A fome devia ser enorme pra justificar aquele cachorro coberto de sarna lambendo o sangue do chão, ignorando o estrondo do tiro, os gemidos de agonia vindos do rapaz esquelético e os berros do senhor em frente ao carro com a porta da frente aberta: “... pra aprender a respeitar os outros, vagabundo!”. Uma música sobre “dinheiro” e “piranhas” escapava o veículo, trilha sonora daquela “cena”.
Os pneus carecas da moto mal tinham parado de girar quando os primeiros celulares apareceram no cruzamento, aparentemente mais interessados em registrar a situação do que em ligar para uma ambulância ou qualquer outra autoridade.
Por trás do capacete de tubarão, o garoto chorava e dizia coisas sem sentido, gritando pela mãe. O segundo disparo, finalmente, afugentou o cão de focinho empapado daquele mel avermelhado.
Era uma esquina movimentada, apesar de ser um bairro residencial. Muros de condomínios eram as paredes de um labirinto monótono, tétrico. Ao menos era a visão de quem passava por ali de carro.
Aquela cidade era a barbárie. 3,5 milhões de almas num assentamento denso, superpopuloso e dividido entre um universo paralelo artisticamente desenhado, uma dimensão descolada da maioria dos problemas comuns – invadida apenas pela violência fora de controle –, tendo como chave única dos próprios portais o dinheiro. E o resto.
O que sobrava, apartado disso, o “mundo real”: favelas verticais e horizontais – se é que pode se considerar os blocos de precários conjuntos habitacionais como algo “deitado” – nos quais a disputa tanto pelo espaço individual quanto pela proximidade dos empregos sempre cobra um caro preço.
Quanto mais oferta, menos o valor da vida no mercado.
A transição entre as margens urgindo como um sonho comum para muita gente, um pesadelo de luta diária para boa parte, ou simplesmente um desejo abandonado para outro quinhão, “o inalcançável” para quem assim o conseguia ver. E a terrível obsessão para quem se deixa cegar pela sedução de um brilho mortal.
Era domingo, o dia seguinte ao Encontro Anual de Vigilantes. No condomínio Rosa de Ouro, o delegado afastado Julian acompanhava um jornalístico local, entediado, com uma garrafa de uísque pela metade ao lado da poltrona.
As outras, vazias, espalhavam-se pelo chão da sala.
O vento agitava as árvores naquela noite, enquanto algumas nuvens, tapando a lua nova, jogavam um pano sobre a feiura daquela cidade.