Tommy entrava praticamente correndo pelos corredores do hospital. Há menos de uma noite atrás ele estava na Colômbia, negociando com barões da droga, quando recebeu uma ligação urgente. Earnest Kelly estava morrendo.
Era curioso como um lorde do crime cujo coração não batia há décadas poderia demonstrar tamanha preocupação por um velho moribundo. Tommy também ficava surpreso com o quanto se importava com o homem ao ouvir a notícia e cancelar imediatamente a negociação que poderia lhe render milhões de dólares para pegar um voo de emergência direto para Miami.
Tommy finalmente abria a porta do quarto onde se encontrava o velho homem sobre uma cama, com diversos tubos saindo pelo corpo. Sua face parecia ainda mais velha que da última vez que o viu. Mais pálida. Ele já parecia um homem morto, embora ainda respirasse com a ajuda de aparelhos e seus olhos se movessem para Tommy assim que este entrava.
Earnest era um dos muitos homens que já trabalharam para Tommy. Um dos poucos cujo nome o Giovanni se lembrava. Atualmente ele estava aposentado, mas quando Tommy o conheceu, ele trabalhava em uma gráfica impressora. Um dos primeiros negócios comprados por Tommy. Apesar da fábrica ter lhe rendido inicialmente uma quantidade razoável de dinheiro, os motivos dele tê-la comprado eram de certa forma, sentimentais. O pai de Tommy trabalhava em uma fábrica de impressão como esta quando o mesmo era pequeno, e ela lhe trazia boas recordações, algo que ainda ligava-o a sua vida humana, mesmo após ter se transformado em uma criatura da noite.
O idoso tentava se inclinar no travesseiro para ver Tommy melhor. O Giovanni se aproximava da cama e o ajudava.
- Pensei que não veria este rosto novamente antes de bater as botas! - Sua voz saia fraca, embora ele tentasse ignorar isso.
- E você acha que eu abandonaria meu melhor funcionário?!- Dizia Tommy enquanto se sentava ao lado da cama.
- Ex-funcionário!
- Ok, ok, ex-funcionário. O tempo passa tão rápido que nem percebo isso!
- Exceto para você, garoto! Continua com a mesma aparência de quanto te conheci! Já eu nem gosto de me ver no espelho, posso sentir o bafo da morte em meu cangote a todo instante.
- São apenas seus olhos! - Dizia Tommy com um sorriso. O primeiro sorriso sincero que ele dava desde... na verdade nem se lembrava quando havia dado o último.
- Sabe, nos últimos dois dias eu quase tive a esperança de que meu filho viria me visitar em meu leito de morte. Mas acho que fui muito ingênuo. A última vez que ouvi falar dele fazem mais de vinte anos. Há quarenta anos ele decidiu sair de casa para poder se drogar e tocar em alguma banda esquisita com seus amiguinhos delinquentes. Fui visitá-lo pelo menos umas três vezes na prisão e uma na clínica de reabilitação de usuários. Até cheguei a gastar o que não tinha para pagar sua fiança uma vez, mas o moleque nunca me agradeceu. Sei como são esses jovens, e sei que não fiz mais que minha obrigação, mas no fundo sinto que falhei como pai...
- Não se culpe pelos erros dos outros. Eu também magoei muito meu pai, e nem tive a chance de me desculpar. Durante a adolescência eu decidi parar de ajudá-lo no seu emprego pois ser o motorista menor de idade dos mafiosos locais me dava mais dinheiro e liberdade. Inúmeras vezes ele tentou me tirar daquela vida e brigamos feio. Disse coisas horríveis a ele e minha mãe, e nunca demonstrei gratidão por terem cuidado de mim e me dado teto, roupa e comida. Nunca valorizei o fato de mesmo tendo pouco dinheiro, ele sempre trabalhou duro para dar a nós o que precisávamos. Apenas fui saber que ele havia morrido quando eu estava na prisão. Nem mesmo pude ir ao seu velório...
- De quê o pobre homem morreu mesmo?
- Infarto!
- Ah sim. Pobre homem, que Deus o tenha. Mas ele deixou um bom legado na terra!
- Gostaria de dizer que isso é verdade. Quanto tempo os médicos lhe deram?
- Três dias, e isso já faz quase uma semana! É um milagre que eu ainda não tenha ido desta para a melhor! Acho que Deus deve ter me dado mais algum tempo para poder ter uma última conversa com você, rs.
Apesar do comentário de Earnest, Tommy não sorria. Ele fechava os olhos e pensava profundamente no que iria falar a seguir.
- Gostaria de lhe perguntar algo, mas não sei como você reagiria. Imagine uma situação hipotética em que você pudesse escapar dessa e continuar seguindo com a vida, você aceitaria?
- Seguindo com a vida? Garoto, estou sofrendo falência múltipla de órgãos, preciso usar fraldas, mal consigo andar devido à minha artrite e osteoporose. Não, meu jovem, sei que minha hora chegou!
- Sim, eu entendo, mas imagine que houvesse uma forma de você voltar... inteiro novamente, sem estes problemas!
- Sem esses problemas? Isso é apenas uma situação hipotética, não é?! Digo, a ciência e a medicina já evoluíram tanto assim?
- Bem, não exatamente. Mas existem outras formas...
- Outras formas?! Diabos, do que você está falando, Tom? Isso está parecendo mais um pacto com o demônio. Vade Retro! - Dizia o idoso, fazendo o sinal da cruz.
Tommy pensava se seu pai teria a mesma atitude. Como descendente de imigrantes italianos, Tommy também havia vindo de uma família católica. Seu pai era um católico praticante, ia às missas todos os domingos mesmo tendo de trabalhar como um condenado a semana inteira. Se ele tivesse seguido os passos de seu pai, talvez sua vida tivesse sido diferente, mas a adolescência é uma fase difícil. Quem se importa de ir à missa todo domingo e ter uma família tradicional quando você pode ganhar rios de grana fácil além de ser temido e respeitado por todos no bairro?! Earnest vinha de uma família de Irlandeses, que possuem fama de serem ainda mais devotos.
- Achei que diria isso. Não se preocupe, apenas estava brincando!
- Não se brinca com essas coisas, garoto! Tome cuidado com o que deseja, pode acabar encontrando!
- Sim, eu sei disso. Uma pena não ter conhecido você antes. Ou pelo menos ter baixado a bola e obedecido os conselhos de meu pai uma vez na vida. Acho que vocês se dariam bem, espero que o encontre do outro lado!
- Estaremos lá para recebê-lo, jovem!
Desta vez, Tommy forçava um sorriso. Gostaria de dizer que isso não era verdade, mas não queria estragar o momento. Então beijava o velho na testa e se despedia. Mais uma pessoa levada pelo tempo, e talvez a última parte ainda humana de seu coração o deixava.
Tommy se levantava e saia do quarto de hospital sem olhar para trás. Ele havia deixado de acreditar em Deus durante a adolescência. Havia presenciado muitas coisas que a ciência não poderia explicar. Havia lendas entre sua espécie, sobre Caim e sua prole, mas muitos vampiros modernos tinham uma visão mais modernista sobre o tema. O Giovanni não sabia se após tudo o que havia visto, agora acreditava ou não em Deus, em Caim ou no paraíso e inferno, mas sabia que se tudo isso realmente fosse real, não iria para o mesmo lugar que seu pai e Earnest, o que tornava sua despedida ainda mais dolorosa, pois em todos os sentidos, esta seria a última vez que veria seu velho amigo.
OFF: Conto dedicado a um antigo personagem (Tommy Giovanni) e a meu pai (que Deus o tenha).
Era curioso como um lorde do crime cujo coração não batia há décadas poderia demonstrar tamanha preocupação por um velho moribundo. Tommy também ficava surpreso com o quanto se importava com o homem ao ouvir a notícia e cancelar imediatamente a negociação que poderia lhe render milhões de dólares para pegar um voo de emergência direto para Miami.
Tommy finalmente abria a porta do quarto onde se encontrava o velho homem sobre uma cama, com diversos tubos saindo pelo corpo. Sua face parecia ainda mais velha que da última vez que o viu. Mais pálida. Ele já parecia um homem morto, embora ainda respirasse com a ajuda de aparelhos e seus olhos se movessem para Tommy assim que este entrava.
Earnest era um dos muitos homens que já trabalharam para Tommy. Um dos poucos cujo nome o Giovanni se lembrava. Atualmente ele estava aposentado, mas quando Tommy o conheceu, ele trabalhava em uma gráfica impressora. Um dos primeiros negócios comprados por Tommy. Apesar da fábrica ter lhe rendido inicialmente uma quantidade razoável de dinheiro, os motivos dele tê-la comprado eram de certa forma, sentimentais. O pai de Tommy trabalhava em uma fábrica de impressão como esta quando o mesmo era pequeno, e ela lhe trazia boas recordações, algo que ainda ligava-o a sua vida humana, mesmo após ter se transformado em uma criatura da noite.
O idoso tentava se inclinar no travesseiro para ver Tommy melhor. O Giovanni se aproximava da cama e o ajudava.
- Pensei que não veria este rosto novamente antes de bater as botas! - Sua voz saia fraca, embora ele tentasse ignorar isso.
- E você acha que eu abandonaria meu melhor funcionário?!- Dizia Tommy enquanto se sentava ao lado da cama.
- Ex-funcionário!
- Ok, ok, ex-funcionário. O tempo passa tão rápido que nem percebo isso!
- Exceto para você, garoto! Continua com a mesma aparência de quanto te conheci! Já eu nem gosto de me ver no espelho, posso sentir o bafo da morte em meu cangote a todo instante.
- São apenas seus olhos! - Dizia Tommy com um sorriso. O primeiro sorriso sincero que ele dava desde... na verdade nem se lembrava quando havia dado o último.
- Sabe, nos últimos dois dias eu quase tive a esperança de que meu filho viria me visitar em meu leito de morte. Mas acho que fui muito ingênuo. A última vez que ouvi falar dele fazem mais de vinte anos. Há quarenta anos ele decidiu sair de casa para poder se drogar e tocar em alguma banda esquisita com seus amiguinhos delinquentes. Fui visitá-lo pelo menos umas três vezes na prisão e uma na clínica de reabilitação de usuários. Até cheguei a gastar o que não tinha para pagar sua fiança uma vez, mas o moleque nunca me agradeceu. Sei como são esses jovens, e sei que não fiz mais que minha obrigação, mas no fundo sinto que falhei como pai...
- Não se culpe pelos erros dos outros. Eu também magoei muito meu pai, e nem tive a chance de me desculpar. Durante a adolescência eu decidi parar de ajudá-lo no seu emprego pois ser o motorista menor de idade dos mafiosos locais me dava mais dinheiro e liberdade. Inúmeras vezes ele tentou me tirar daquela vida e brigamos feio. Disse coisas horríveis a ele e minha mãe, e nunca demonstrei gratidão por terem cuidado de mim e me dado teto, roupa e comida. Nunca valorizei o fato de mesmo tendo pouco dinheiro, ele sempre trabalhou duro para dar a nós o que precisávamos. Apenas fui saber que ele havia morrido quando eu estava na prisão. Nem mesmo pude ir ao seu velório...
- De quê o pobre homem morreu mesmo?
- Infarto!
- Ah sim. Pobre homem, que Deus o tenha. Mas ele deixou um bom legado na terra!
- Gostaria de dizer que isso é verdade. Quanto tempo os médicos lhe deram?
- Três dias, e isso já faz quase uma semana! É um milagre que eu ainda não tenha ido desta para a melhor! Acho que Deus deve ter me dado mais algum tempo para poder ter uma última conversa com você, rs.
Apesar do comentário de Earnest, Tommy não sorria. Ele fechava os olhos e pensava profundamente no que iria falar a seguir.
- Gostaria de lhe perguntar algo, mas não sei como você reagiria. Imagine uma situação hipotética em que você pudesse escapar dessa e continuar seguindo com a vida, você aceitaria?
- Seguindo com a vida? Garoto, estou sofrendo falência múltipla de órgãos, preciso usar fraldas, mal consigo andar devido à minha artrite e osteoporose. Não, meu jovem, sei que minha hora chegou!
- Sim, eu entendo, mas imagine que houvesse uma forma de você voltar... inteiro novamente, sem estes problemas!
- Sem esses problemas? Isso é apenas uma situação hipotética, não é?! Digo, a ciência e a medicina já evoluíram tanto assim?
- Bem, não exatamente. Mas existem outras formas...
- Outras formas?! Diabos, do que você está falando, Tom? Isso está parecendo mais um pacto com o demônio. Vade Retro! - Dizia o idoso, fazendo o sinal da cruz.
Tommy pensava se seu pai teria a mesma atitude. Como descendente de imigrantes italianos, Tommy também havia vindo de uma família católica. Seu pai era um católico praticante, ia às missas todos os domingos mesmo tendo de trabalhar como um condenado a semana inteira. Se ele tivesse seguido os passos de seu pai, talvez sua vida tivesse sido diferente, mas a adolescência é uma fase difícil. Quem se importa de ir à missa todo domingo e ter uma família tradicional quando você pode ganhar rios de grana fácil além de ser temido e respeitado por todos no bairro?! Earnest vinha de uma família de Irlandeses, que possuem fama de serem ainda mais devotos.
- Achei que diria isso. Não se preocupe, apenas estava brincando!
- Não se brinca com essas coisas, garoto! Tome cuidado com o que deseja, pode acabar encontrando!
- Sim, eu sei disso. Uma pena não ter conhecido você antes. Ou pelo menos ter baixado a bola e obedecido os conselhos de meu pai uma vez na vida. Acho que vocês se dariam bem, espero que o encontre do outro lado!
- Estaremos lá para recebê-lo, jovem!
Desta vez, Tommy forçava um sorriso. Gostaria de dizer que isso não era verdade, mas não queria estragar o momento. Então beijava o velho na testa e se despedia. Mais uma pessoa levada pelo tempo, e talvez a última parte ainda humana de seu coração o deixava.
Tommy se levantava e saia do quarto de hospital sem olhar para trás. Ele havia deixado de acreditar em Deus durante a adolescência. Havia presenciado muitas coisas que a ciência não poderia explicar. Havia lendas entre sua espécie, sobre Caim e sua prole, mas muitos vampiros modernos tinham uma visão mais modernista sobre o tema. O Giovanni não sabia se após tudo o que havia visto, agora acreditava ou não em Deus, em Caim ou no paraíso e inferno, mas sabia que se tudo isso realmente fosse real, não iria para o mesmo lugar que seu pai e Earnest, o que tornava sua despedida ainda mais dolorosa, pois em todos os sentidos, esta seria a última vez que veria seu velho amigo.
OFF: Conto dedicado a um antigo personagem (Tommy Giovanni) e a meu pai (que Deus o tenha).