Mandhros escreveu:Off: Nossa! Fiquei impressionado tanto com a descrição da Toca do Coelho quanto com a pesquisa sobre o amor no além-túmulo. Deu até uma ponta de arrependimento de não ter acompanhado o Aramis!
@GM, aguardo a narrativa direcionada ao Dimitri, rumo ao Ônibus Incerto!
@Mandhros
OFF: Narração em fluxo de consciência é uma técnica literária que busca reproduzir o processo de pensamento de um personagem, misturando raciocínio lógico, impressões pessoais, memórias, desejos e associações de ideias. Essa técnica rompe com a linearidade e a ordem da narrativa tradicional, criando um efeito de imersão na mente do personagem. Alguns autores que usaram essa técnica são C.S. Lewis, Marcel Proust, Virginia Woolf, James Joyce, Clarice Lispector e Guimarães Rosa.
Num ponto que parecia estar à margem do conhecido e do desconhecido, me percebi, quase como um sonho, em pé, junto a uma longa fila de seres esperando o ônibus em uma ruela distante e desolada. A aura do entardecer, em um peculiar volteio do destino, subjugava a noite crescente, cobrindo o firmamento com um manto de chuva tenra e evanescente. Pelas vastidões incontáveis do que me parecia uma eternidade, eu percorri sendas similares. Estranhas e estéreis, essas ruelas não refletiam as eufóricas celebrações da Saturnália dos Mortos. O tempo parecia ter feito uma pausa naquele momento sombrio em que apenas algumas lojas acendem as suas luzes e não está ainda suficientemente escuro para que as janelas projetem na calçada sombras alegres da mesma forma que a tarde não chegou a ser noite, meu perambular jamais me levou a partes melhores da cidade.
Por mais que andasse, só encontrei pensões mesquinhas, pequenas tabacarias, tapumes com cartazes rasgados e caindo aos pedaços, depósitos despidos de janelas, estações sem trens e livrarias do tipo onde se vende As Obras de Aristóteles. Tal realidade estava obscurecida, como se envolta em um véu de esquecimento. O presente era como um eco distante da lembrança de minha própria morte, um eco desprovido de qualquer sombra de inquietação ou trepidação. Em minhas mãos, o panfleto e o bilhete do ônibus incerto pareciam ter se transformado, instilando em mim uma curiosidade pungente.
Eu o olho...
Com efeito, o crepúsculo, em sua inércia, parecia haver congelado a própria passagem do tempo. Os edifícios sombrios, as ruas desapossadas de vida e a constante presença da chuva plasmavam uma tapeçaria de desolação. Todavia, naquela melancolia, uma estranha paz inundou-me, uma serenidade que não conheci em minha vida terrena.
E não havia nada que lembrasse da Saturnália. Saturnália do que? O que será que é mesmo... Qual o nome? Você não consegue lembrar da Saturnália também, pergunta seu consciente ao subconsciente, com espanto!?? Depois de um breve momento de desespero, parece que ali, a mente do limbo não tinha seu poder e você não pode sondar a mente única de Abaddon, o anjo da morte e criador do limbo, onde em morte eterna ele, o anjo, jaz, você pensa com si mesmo.
Tudo esquece... Consciente e inconsciente... Só sobrou a sensação de esquecer, mas logo essa também se desfaz.
Então eu senti paz. Tal paz, nem mesmo no mundo da carne, eu tinha sentido com tamanha intensidade, conforto e aconchego. O que importava era estar aqui e no agora...
Depois de um instante... Reparo que não vi ninguém em lugar algum. A não ser pelo pequeno ajuntamento no ponto de ônibus, a cidade inteira parecia deserta, no tempo e no espaço. Como era mesmo o nome dela? Esti... Estiga... Deixa para lá... Sei lá... Penso que foi por isso que decidi entrar naquela fila. Mas, tão logo essa sensação tomou conta, reparei que, com a exceção daqueles na fila do ônibus, o mundo em volta estava estranhamente despovoado. Intrigas e desavenças ocorriam nessa fila, tão humanas quanto as que se encontravam em qualquer ruela da Terra. Uma senhora, com sua insistente negação, e um cavalheiro, ostentando um tom digno, abandonaram a fila. O homem baixinho, de feição carrancuda, revelou seu descontentamento e logo enfrentou a ira de um homem robusto. Cada interação, cada retirada, diminuía o número na fila, até que, finalmente, o ônibus, iridescente e grandioso, aproximou-se. O Motorista, irradiando uma luz quase celeste, dirigia o veículo com uma destreza divina, afastando a chuva com um aceno casual. Seu pronunciamento foi claro, como um eco através do éter: “Esta é a última chamada, quem quiser ficar que fique, mas quem quiser ir que vá! Vamos?”
Dentro desse interstício do real e do irreal, a decisão parecia carregar um peso que ia além da simples escolha de embarcar ou não. Era um chamado a uma jornada, um convite a enfrentar o desconhecido.
E assim, no limiar entre dois mundos, a escolha recaiu sobre cada alma presente. Inclusive a minha...
Vais subir?