2019 anos na contagem da Civilização Ocidental. 13º dia do 4º mês. 20h. Um sábado quente.
Àquela altura o mundo não havia, ao menos alegadamente, acabado. Mesmo que fosse possível argumentar que as almas dignas tivessem já sido arrebatadas, seja por um Deus qualquer, seja por aliens. Apenas o resto ficara para trás.
Numa faixa estendida à parede dum amplo salão de festas, lia-se (em letras garrafais):
Em um canto, uma farta mesa com decoração temática sustentava vários aperitivos e canapés de aparência elegante. Eram bastante convidativos e pareciam caros demais para os bolsos presentes.
Ao centro, cadeiras formavam uma mandala que dava ao ambiente a aparência de uma reunião dos Alcoólicos Anônimos. Ou qualquer grupo de autoajuda a ex-viciados ou pessoas em recuperação. A decoração, entretanto, era alegre e festiva. A organização havia sido atenciosa aos pequenos detalhes, com imagens de dias glória e recortes de jornais espalhados pelas paredes.
Um balão estourara, lembrando de longe o disparo de um revolver.
Algo difícil de não notar era que seja lá quem tivesse preparado tudo havia – claramente – superestimado a adesão àquele convite: o luxo de uma festa de casamento em um deprimente aniversário ao qual ninguém comparecera. Aquela era uma ocupação em franco declínio, umas poucas criaturas ou ainda crentes no potencial delas ou sem alternativa a não ser permanecer na luta.
A cada ano, menos integrantes compareciam.
Entre as poucas presenças, apenas uma parecia sinceramente animada. O que a dava um tom algo ridículo. “O pessoal deve estar bastante ocupado hoje, hein? Sábado é um dia agitado para o combate ao crime”. A tom de voz desagradável, o porte mirrado e o tom de pele escuro denunciavam a identidade do esquisito “Aurélius”, conhecido de uma ou duas caras ali. Isso considerando que aquele uniforme exagerado e pouco prático era diferente do exibido na última vez: com um grande “P” no peito, pedia agora para chamarem-no de “Prestidigitador” – por mais que ele mesmo se embolasse para pronunciar a palavra às vezes.
Parecia não se dar conta de que eram a “última linha de resistência”. Seria o patrocinador daquela edição da reunião?
Pulando o espaço de dois bancos vazios, o “City Ranger”. Era uma figura querida no meio, apesar de nunca “desligar” o “modo defensor”, sendo difícil engajar uma conversa “normal” com ele. Isso era desculpável, uma vez que tinha o costume de aparecer na “hora H”, sendo sempre uma ajuda valiosa.
Trazia com ele o próprio mascote, o “Kaiju”: um simpático vira-latas de trajes militares.
Distante do círculo, mas atenta a toda a movimentação – qual rapina observando indefesas presas –, era possível encontrar a “Exterminadora”. De praxe, vestia a máscara favorita dela: uma cara entre o antissocial e o irônico, expressão de poucos amigos. Levava a tiracolo um capacete vermelho que combinava com alguns detalhes sobre a vestimenta preta que usava.
Apesar de ter comparecido, parecia pronta para abandonar o grupo. “Que perda de tempo...” murmurara um tanto quanto alto. Era óbvio que não se via como parte daquele espetáculo decadente. Não, não ela. Estava ali para fazer a diferença. Custe o que custar.
Igualmente fora do círculo, mas numa área oposta, um herói mantinha-se isolado e de costas para aquilo tudo. Com a respiração embaçando o vidro de um janelão, observava o movimento da rua abaixo. Era o Senhor Oculto. Parecia compenetrado, perdido nos próprios pensamentos, distante de toda aquela situação vexatória.
Paradoxalmente, havia sido ele próprio a reforçar por mensagem o convite àquela ocasião – não descartando quem tenha levado um susto com aquilo: “Mas como ele conseguiu meu telefone?!?!”
Nem todo mundo, obviamente, havia recebido tal solicitação. Devia contar com comparecimentos inesperados. E talvez até preferisse certas ausências.
“Bem”, começara o Prestidigitador, claramente feliz por estar entre pares. “Daqui duas semanas tem o POPCO-R-N”. Como era sabido da maioria, aquela era uma famosa convenção de adolescentes fãs de quadrinhos, animes e cultura pop em geral. Dentro dele, um espaço particularmente interessante àquela classe, o “Herocon”, setor voltado à “cultura heroica”. Lá, muitos cosplays vestiam-se como figuras da mídia ou inventavam personas para autoexpressão. Apesar do roleplay, ninguém ali realmente se arriscava na “profissão”. Justamente nesse sentido a participação de “exemplares legítimos” era requisitada. “Não é muito, mas são $150 de cachê. Quem quiser ir, é só colocar o nome na ficha...”. Melancólicas fotos para redes sociais com fãs das antigas e um tanto de pessoas meramente curiosas. Era uma forma típica de celebridades esquecidas conseguirem sobreviver à aposentadoria. Digna, apesar de algo triste.
Enquanto falava, a prancheta de assinaturas circulava, recebendo os nomes a serem inclusos na divulgação.
Afora o próprio "Prestidigitador", o "City Ranger" fora rápido em colocar o nome na lista.
“Ah!”, voltou ele subitamente a pedir atenção. “O Artífice pediu pra circular esses panfletos aqui...”. Eram anúncios da reinauguração da “Sala de Guerra”, uma loja especializada em produtos de apoio ao combate ao crime: desde armas personalizadas a itens menos ortodoxos. Muitos uniformes ali haviam sido feitos, ou ao menos reparados, por ele – que não atuava nas ruas, mas sempre usara, desde o princípio, uma fantasia.
- Ele pediu pra distribuir esses brindes aqui - eram “nadadeiras de mão”, simples, porém potencialmente úteis.
“Eu... eu... eu tenho algo que queria dizer”, iniciou o “City Ranger” de forma tímida, truncada, retirando desajeitadamente a máscara que lhe cobria a face. Ninguém ali tivera antes aquela intimidade e a reação geral estava mais para o espanto.
Tinha um rosto absolutamente comum, daqueles que se perde facilmente na multidão ou na memória. Não era particularmente bonito ou feio, sagaz ou tonto. A única coisa realmente marcante era o fato de estar abatido. Bastante.
- Eu... eu estou doente – Aquelas palavras causaram um desagradável silêncio de tensão. Vista aquela cena, não devia ser uma “gripe”.
E não era.
Após uma rodada de explicações sobre a condição que enfrentava, uma de difícil tratamento, virara-se para aquelas estranhas companhias com uma pergunta bastante direta.
- Seria possível que... se cada colega doasse $50... Seria possível?