Como a rês que, ignorante, caminha pacífica ao abate, a pequena comitiva marchava rumo à floresta ressequida, missão com mais cabeças do que se preveria inicialmente: iam Arthur e Bergil, os que despertaram-se no mesmo instante, na mesma desolação pútrida, e também Rossengwen, que, igualmente renascida no pôr-se de toda a esperança, encontrava agora novos pares.
Mas acompanhava o grupo também a taciturna Ignastácia, a vestida para a guerra, e com ela vinha Axcelandria. Aquela última aliança, inusitada, anunciara-se apenas quando já encontravam-se às beiradas do acampamento.
– Algo me diz que serei necessária – resumira ela depois de um acordar agourento, evitando entrar em detalhes.
Isso porque a noite – ou o período de escuridão em que se decidira por sustar as tarefas coletivas – fora intranquila.
Ao longe, lamentavam-se, ou será que riam-se?, os cães de Morgoth, cortando erráticos os ermos em matilhas fétidas que infestavam e afastavam tudo. Mas o problema havia sido os sonhos. Sonhos ruins.
Havia angustia de se deitar e levantar na mesma ausência de luz, transformando o sono num intervalo desorientador. Passara-se cinco minutos ou 4 horas? E talvez por conta daquela inquietação – não fosse a vida às margens do fim desesperadora o suficiente –, imagens de horror assaltaram todo mundo do assentamento, deixando almas pesadas e corpos cansados. Nelas, criaturas espreitavam às sombras, sereias raivosas entoando canções de ódio para afundar de uma vez por todas aqueles navios fantasmas guiados por capitães em frangalhos. Aparentemente, nem ali, de olhos fechados, podiam encontrar descanso.
O desjejum não fora agradável, um ensopado de cogumelos e sangue de warg fervido e sem tempero algum. Não era menos amargo que a conversa do encontro anterior.
- Não há lugar seguro – lamentara a senhora a Arthur antes de se deitarem –. Há orcs e outros perigos. Dizem que algumas cidades não só se renderam, mas seus governantes se aliaram ao Inimigo em troca de clemência ao próprio povo... e algum poder para si.
Tal informação era uma lástima terrível, mas não de todo inesperada. A Raça dos Homens era conhecida por ser mais suscetível à sedução pela corrupção. “E mesmo se houvesse, ainda há o perigo de chegar até lá. Nossa esperança é de nos mantermos longe de antigas estradas e ajuntamentos. As terras de Barin Norte e Barin do Sul são vastas e pode ser que haja aqui e ali algum esconderijo. Aproximarmo-nos da costa é uma opção, mas mais temerária. Saqueadores podem nos avistar. Mas não se preocupe, teríamos que nos perder muito para esbarrar nalguma cidadela dessas. A preocupação maior é com a movimentação de exércitos e batedores. Se eles nos acharem...” .
Aquilo não fora a última má notícia que Arthur tivera que ouvir antes de achar algum canto para se acomodar.
- Talvez, se revolver o solo com uma pá... Pois de Minas Tirith, o que a terra não engoliu, o vento e a chuva lavaram. No lugar, esperaria encontrar a fortaleza portuária de Torrealta do Oeste, ou o que tenha sobrado nos ataques. Mas essa era apenas a mais nova das fortificações a se erguer lá. Outras vieram antes. Mas pode ser que haja alguma catacumba perdida guardando segredos de outras eras... .
De anões e outros povos, o mesmo se dera, ela disse. Após o último dos elfos pegar o último dos barcos para Aman; depois de a vida do derradeiro retardatário ter se esvaído; não muito depois, as outras raças livres também desapareceram, sobrando apenas humanos e as guerras deles; e os Poderes não mais interferiram nas tramas em que eles próprios se enveredaram, por mais terríveis que fossem.
Quando se colocaram em movimento, a Foice dos Valar seguia rasgando o céu sem Sol ou Lua, indicando-lhes as direções. Nuvens de fumaça que pareciam ter fogo dentro seguiam rumo ao Sul. A visão, já mais acostumada, ainda assim era dificultada naquela realidade lavada em cinza escuro e triste.
Cada integrante da peregrinação trazia uma daquelas tochas de carvão vulcânico, assim como uma pederneira para acendê-la. Mas apenas a soldada metálica clareava o caminho. “Melhor economizarem”, pedira o camponês encarregado do estoque. Só cedera uma pedra para cada. Por sorte, tinham apenas dois dias de trilha pela frente – esperando que não demorassem a concluir se havia ou não água lá.
Além de um cantil, receberam um pouco daquele bolo de viagem de cogumelos, minhocas e besouros, cujo sabor de terra não ajudava muito a refeição depressiva.
Ganharam também cada uma espada de fio simples e um arco amador, além de roupas mais apropriadas à viagem – as quais, infelizmente, não eram armaduras em si.
Ao menos poderiam se afundar sob capas e capuzes para descansar no trajeto, uma vez que seguiam leves, sem material de dormir ou cozinhar.
Questionada sobre ser mais sábio dividir as armas que Ignastácia trazia, de qualidade indubitavelmente mais refinada, ela nem considerara tal questão. Pretendia ir e voltar com notícias sobre alguma fonte, mesmo que ela fosse a única a fazê-lo. Não iria diminuir as próprias chances de sobreviver ao apocalipse.
– Essa terra deve ser tão estranha para você, Rossengwen – lançara Axcelia, puxando o assunto –. Disse que perdera a vida na distante de Guerra da Ira, quando Arda era ainda jovem, apesar de muito antiga.
A velha cobria as roupas com um pano gasto, dum avermelhado escovado e desbotado. Não precisava de apoio, mas pegara uma vara de madeira, talvez da sustentação da própria barraca. Poderia ao menos usá-la para bater nalguma coisa. Tinha também à cintura uma lâmina e uma sacola de tralhas.
“E das terras de Beleriand”, continuara, “pouca coisa restava mesmo nas épocas de Bergil. Das antigas terras Ossiriand, ou Lindon, apenas Forlindon e Harlindon restaram, além das próprias Montanhas Azuis, as Ered Luin, das quais hoje apenas vemos os cumes, ilhas de infames piratas. Mas as terras de cá não são de todo desconhecidas da sua gente, não é mesmo? Pois Cuiviénen, onde os Vanyar de Ingwë, os Noldor de Finwë e Teleri de Olwë pela primeira vez despertaram e viram as estrelas de Varda, ficava desse lado do mundo, em um lugar perdido para lá da Lakma do humilde mapa que puderam ver”.
Da 1ª Era ela vinha, e das guerras que vieram depois pouco poderia saber. A Terra-Média dos outros dois era uma realidade afastada.
- Mas nos diga mais, se quiser. Temos tempo e a conversa afasta da mente a lembrança do cansaço.
Ignastácia claramente preferia o contrário. Novamente seguia muda, escondida sob a grande armadura. Falava mais através das armas ou, de quando em vez, apontava algo pelo caminho. Principalmente porque quanto mais seguiam, mais fácil era encontrar rastros daqueles animais pestilentos, principalmente agora que viam-se já às bordas dum emaranhado esquálido de galhos retorcidos. Restava entrar, mesmo sem garantia de tornar a sair.