- Você não deve ir sozinho. É tempo de você pertencer à uma matilha. Assim serão melhor tratados na outra seita e terão mais chance de descobrir alguma coisa. Esperem aqui, vocês dois.
Pela segunda vez na vida, Megumi Testemunha-das-Estrelas tinha me pego de surpresa.
Uma matilha? Mas já?
Sem perceber, ergo uma sobrancelha em sinal de pura confusão, para logo depois ceder lugar a uma pensamento mais racional. Ao me treinar no Kailindô, Megumi tinha me ensinado que mente e espírito são tão fortes e necessários quanto fúria e intinto, e que o segredo era tentar manter homem e fera, corpo e espírito, em equilíbrio.
Não que fosse uma tarefa fácil.
Todavia, as coisas eram como eram, e eram como deviam ser. Não havia razões para questionar a sabedoria da Anciã.
Então, restava esperar.
- Posso te mostrar alguns dos meus esconderijos, mas não todos, senão não vou ter onde me esconder de você! E de qualquer jeito você nem ia caber em alguns deles...
Pela primeira vez em muitos dias, eu me permiti rir. Uma gargalhada despreocupada e natural, algo que nem parecia caber na caranca de um métis mal encarado. Sangue-na-Neve sabia ser uma companhia muito divertida, afinal.
E por que você iria querer se esconder de mim, lobinha? Você sabe que eu não ia sobreviver dois minutos aqui no Caern ou lá fora sem você para me proteger!
A gargalhada diminui para um riso mais contido, mas ainda bastante largo e descontraído, e bagunço os cabelos de Sangue-na-Neve, de brincadeira.
A companhia da pequena fez o tempo passar rápido, e por um momento afastou da minha mente as preocupações com Urso, com a viagem ao outro Caern e mesmo com o fato de eu não me encaixar em lugar algum, até o momento.
E então Testemunha-das-Estrelas retorna, e não está sozinha.
- Esses são Fúria Sonora, hominídea galliard fúria negra; Morde-a-Wyrm, lupino theurge uktena; e Pé-no-chão, hominídeo ragabash peregrino silencioso. Junto com Sangue-na-Neve e Tornado-de-Sangue, vocês deverão formar uma matilha equilibrada antes de ir para o Caern do Grande Urso Pardo. Hoje à noite faremos o ritual para ligá-los a um totem. Até lá, podem se acostumar uns com os outros.
Aquilo definitivamente era algo muito novo.
Eu já tinha visto os Garou diante de mim e de Sangue-na-Neve no Caern, mas nunca tinha interagido
realmente com eles. Na verdade, nem sabia se, até aquele momento, eles tinham notado que eu
existia.
Constrangido, aceno a cada um dos outros lobisomens, quando me são apresentados. Não tinha muito jeito com essas coisas. Eu sabia lutar, e sabia matar, mas não tinha outras aptidões, e sabia bem disso.
- É um prazer conhecer vocês, eu sou Sangue-na-Neve, muito prazer.
Sangue-na-Neve toma a iniciativa de
quebrar o gelo, e inicia uma conversa com os recém-chegados. Permaneço atento, mas quieto, e instintivamente farejo o ar, tentando reconhecer o odor característico de cada um deles. Isso poderia ser útil mais adiante, afinal.
- Pode me chamar de Zoe, que é meu nome humano. Zoe Lang. Se vamos para o outro caern, é melhor todos termos nomes para usar com os humanos.
Zoe "Fúria-Sonora" Lang, uma hominídea Fúria Negra, lua-quase-cheia. Ao farejar, sinto um cheiro doce, um perfume de flores (provavelmente) que eu não era capaz de identificar, ainda. Ela falava bastante, como era típico dos hominídeos, e lembrava que, em dois mundos, eram necessários dois nomes, duas identidades... Tolice ou inexperiência, eu não havia pensado em nada disso, até aquele momento.
Pela primeira vez me ocorreu que, fora do caern, certamente minha singularidade, os olhos de Leão, poderia se revelar (mais) um problema.
- Isso é uma boa ideia. Meu nome é Matt Tyson, e posso ajudar vocês a conseguirem documentos se não tiverem identidades humanas ainda.
O segundo a falar, Matt "Pé-no-Chão" Tyson, também era hominídeo. Seu odor misturava suór com um cheiro mais ácido, cítrico. Havia nele uma nota de fuligem (fumo, talvez? ou quem sabe só o cheiro de cidade humana?).
Ele
evolui o argumento de Zoe e fala em documentos. Eu não entendia muito bem o que eram "documentos", mas sabia que os hominídeos tinham o hábito de usar papéis para dizer o que as coisas eram. Até onde eu sabia, "documentos" serviam para dizer aos homens o que nós somos. Preciso perguntar mais a respeito, em algum momento.
- Eu não tenho papéis humanos, mas meus Parentes de duas patas me chamaram de Will Mohawk.
Will "Morde-a-Wyrm" Mohawk. Eu saberia que ele é um lupino com os olhos fechados. Tem cheiro de lobo, muito mais que os outros. Tem cheiro de terra molhada e orvalho, odores muito mais familiares que os dos hominídeos.
Também poderia dizer que ele é um lua-quase-nova sem muita dificuldade. Há algo decididamente estranho em sua presença, como se a Umbra o estivesse tocando mesmo no mundo físico, ou como se os espíritos estivessem estalando como faíscas ao seu redor.
- Eu nunca tive outro nome além do meu garou que a Megumi me deu...
Eu não conhecia
de verdade o passado de Sangue-na-Neve, nem seus pais, mas sabia que a pequenina tinha nascido e sido criada no caern. O mundo de lobos e homens era estranho para ela, assim como era para mim.
- Não tem problema, podemos arrumar um para você agora! Vejamos, Sangue na Neve.... que tal Samantha Snowblood? Podemos apelidar você de Sam!
Zoe rapidamente sugere um nome humano para Sangue-na-Neve e a pequena gosta do que ouve. Samantha Snowblood... Sam... Eu teria que me acostumar com o novo nome...
- E você, grandão? Precisa de ajuda também ou já tem alguma ideia?
O Peregrino Silencioso me arranca das minhas próprias considerações e me lança, novamente, naquele momento confuso e desconfortável. Um nome de homem? Qual nome? Papéis de homens? O que
realmente significavam? Que valor e utilidade teriam?
As gargalhadas e descontração de outrora cedem lugar a um constrangimento genuíno. Abaixo um pouco a cabeça, em dúvida. Não sabia o que dizer ou fazer.
As lições de Testemunha-das-Estrelas voltam à mente. As coisas são como são, e aqueles Garou seriam uma nova parte da minha família, afinal. Não havia motivos para não ser sincero com cada um deles, nem para desconfiar que não fossem leais - bem, talvez o Ragabash nem tanto...
Meio atrapalhado com toda a situação, finalmente quebro o silêncio.
É um prazer conhecê-los, cada um de vocês. Peço perdão se eu parecer desajeitado, mas isso é tudo muito novo para mim. Eu sempre vivi e lutei sozinho, até que Testemunha-das-Estrelas me trouxe até aqui, e Sangue-na-Neve... Agora também Sam, não é mesmo?... Decidiu se aproximar de mim.
Acho que vou precisar de alguma ajuda... Não só com o nome de humano, mas também com os costumes deles... Não conheço nada do mundo fora deste caern. Também não conheço o mundo dos lobos. Nunca tive a oportunidade de correr com parentes pela mata, ou caçar com eles.
Sou um bom lutador, mas no momento, não sou muito mais do que isso.
Não sei se Testemunha-das-Estrelas já tinha falado a vocês algo sobre mim, mas sou Tornado-de-Sangue, Ahroun dos Portadores da Luz Interior, antes um filhote perdido que estava entre as presas da Wyrm.
Procuro uma pedra próxima, e me sento, convidando os demais a que fizessem o mesmo, com um gesto. Não sei se aquilo era o certo a se fazer, mas foi o que meu coração sugeriu.
Não sei muito do mundo, mas gosto de histórias. Se vamos formar uma matilha, acho que gostaria de saber um pouco de cada um de vocês, e de falar um pouco de mim, também - depois que conseguir escolher um nome humano, claro...
Rio, sem graça. Um riso que não combinava com o rosto duro e marcado por uma cicatriz de tempos passados. Que não cabia sob os olhos de um predador hábil e violento. Mas que ainda assim estava lá.