-Ignorância realmente é uma benção, o fim da humanidade está espreitando com olhos disformes ainda desfocados pela água. Mais antigo que a humanidade, a semente de seu fim, de nosso fim aguarda, com uma paciência que era quase infinita, mas que agora está acabando. Por eras jazia como morto e agora sonha prestes a despertar. Mas me adianto.
Vivi minha vida por poucos anos, porém vi mais do que deveria ter visto e fiz mais do que a maioria, cuja existência só não é miserável por causa de pequenos vícios, já fez. De minha infância não falarei nada, pois nada é realmente importante. Assim que eu pude, viajei muito, e foi assim que eu acabei no meio do pacífico, naquela ilha.
Canções à beira da praia, a sensação de pertencer a alguma coisa, uma vida simples e sem preocupações. Convivência fácil, sexo livre e música, a bela música de percussão com compassos irregulares em uma ilha perdida no meio do oceano. Corpos firmes e bronzeados. Cantos em uma linguagem estranha que fazia com que a cabeça ficasse leve e o corpo formigando. Rituais cada dia mais complexos, transes espirituais, hipnose e auto-conhecimento.
O poder do sangue ritual é assustador no início depois se torna de certa maneira belo e poderoso, o próprio peso da faca de sacrifício e a sensação profana de poder que envolve os últimos segundos antes dos movimentos rápidos e o silêncio antes dos gritos. Da visão do sangue sendo espargido na areia branca e da música ser novamente liberada no mundo, dessa vez em compassos mais rápidos e cadenciados. Sacrifícios cada vez maiores e mais elaborados, sangue e música, sexo e sal.
A alegria obscena de saber que a cidade perdida e suas construções assimétricas encontra-se logo abaixo de nossos corpos, pronta para se erguer do mar, o cheiro de podridão, areia sal e umidade aguardando do outro lado do véu que separa o mundo da superfície do mundo real.
Assisti e ajudei a preparar produtos obscenos, utilizando-se fungos antigos, material animal e restos de sacrifício para serem utilizados escarificando-se na nossa pele, esfregado em mucosas ou ingeridos. Dias procurando em pântanos fétidos por determinados anfíbios coloridos, plantas desconhecidas e cogumelos de aparência monstruosa.
E depois dos rituais, mais danças, mais sexo e mais violência. Lentamente o conhecimento oculto foi trazendo a nossa insanidade à tona. O conhecimento nunca irá libertar ninguém, pelo contrário o conhecimento trás apenas desespero. Ai do mundo porque ele despertará, o tempo infinito está acabando e o sonho dos Antigos vai ter fim.
Conto essa história porque aqui onde estou, presa, nessa sala acolchoada, não poderei escapar do fim da humanidade, o mundo não irá acabar, apenas nossa, aliás a vossa, realidade. Mas você deve orientar todos. A escapar. A corda no pescoço, o aço fundo na carne ou algumas gramas de chumbo quente nas têmporas; quem não conseguir fugir irá sucumbir ao conhecimento.