Face Queimada, Alma Despedaçada

O inverno que cobriu as boas terras do Norte num manto esbranquiçado e que se estendeu por mais meses do que o previsto havia passado e dado lugar a época do degelo e do reflorescimento da flora. Era também um período para renovar as esperanças a despeito de todas as desgraças que haviam acontecido nos últimos meses, e dentre essas desgraças estava o ataque dos dragões negros em Lua Argêntea que resultou em muita destruição e morte - e uma marca que ficaria para sempre em Nasri.

No dia da investida fulminante dos dragões, Nasri foi uma das pessoas corajosas que tentou defender a cidade contra essas terríveis criaturas. Com a ausência de Alustriel e do exército argenteano – ambos na empreitada contra os orcs no Salão de Mitral – restou a Taern liderar os mais corajosos para expulsar tais criaturas. Por fim a força conjunta de todos eles conseguiu deter os dragões, mas muitos morreram aquele dia e outros tantos se feriram gravemente. Nasri havia sido atingida pelo sopro de ácido de um dos dragões; ela conseguiu botar o braço na frente do rosto, mas o seu braço só a protegeu parcialmente e metade de seu rosto foi corroído até ficar em carne viva, assim como parte de seu cotovelo e ombro direito.

Naquela época Belediel não estava na cidade, e quando retornou e viu o estado de sua amada ela não soube o que fazer de imediato. A aparência desconfigurada do rosto de Nasri era apenas um detalhe frente à marca profunda que se estabeleceu em sua auto-estima. O que antes era uma menina que irradiava alegria, agora era uma mulher reclusa que não queria sair debaixo do teto de onde morava. Belediel tentou melhorar o ânimo de sua amada de todas as maneiras, mas Nasri não cedia às suas vontades e permanecia calada na maior parte do tempo. Apenas nos últimos dias é que Nasri pareceu ter melhorado o ânimo, e a prova disso foi ela ter se arriscado a sair de casa numa tarde sem o capuz que costumava usar para esconder a face queimada.

 Fazia um dia ensolarado quando bateram à porta da casa de Belediel. A sacerdotisa atendeu um homem, que logo ficou sabendo se tratar de um mensageiro da Senhora Alustriel. O homem deixou uma carta com o selo real com a Belediel e foi embora. A elfa fechou a porta e arrancou o selo para ler o que estava escrito. Basicamente Alustriel estava solicitando a presença de Belediel e de Nasri no Alto Palácio – foi um pouco surpreendente para Belediel ver que sua amada também fora chamada. Nasri no momento encontrava-se deitada na cama do quarto, enrolada por cobertores e olhando para um ponto vazio do aposento.

Ela parecia triste naquela manhã.

- Alustriel...? - Nasri, de algum modo, pareceu ficar chocada com a informação trazida por Belediel. - O que ela quer comigo? Eu não posso ir vê-la assim, não, não posso, seria uma desonra à Senhora Alustriel e à sua casa.

Nasri virou-se de lado na cama, dando às costas a sua amada e por ora não querendo mais conversar. Belediel teve que deixar os livros que havia trazido em cima de um móvel do lado da cama, e depois ela saiu do quarto. Na passagem pelo corredor, viu a sua armadura e simplesmente a jogou no chão, o que fez um barulho extremamente alto com o som do metal pesado batendo na parede e depois caindo no chão. Sem dar importância a isso, a elfa seguiu seu trajeto e foi até a cozinha preparar o bolo que disse que ia fazer. A sacerdotisa não era uma grande cozinheira, mas em contraponto tinha as receitas certas para fazer uma comida boa e atraente. Depois de preparado o doce e posto numa bandeja de prata, Belediel retornou ao quarto. Ainda deitada na cama, Nasri apenas virou o rosto em sua direção e perguntou:

- Que barulho foi aquele?

Nasri demonstrou um certo desgosto com a resposta da Belediel sobre o barulho, mas não insistiu na pergunta e aceitou o bolo ofertado. Ela não estava muito a fim de conversar e usou o bolo como a desculpa perfeita para isso. Naturalmente ela ouviu os comentários de sua amada, mas nada respondeu. Uma hora mais tarde, Belediel voltou a quarto dizendo que ia sair. Nasri apenas mostrou que ouvira o recado e recusou-se ser beijada nos lábios. Parte de seus lábios também estava deformado pelo ácido do dragão, e Nasri não queria mais usá-los para beijar nem mesmo a pessoa que amava. Belediel teve que se contentar em beijar sua bochecha, a que estava inteira, e então saiu de casa.

A Casa Invencível não ficava longe, e a elfa logo chegou em frente aos portões da fortaleza. O que deveria ser um templo na verdade era um forte preparado para a guerra, uma construção robusta e sem quaisquer ornamentos, o que não era grande surpresa por se tratar da casa de Helm, o deus cujo nome ecoava forte nos campos de batalha. Na entrada havia um grupo animado de soldados de Lua Argêntea conversando, e Belediel teve que ouvir um ou outro comentário malicioso a seu respeito ao passar por eles. Um vasto salão vinha a seguir, com um tapete vermelho longo que levava até um altar. Havia muitos cultuadores de Helm no local, orando em frente a pequenas estatuetas do deus e espalhados por toda a sala. Belediel não estranhou ao ver o Mestre Vigilante Baerim Coraddor próximo ao altar; ele era o sumo-sacerdote do lugar e uma figura sempre presente na Casa Invencível. Baerim era um homem vigoroso, trajado numa armadura de batalha com uma longa capa verde descendo por suas ombreiras, e no momento entretinha-se com alguns peregrinos recém-chegados à cidade.

O Mestre Vigilante não pareceu ficar incomodado com a intromissão de Belediel na conversa entre ele e os peregrinos. Baerim naturalmente já devia ter ouvido falar na elfa desde que ela foi convocada por Alustriel para participar da Comitiva das Fronteiras. Com um sorriso carismático no rosto, o homem dispensou os peregrinos com algumas poucas palavras e então convidou gestualmente Belediel para se afastarem do altar e ter um pouco mais de privacidade.

- Fico muitíssimo honrado em receber uma serva de Tyr em meu santuário - disse o homem enquanto se afastam das outras pessoas. - Em que posso lhe ser útil, minha senhora?

O Senhor Baerim coçou o queixo e forçou a mente antes de responder aos questionamentos da serva de Tyr.

- Existem algumas magias que poderiam resgatar o rosto de sua companheira. Essas magias, no entanto, costumam ser caras, e sempre há a chance da magia falhar ou não funcionar adequadamente. Eu precisaria que a senhora trouxesse a sua companheira até este templo para que avaliássemos os danos causados pelo sopro do dragão, e só então eu poderei dizer com mais precisão qual a magia que deverá ser utilizada.

Baerim abre um sorriso gentil e se despede de Belediel. A elfa, então, decide retornar para a casa. Ao abrir a porta de entrada, eis que ela ouve vozes vindo do corredor que levava ao seu quarto. Uma das vozes era de Nasri, enquanto a outra era também bem familiar... Mas Belediel precisava ver com os próprios olhos para acreditar.

Acelerando o passo Belediel finalmente alcançou o seu quarto, onde deparou-se com a seguinte cena: Nasri, deitada por cima das cobertas, detinha-se numa conversa aparentemente tranquila com nada mais nada menos que a Grã-Senhora Alustriel, que em sua pose ereta e altiva, sentava-se na beiradinha da cama. Era estranho para qualquer um avistar a figura mais importante das Fronteiras Prateadas em seu quarto, e ainda sentada em sua cama. A conversa terminou quando Belediel adentrou o quarto, pois Alustriel dirigiu um rosto amigável em sua direção e disse:

- Por favor, senhora Belediel, sente-se conosco. Estávamos esperando pelo seu retorno. Desculpe-me aparecer assim sem aviso prévio em sua residência, mas eu precisava vir falar com a senhora e a senhora sua esposa.

Alustriel foi um pouco mais pro lado da cama, e apontou o espaço que ela acabara de deixar para que Belediel o ocupasse. Alustriel estava usando um longo vestido prateado com o símbolo de uma lua crescente no peito, logo abaixo de seu decote. Ela estava esplendorosamente bela àquela manhã.  

- De última hora me ocorreu à mente que vocês não viriam ao palácio - disse Alustriel de modo gentil enquanto Belediel se ajeitava ao seu lado. - E eu não estou as desculpando por isso; a culpa é minha por não reparado antes na insensibilidade do meu convite, visto que sei tudo o que as duas estão passando e sofrendo, especialmente Nasri.

Alustriel lançou um olhar carinhoso a mulher deitada na cama, mas Nasri não conseguiu retribuí-lo e naquele momento ela achou propício admirar a parede de seu quarto.

- Eu não vim até a sua humilde casa, senhora Belediel, para lhe dar alguma missão ou tarefa para o bem das Fronteiras Prateadas; eu já fiz isso algumas vezes, e você ao lado dos companheiros da Comitiva sempre se mostraram dispostos a me ajudar na guerra contra Obould. Não, não vim cobrar ou pedir algum favor; pelo contrário, eu vim ver como posso ser útil para as duas voltarem a sorrir. Quero retribuir todas as coisas boas que vocês fizeram pelo nosso reino, por isso estou aqui. Nasri não conseguiu me dizer como posso ajudá-las, mas talvez a senhora possa me dar uma dica.

- Isso está acima de meus poderes - diz Alustriel sem pestanejar, como se já estivesse esperando por esse pedido. - O ácido de um dragão negro adulto não é como um ácido comum. Ele tem propriedades mágicas que tornam os seus efeitos muito mais devastadores, e infelizmente receio que nenhum sacerdote terá o poder para remover essa marca de sua esposa. Nasri - e aqui a Grã-Senhora Alustriel se voltou à mulher deitada - terá que aprender a conviver com essa cicatriz, e você, Belediel, terá que apoia-la incondicionalmente. Sim, eu sei que você já faz isso.

Agora que Belediel foi para o outro lado da cama, Alustriel podia contemplar tanto a elfa quanto a humana num mesmo plano. Ela encarava as duas com um olhar, que naquele momento, beirava a compaixão, mas de uma forma mais profunda. Alustriel, então, jogou as suas pernas por sobre a cama, mas ficou com o torso ereto. Ela conduziu sua mão até o rosto de Nasri, e com a ponta dos dedos tocou a ferida deixada pelos dragões. Por um momento Belediel pensou que ela iria fazer algum milagre e curar sua esposa, mas Alustriel a tocava carinhosamente no rosto sem qualquer intenção de usar magias. Nasri não gostava que ninguém mexesse na "horrível" cicatriz de seu rosto, mas ela não fez nada para impedir Alustriel, e de certo modo até parecia apreciar o toque dela.

- Uma precisa da outra - disse Alustriel, abaixando o tom de voz para quase um sussurro. - Mas vocês não precisam carregar esse fardo sozinhas... Eu estou com vocês, e estou aqui disposta a dar todo o amor que vocês precisam...

A atmosfera instantaneamente havia mudado no quarto. O som da rua lá de fora parecia não chegar mais até o quarto, e a luz também havia diminuído de intensidade. A Senhora Alustriel acariciava o rosto de Nasri, que ficou perplexa demais para saber como agir. Alustriel voltou o seu olhar para Belediel, e com uma palmada na coberta, convidou a elfa a deitar na cama, do outro lado de Nasri.

A Senhora Alustriel recebeu a negação de Belediel com o máximo de dignidade possível. Ela levantou-se da cama, ajeitou o seu próprio vestido, e disse:

- Desculpem-me, as duas. Eu não queria causar algum tipo de desconforto. Acho que é hora de eu retornar ao Alto Palácio. Com licença.

Com uma leve inclinação na cabeça, Alustriel se despediu das duas e saiu do quarto. Nasri olhou para a porta do quarto por onde a Senhora Alustriel havia acabado de passar e depois olhou para Belediel, boquiaberta:

- Você... você viu o que você fez? - perguntou em tom dramático. - Você acabou de expulsar a Senhora Alustriel da nossa casa! Você sabe o quanto isso pode ser ruim para nós duas?

Belediel não deu tempo de Nasri abrir a boca para rebater; ela correu para fora do quarto, mas passando pela porta do quarto ela já não viu mais a Senhora Alustriel. Ela nem mesmo chegou a ouvir a porta de entrada da casa ser aberta. Simplesmente Alustriel havia desaparecido como um passe de mágica ao sair do quarto. A elfa ouviu a voz de sua companheira às suas costas:

- Ela já se foi? Droga! Você precisa ir até o Alto Palácio e apresentar uma desculpa formal à Senhora Alustriel - disse em tom imperativo.