What I've felt
What I've known
Never shined through in what I've shown
Never free
Never me
So I dub thee Unforgiven
Era ela.
Enfim, era ela.
Durante toda a corrida pela floresta, Andrei parecia ter esquecido que era Garou. Corria em sua forma hominídea, esquivando de pedras e raízes, sentindo o ar invadir seu peito e queimar em seus pulmões. Tinha os olhos fixos à frente, procurando desesperadamente por ela. Ele sequer sabia como sabia que ela tinha corrido por ali, mas havia aprendido em suas andanças a conversar com seus instintos e a confiar neles. Em sua mente, as memórias do passado fervilhavam, acelerando seu coração muito mais do que a corrida jamais poderia fazer.
-"Um dia, Andrei, vamos pra Omsk. O trem sai da cidade, atravessa a Sibéria, é lindo. Vou te levar para assistir o balé no teatro"- o espírito de Sasha parecia sussurrar em seu ouvido
-"Algo de bom vai acontecer quando você for lá.”-Sentiu a mão pesar. Sentiu novamente o gosto do sangue em sua boca. Sentiu o toque frio da lança de prata açoitada pelo vento siberiano em sua mão. E a expressão de alívio nos olhos de Sasha quando seu espírito lhe abandonou.
Lembrou-se do Quebra Nozes. De como estava emocionado na platéia quando a Galliard de cabelos rubros flutuava iluminada no palco, com seus movimentos de gata. Lembrou-se de como ela o alcançou no vale mais escuro de sua vida, de como derreteu o
permafrost que cobria seu coração com aquele sorriso iluminado e o fogo dos seus cabelos e o trouxe de volta ao mundo dos vivos.
Andrei quase tropeçou no caminho pedregoso. Uma pedra rolara diante de seu peso, e ele perdeu o equilíbrio. Caiu com os ombros sobre uma árvore, mas se recuperou e ficou de pé, retomando a corrida desesperada.
- Lembranças daquele dia:
De perto, Andrei percebeu o quanto ela era pequena. Quando Yuri o apresentou e ela olhou pra cima, os olhos verdes dela encontram os azuis dele. Ela sorriu, e ele não soube muito bem o que falar, mas lhe estendeu a mão.
-“Você dança muito bem, Koshechka.”- Andrei tentou, atrapalhado, elogiar os movimentos da moça, sem atentar à conotação obviamente dúbia do adjetivo. O queixo de Yuri quase atingiu o solo e ele levou a palma da mão ao rosto. A ruiva apenas ficou confusa por um segundo, encarando o atrevido.
-“Você... acaba de chamar de gatinha? Audacioso.”- disse, mais divertida com a cantada repentina, não-intencional e fora de lugar do que necessariamente brava.
Andrei percebeu a trapalhada e imediatamente corou. Ainda com a mão estendida, ele tentou se explicar, gaguejando. A moça começou a rir, pois já havia percebido o mal-entendido e divertia-se com a timidez do moço do interior. E apertou a mão de Andrei, suportando seu desajeitado aperto de mão de ferro. Um encabulado Yuri imediatamente se desculpou pelo tropeço do amigo, e entregou seu ramalhete à moça, que o agradeceu educadamente. Yuri se aproximou e sussurrou ao ouvido de Gwen a identidade de Andrei como Garou, e os olhos felinos da ruiva imediatamente se estreitaram em curiosidade.
-“Eu havia percebido você na plateia. É difícil não notar um homem desse tamanho chorando feito uma criança.”- Ela se divertiu quando Andrei se revirou de vergonha ao fim da frase –“É sempre uma honra conhecer nossos irmãos. Que tal um café? Eu gostaria de ouvir algumas histórias.”- Ela disse, sorrindo para ele, e Andrei soube que seria impossível recusar.
Lembrou-se das brigas. De como ela estava enfurecida por ele ter matado aquele vampiro no bosque sagrado dela. Lembrou-se dela lhe ensinando inglês, rindo de seu sotaque arrastado e de sua dificuldade em pronunciar as palavras. Lembrou-se da careta que ela fazia ao tomar vodka. Lembrou-se dela lhe falando entusiasmada sobre Eça de Queiroz e de como ele teve vontade de aprender aquela maldita língua, pra que pudesse ler seus livros e conversar com Gwen sobre eles. Lembrou-se de quando corriam juntos em suas peles de lobo, Neve e Sangue, Aurora e Anoitecer, Serena e Selvagem, correndo pela tundra Siberiana. Lembrou-se de como seus olhos brilhavam e ela sorria ao ver as luzes no céu, e de como ele achava aquele sorriso mil vezes mais belo que a aurora boreal.
E lembrou-se da nevasca. Do tiro na escuridão. Do seu grito de dor e de seu sangue caindo na neve. Lembrou-se da Fúria o dominar e do medo no rosto dos vampiros.
A corrida desesperada pela neve com a pequena em seus braços olhando pra ele com olhos desfocados.
-"Mãos que ferem, mãos que protegem." Lembrou-se de como domou o Lobo Interior, engolindo a Fúria para manter a frieza e cuidar dela. Removendo a bala, limpando e fechando a ferida. Tirando as roupas delas e as suas para abraçá-la diante da lareira e dar-lhe o calor que precisava pra viver.
E lembrou-se daqueles dias na cabana, que Gaia os guarde pra sempre em seu coração. Daqueles dias sagrados, onde abriram seus corações um pro outro. Dias de verdade. Dias onde despiram as almas um do outro. Dos dias onde ele viu amor nos olhos dela pela primeira vez, e quando o Tabu se impôs entre os dois, levando-a às lágrimas.
Chegou a uma encruzilhada. A trilha corria para dois lados, e ele não sabia para onde ir. Sentiu a Fúria se agitar dentro de si. O Lobo uivava. Aquilo não podia acontecer. Ele não podia perdê-la de novo. Ergueu o queixo quando ouviu uma cachoeira no fundo.
Sentiu o cheiro dela. E tornou a correr com o coração aos saltos.
E veio a sua mente o dia na estação de trem. De como ela ficou em silêncio durante todo o trajeto da cabana até a estação. Da
via crucis que caminharam de mãos dadas, com o coração partido e os olhos ardendo.
-"Eu vou encontrar meu caminho de volta até você, koshechka"- ele disse pra ela quando se separaram do último abraço. Ainda carregava nas mãos a sensação dela lhe soltando e embarcando no trem sem olhar pra trás. O som agudo da campainha que indicava a partida ecoando pela estação e de como ela espalmou a mão pequena contra o vidro da janela quando o trem começou a se mover.
-"Não me esqueça"- ele disse a ela da estação e viu as lágrimas descerem dos olhos azuis até o queixinho fino.
-"Ya lyublyu tebya, koshechka"- Ele disse sem querer quando o trem já estava além de seu alcance, e orou que os espíritos não levassem suas palavras até ela.
E então a Fúria uivou em seu peito, tanto anos atrás na neve quanto agora na floresta. Quando tempo havia passado? Um ano? Dez anos? Ele se lembra do frio siberiano congelando a determinação em seu coração. Não importa o que acontecesse o Tabu seria desfeito. Ele a encontraria novamente. E ela seria feliz. Uivou para o céu em juramento que não descansaria até que aquelas palavras se tornassem verdade. Jurou pelo seu sangue, pela sua honra, pelos seus ancestrais e pelo seu amor. Custe o que custar. Haja o que houver. Daquele dia em diante, tudo o que ele faria seria para que aquilo acontecesse, e nem o Apocalipse iria o impedir.
E caminhou. Mãe, como caminhou. Percorreu os Urais e enfrentou horrores. Atravessou desertos e passou fome. Combateu vampiros nos Cárpatos e se arrastou pelas trilhas assombradas sozinho, ferido e assustado. Singrou mares revoltos e mergulhou em lagos profundos. Atravessou as florestas da Bretanha e enfrentou Dannu em pessoa. Encontrou camaradas e até mesmo a família que não sabia que tinha. Fez novas promessas e lutou novas batalhas. Lamentou novas despedidas. Caminhou pelo Sonhar ao lado do Povo Belo e lutou ao seu lado e contra eles. Cada dia desde aquele momento na estação de trem ele esteve mutilado.
Mas agora ela estava ali. De joelhos na cachoeira. Diante de si.
-"Gwen... eu encontrei você."- Ele disse ao entrar na clareira. Talvez ela achasse que essas palavras se referiam apenas aquele momento. Ela não sabia de nada. Ela não tinha como saber. Mas aquelas palavras eram o ápice de uma jornada desesperada e difícil. Que custou sangue, suor e lágrimas. Que lhe fez muitas vezes achar que não conseguiria. Que não teria forças. Mas que durante todo o caminho, aquelas lembranças agridoces o levantavam quando ele estava exausto. Davam forças aos braços lassos e às pernas doloridas. Que o mantinham aquecido nas noites frias. Que lhe davam um motivo pra viver e seguir em frente.
E agora ela estava ali.
Andrei nem ao menos percebeu que caminhava em sua direção lentamente, e ela em direção dele, como se atraídos por um magnetismo inexplicável, forjado pelas fiandeiras do destino antes mesmo que seus ancestrais nascessem. A floresta se apagou, a cachoeira silenciou e as estrelas não existiam mais, só havia ela.
Anoitecer Selvagem teve medo de tocá-la e ela desaparecer, como fazia todas as noites em seus sonhos. Mas quando ela tocou seu braço, ele sentiu o tão desejado, tão ansiado, tão esperado toque de sua
Koshechka, ele fechou os olhos verdes e pediu a Luna que parasse o tempo. Que dessa vez fosse real. Só dessa vez, por favor.
Não pôde impedir que uma lágrima rolasse quando ela espalmou as mãos sobre seu peito, a pele febril que ele lembrava e o cheiro suave que o entorpecia.
Cheiro de Gwen. Ela sorriu, e era impossível não sorrir junto com ela. Os seus corpos se colaram, e eletricidade percorreu o corpo inteiro de Andrei, arrepios inevitáveis no ar frio da noite. Ele conseguia ouvir o próprio coração batendo junto do dela. O mundo tinha sentido de novo. Agora tudo estava no seu lugar.
Até que enfim.
Ela tocou seu nariz e ele sentiu o hálito perfumado dela em seus lábios.
Gwenhwyfar escreveu:-"Andrei... eu senti tanto a sua falta... -
A Fúria uivou no peito do Ahroun, lhe lembrando de quem era. Não era mais possível resistir. E ele não queria resistir. Às favas o mundo. As mãos febris do Anoitecer Selvagem alcançaram as costas da ruiva e a puxaram para si, e seus lábios se tocaram em seu primeiro beijo.
Um beijo pela eternidade.
e Andrei poderia morrer agora de felicidade.