No meio da noite, Akemi desperta de seu sono, tossindo. Seus olhos e garganta estão ardendo, e logo a moça percebe que o quarto de alojamento que divide com os amigos está repleto de fumaça. A jovem olha ao redor, e percebe que seus colegas não estão mais nas camas. Vindo do lado de fora, é possível ouvir uma grande confusão se desenrolando. Gritos somados inconfundível som de metal contra metal denunciam que uma batalha perturba a tranquilidade noturna de Kyoto.
Ainda atordoada pelo sono, Akemi se levanta com dificuldade. Essas camas duplas ocidentais que foram colocadas pra economizar espaço no quartel permitiram que se dobrasse o efetivo das tropas alocadas no quartel, mas tornaram tudo mais desconfortável. Akemi preferia a cama de baixo, mas Yamada a havia reivindicado com vigor, e a jovem moça decidiu apenas evitar discussões inúteis. Kaito e Hiroshi decidiram a sua em uma emocionante e controvertida queda-de-braço, com as bênçãos do Capitão. Akemi jamais imaginara que uma disputa tão simples pudesse envolver tantas reviravoltas e viradas.
Após encontrar seus chinelos debaixo da cama, Akemi os calça, cobrindo o nariz com as vestes. A fumaça estava forte. A moça caminha até a porta do quarto e a abre, e a cena que presencia é desoladora. O céu noturno está tingido de laranja, e altas labaredas engolfam o quartel-general. O som da batalha ecoa pelo ar da noite, e a jovem samurai retorna rapidamente para o quarto enfumaçado, onde se veste o mais rápido que consegue e pega suas armas, correndo para encontrar seu capitão e ajudar os colegas na batalha que se desenrola.
Ao sair do quarto, contudo, uma estarrecida Akemi observa a realidade do campo de batalha alcançá-la de forma cruel. Deitado no chão, ao lado da porta do quarto, está o corpo de Hiroshi. Ainda usando roupas de dormir, sem espada em punho. O rosto redondo do amigo careca de grossas sobrancelhas, antes risonho e alegre, jaz congelado em uma expressão eterna de horror. Sangue e vísceras se derramam de seu ventre aberto. Akemi fica horrorizada e sente as lágrimas preencherem seus olhos, porém não tem tempo de chorar pelo amigo brutalmente assassinado. Os gritos de socorro de Kaito a chamam de volta para a realidade.
A varanda é composta por um piso de madeira encerado, com colunas elaboradas que sustentam o teto de telhas de cerâmica cozida. Do lado de fora há um pátio, onde normalmente se desenrolam os treinos da manhã. Ali, seu colega Kaito luta com um samurai bem maior do que ele. Kaito, que normalmente tem os olhos finos, os traz arregalados, conforme a brutalidade dos golpes de seu adversário o encurralam. Ele grita em desespero, chamando ajuda.
Akemi se aproveita do fato do samurai agressor estar de costas e distraído com as defesas de Kaito, e se aproxima furtivamente. Quando o inimigo está no alcance, Akemi flexiona o joelho da perna dianteira, e em seguida arremete para frente, em uma investida poderosa, golpeando o homem com a ponta perfurante de sua espada, transfixando-o.
O homem tosse sangue, e suas forças abandonam-lhe as pernas. O corpo do agressor cai pesadamente no chão, e Kaito sorri aliviado ao ver que foi salvo pela colega. Ele tenta se recompor, ainda está vestindo as roupas de dormir. Ele começa a prender os longos cabelos castanhos em seu
chonmage¹, enquanto diz à Akemi que os rebeldes monarquistas atacaram de surpresa o quartel general. Hiroshi foi pego assim que abriu a porta do quarto para ver o que estava acontecendo, e Yamada e ele deram combate ao agressor. Porém, eram muitos, e os dois acabaram se separando durante a luta.
Akemi pensa no Capitão Harada, mas se preocupa também com Yamada. Como o alojamento dos oficiais fica em outro prédio, do outro lado do complexo que é o quartel general, Akemi decide que será mais rápido se ela primeiro procurar Yamada no prédio dos alojamentos dos soldados, e só então irem se agrupar à décima tropa no prédio dos oficiais. Kaito agradece Akemi pela disposição em ajudar o amigo, e então anuncia que irá procurar pelo capitão. Ambos desejam boa sorte um ao outro e se despedem.
Rapidamente Akemi nota que o número de inimigos que invadiu o quartel é bem amplo. Diversas lutas estão acontecendo nos pátios e corredores. Um inimigo sai subitamente de um dos quartos, e a jovem e ele se encaram por um segundo, supresos pelo encontro repentino. Então, saindo do estado de surpresa, o samurai toma a iniciativa e parte pra cima de Akemi, que desvia do golpe do inimigo, girando o corpo e acertando-lhe sob o queixo, em um golpe vertical de baixo pra cima. O golpe é tão preciso e violento que sangue do inimigo respinga no teto, e seu corpo cai sem vida no chão.
A moça percebe que muitas das lutas que estão acontecendo nos pátios de treino e nos alojamentos estão desbalanceadas e pendendo em favor dos monarquistas. Então, ela decide ajudar em todas as que puder. E de fato, ela é muito útil. Em mais de uma ocasião, a intervenção de Akemi permitiu-lhe salvar a vida de colegas. Em uma ocasião, dentro de um dos quartos, Akemi nota um colega da décima tropa lutando sozinho contra dois agressores. A moça rapidamente entra no combate, equilibrando a disputa. O primeiro adversário estava distraído, e Akemi consegue feri-lo antes que ele se vire totalmente para dar combate. Com o adversário ferido, ela não tem dificuldades em dominá-lo e matá-lo após uma breve troca de golpes. Porém, assim que ela se vira para dar assistência ao seu colega, ela percebe que ele acaba de ser morto pelo adversário. Akemi sente o sangue subir-lhe à cabeça, enfurecendo-se pelo colega morto, e parte para cima do samurai, gritando. O inimigo percebe a chegada de Akemi e investe contra ela, e ambos começam a trocar golpes. Akemi percebe que o inimigo é habilidoso. Porém, um truque que seu irmão lhe ensinou quando crianças se mostra providencial. Akemi utiliza o cabo da espada, pegando o adversário desprevenido, e quebrando-lhe o nariz. O inimigo perde um segundo fatal, conforme o sangue lhe desce pela garganta e as lágrimas lhe cegam. E Akemi aproveita para acertar-lhe a garganta.
A jovem samurai continua sua busca por Yamada, dando assistência em todas as lutas que consegue ao longo do caminho, até alcançar o prédio do refeitório. Lá dentro, nota horrorizada que o martelo do inimigo bateu forte ali, pois vários membros da tropa Shinsengumi jazem dilacerados no local. Dois inimigos estavam ali, e se aproximam quando percebem Akemi.
Em desvantagem numérica, a moça decide se valer de sua agilidade e velocidade, assumindo postura defensiva e recorrendo à contragolpes. Ela se lembra de uma técnica de combate contra múltiplos oponentes, que consiste em correr e permitir que os adversários lhe persigam. Como eles possuem velocidades diferentes, eles tendem a se alinhar em fila indiana. Assim, Akemi pode virar-se rapidamente, golpeando o que estiver a frente da fila, para em seguida virar-se novamente e retomar a corrida.
Logo, Akemi alcança o jardim que fica do lado de fora do refeitório. Chegando lá, ela pega um pouco de terra com a ponta da espada e lança em direção aos olhos de um de seus adversários. Enquanto ele tenta tirar a terra dos olhos, o outro se aproxima sozinho, afobado. A jovem samurai é habilidosa, e se aproveita da afobação do inimigo e entra junto com o golpe dele, mirando atrás do joelho e cortando-lhe o ligamento cruzado. O inimigo cai, sangrando.
No mesmo movimento, Akemi gira o corpo e golpeia o adversário cego de baixo pra cima, acertando-lhe na axila esquerda. Com ambos os inimigos incapacitados no chão, Akemi lhes dá o golpe de misericórdia. Porém, quando se aproxima do inimigo manco, ele usa contra Akemi o mesmo truque que ela havia utilizado, lançando terra contra os olhos da moça.
Akemi, mesmo cega, sabe que o inimigo está manco. Então, ela sai do alcance dele saltando para trás. Porém, uma pedra arremessada pelo adversário atinge-lhe a fronte. Ela sente o sangue correr pelo rosto, mas consegue abrir os olhos a tempo de ver o adversário se aproximar com uma
wakizashi² em mãos. Porém, Akemi é rápida, e se aproveita de quando o adversário se desequilibra ao pisar com a perna ferida, abrindo uma brecha. O sangue do inimigo espirra, lavando a moça com ele.
Então, o som de um tiro ecoa, e Akemi o sente atingindo a sua cintura. A moça cai ferida, e observa um pelotão de inimigos armados vindo pelo corredor principal, que dá acesso ao alojamento de oficiais. A moça sente as entranhas se revirarem ao pensar na situação de Kaito e do Capitão Harada.
Eles atiram novamente, mas erram. Akemi vê as balas atingindo as colunas de madeira e o chão. A moça rola para longe e corre até o centro do jardim, onde um pequeno templo traz um altar que lhe serve como cobertura contra os tiros. Akemi sente a dor no quadril restringir-lhe os movimentos, mas consegue mancar a tempo até a cobertura, quando uma nova saraivada de balas atinge o altar, fazendo lascas de madeira voarem.
Akemi olha em volta, pesando suas opções. Ela encontra apenas um arco e uma aljava com algumas flechas, mas duvida que seria capaz de dar cabo de um pelotão inteiro de fuzileiros sozinha e armada apenas com aquilo. Mas, mesmo com tudo perdido, a moça decide lutar até o fim.
Então, um dos inimigos do pelotão de tiro é transfixado violentamente por uma longa katana. Akemi reconhece imediatamente a violência do golpe perfurante, e vê que o Capitão da Terceira Divisão, Hajime Saito, chegara em seu socorro e estava chacinando os inimigos a curta distância.
Um dos adversários quase atinge Saito pelas costas, mas cai morto, abatido pela flecha de Akemi. Saito se levanta e cumprimenta Akemi com um aceno de cabeça. Mas então, os olhos do capitão se erguem, observando atrás da jovem moça. Ele solta um breve “tsc”, e em seguida corre de volta para o prédio dos oficiais, abandonando o jardim.
Akemi se vira rapidamente, esperando encontrar inimigos. Mas, estarrecida, vê Yamada, muito ferido, se arrastando pelo corredor do refeitório, com um ombro apoiado na parede, deixando um rastro de sangue conforme avança. Uma lança está atravessada em seu abdome, e muito sangue está pingando dela.
-“Yamada!”- Akemi grita e corre em direção ao amigo. Ela tenta quebrar a lança, mas o objeto é muito firme, e não pode ser quebrado apenas com as mãos nuas. A força das pernas de Yamada lhe abandonam quando Akemi se aproxima, e ele cai nos braços da moça, que já sente as lágrimas lhe alcançarem os olhos. Akemi apalpa a barriga de Yamada, que geme de dor. O ferimento é mortal, a moça percebe.
-“Onde você estava, sua inútil? Porque demorou tanto?”- Ele diz, para em seguida tossir sangue.
-“Não... não...”- Akemi tenta estancar o sangue, mas ele sai aos borbotões. Ela não sabe o que fazer. Não sabe como salvar a vida do amigo. E, subitamente, percebe que Yamada havia lhe chamado de “sua inútil”. Ela olha para Yamada, com os olhos arregalados.
-“É, eu sei. Você deve ter suas razões. Ontem a noite, eu não tive coragem de dizer nada. Mas quer saber? Foda-se. Você é realmente linda. Talvez a gente devesse sair pra comer alg...”- e então a cabeça de Yamada pende pro lado, quando ele perde a consciência. Akemi percebe que o rapaz parou de respirar.
-“Yamada! Não!”- Ela tenta sacudi-lo, em vão. Olha ao redor, tentando pensar em algo. Tentando fazer algo. Mas nada adiantaria. Ela aceita o destino de seu amigo com um grito de dor, e abraça o corpo do rapaz. Ela fecha os olhos dele, com suas lágrimas lavando o rosto ensanguentado do jovem rapaz.
-“Desculpe não ter chegado a tempo... desculpe por ter mentido...”- arrependimento e frustração fazem a voz de Akemi falhar em sua despedida. Ela abraça forte o rapaz mais uma vez.
Mas a batalha não dá trégua. O Bakumatsu é impiedoso a todos, e não respeita o tempo de lamento aos queridos que se vão. Passos ecoam pelo corredor, e Akemi vê um grupo de três samurais se aproximar pelo corredor de acesso ao prédio dos oficiais. Ela pega a espada e se prepara para lutar, para vingar Yamada. Mas, rapidamente percebe que não daria conta de tantos inimigos ferida, e que apenas morreria em vão. Então, lançando um ultimo olhar ao corpo do amigo, Akemi corre, abandonando o corpo de Yamada às chamas e tentando alcançar o refeitório, sob uma chuva de balas que ricocheteiam nas colunas de madeira.
Akemi usa a espada e corta a parede de papel, entrando no refeitório. Lá dentro, ela percebe que o fogo está intenso. Pedaços do telhado estão caindo. A fumaça é intensa e a moça pode ouvir o prédio ranger, prestes a colapsar. Contudo, se ela puder alcançar a cozinha, e então a despensa, ela pode chegar à porta dos fundos que dá para a rua de trás, fora do quartel.
Ela chega à cozinha a tempo de ver dois homens saírem da porta que dá acesso à despensa. Eles olham para a jovem shinsengumi, e pavor faísca em seus olhos. Eles gritam “Protejam o chefe!”, e então partem para cima da moça.
O primeiro avança contra Akemi, mas ela apara o golpe. Ela estava prestes a contra-atacar, mas precisou se esquivar de um golpe do segundo. E quando a moça deu um passo para trás para esquivar do golpe surpresa, o primeiro atacou de novo, errando a garganta de Akemi por um fio de cabelo. A moça sente o arranhar do pequeno corte superficial que o ataque fez em seu pescoço.
Ela segura a espada com mais firmeza, e os inimigos tentam de novo a mesma estratégia. Mas, dessa vez, Akemi estava preparada. Depois de bloquear o primeiro golpe, a jovem já sabia que o segundo samurai iria avançar. Então, ela se adiantou e avançou antes dele, cravando a katana no olho direito dele.
Contudo, o primeiro inimigo gira o corpo depois que Akemi passou por ele, em um golpe circular que acerta as costas de Akemi. A moça solta um grito de dor. As feridas começam a se acumular, e Akemi sente a vista embaçar.
O samurai avança sobre a moça, dando golpes poderosos com a sua espada, e Akemi tenta se defender, mas sua própria espada parece lhe trair, ficando muito pesada. Um dos golpe do inimigo é tão poderoso que faz Akemi soltar sua espada, deixando-a cair.
O inimigo sorri e parte para cima tentando finalizar Akemi, mas ela alcança uma pesada panela de ferro e gira o corpo, acertando o inimigo na orelha com ela. Ele fica tonto por apenas um segundo, mas é o suficiente para que Akemi saque sua Wakizashi e a crave na jugular do adversário, que cai morto imediatamente.
O fogo ruge feroz enquanto devora o quartel general, e a moça percebe que precisa sair o quanto antes. Está mancando, com a vista escurecendo e a respiração ofegante. Perdeu muito sangue de suas várias feridas, mas consegue alcançar a porta dos fundos.
Quando abre, sente a lufada de ar frio noturno revigorar-lhe. E então, percebe um jovem Shinsengumi, coberto de sangue, observando-lhe da rua. Akemi reconhece o próprio rosto na figura que a observa. Seu falecido irmão.
-“A-akira?”- Akemi está muito confusa, sentindo a consciência se desfazer aos poucos.
-“Akemi...”- a voz de Akira lhe é infantil.
E então Akemi desperta, empapada de suor. Os primeiros raios de sol começam a entrar pelas frestas das janelas, tocando gentilmente o rosto da moça. Na cama de baixo, Yamada ronca alto, com a mão dentro das calças, coçando o saco enquanto dorme pesadamente. Hiroshi e Kaito estão na beliche ao lado, já se levantando para os treinos da manhã.
- ”Notas”:
¹- Coque samurai
²- espada curta