica do escritor francês Júlio Verne, publicado em 1865. Contava a história de um pretensioso grupo, na tentativa de construir um canhão poderoso o suficiente para lançar um projétil até a Lua. A imaginação da garota se perdia com os pensamentos cotidianos, das matérias acadêmicas e do seu futuro, além dos pretendentes que já mostravam interesse casar-se com ela, mas era um assunto que não se interessava ainda.
Seu pai chega em casa com um complemento para a noite, chamando as filhas e a esposa para ver o que era. Ao descer as escadas para o andar inferior, primeiro via o pai abraçar a mãe e beijar sua testa, enquanto a irmã admirava a imensa torta de maçã na mesa. Parecia deliciosa, mas à medida que se aproximava da mesa sentia algo estranho, um líquido começava a escorrer dela, era... sangue.
Tudo fica escuro, um zunido corta o ar, gritos ressoam com muitos outros, sendo abafados pelos barulhos das bombas. O máximo que conseguia ouvir era sua irmã gritando, enquanto segurava sua mão, ordenando que a obedecesse, que estava cumprindo ordens do pai.
Eliora acordava suando, o sonho havia virado pesadelo, em questão de segundos começava a colocar a memória em ordem. A forma como Rotterdam foi atacada, sua irmã à guiando em meio ao desespero, como haviam chegado até Amsterdam e à casa daquele desconhecido, Markus, um amigo do seu pai. O porão era velho, mas incrivelmente não tinha mofo, apenas um cheiro de "livro velho", não que reclamasse, eram seus maiores companheiros.
Aliza estava encolhida na cama, tinham de dividir a mesma, 6 dias haviam se passado sem qualquer notícia dos pais. A irmã mais velha tentava segurar o choro junto desespero, mas tinham coisas que Eliora sentia sem as pessoas precisarem falar, ela não sabia como. Por enquanto tinham de ficar escondidas, como o anfitrião havia aconselhado, até entenderem a situação em que se encontram.
Lembrava um pouco seu pai, era metódico e tinha muitos livros, por sinal brigavam com eles por espaço e com outras "bugigangas" que Eliora não entendia pra que servia, mas parecia material pra produzir remédios, algo sobre química. Não sabia se podia confiar totalmente em Markus, mas não tinha escolha.
Um barulho assustava a garota, havia sido no porão, tinha medo de ser algum rato no meio das pilhas de livros pelo chão. Corria e pegava uma vassoura, empunhando-a para averiguar do que se tratava. A fonte do ruído havia sido um livro, que estranhamente havia caído de onde estivesse, sem derrubar nenhum outro ou desarrumar as pilhas de livros pelo chão e das pequenas estantes.
A recordação do sonho, com ela lendo o livro, era estranha. Porque não lembrava de um dia ter visto ou lido o livro, como nos sonhos saberia do que se tratava o seu conteúdo. Só havia uma forma de descobrir, pegando ele em suas mãos, abrindo e lendo... se não fosse um pequeno problema, estava em francês.