O Mentiroso

O meio-elfo pode sentir as engrenagens de sua mente funcionando lentamente enquanto pensa em algum plano. Qualquer forma de ataque seria impossível, pois são muitos. Também seria difícil convencê-los de qualquer coisa; apesar de suas habilidades, Ethir tem consciência de que não poderia enganar um acampamento inteiro de criaturas cruéis, às quais foram dadas ordens claras de captura. Precisa escapar.

Não teme ser morto por tentar fugir, pois sabe que é muito mais valioso para os orcs vivo do que morto. Também não se preocupa com os lacaios. Se tiver tempo para retornar e resgatá-los, ótimo; mas, se não, eles não são valiosos o suficiente para arriscar o sucesso da fuga.

Enquanto pensa no que fazer, a carroça aproxima-se de um palanque de madeira. Ethir franze a testa, não conseguindo compreender qual era o objetivo daquilo, mas não detém sua mente nisso. Ainda precisa de um plano. Poderia criar uma distração com sua magia e esconder-se em algum lugar, mas, antes disso, precisa livrar-se de suas amarras; dificilmente conseguiria fazer qualquer coisa com mãos e pés amarrados.

Sorri ao se lembrar das habilidades que lhe foram ensinadas na guilda de ladrões em Argos. Começa, então, a movimentar as mãos com destreza, em uma tentativa de se livrar das amarras que seus captores lhe impuseram.

Alheio a tudo o que ocorria à sua volta, Ethir preocupa-se apenas em conseguir libertar suas mãos. Sem elas, não pode nem mesmo conjurar suas magias tão preciosas. Por isso, suspira de alívio ao sentir os nós desfazendo-se e as cordas caindo.

Seu alívio, entretanto, rapidamente se esvai, pois a porta da carroça abre-se com um estrondo, fazendo-o retornar ao mundo real. Merda, xinga o meio-elfo mentalmente, e rapidamente põe ambas as mãos de volta para trás de seu corpo e enrola-as nas cordas, para que sua tentativa de fuga não fosse descoberta.

O goblin derruba bruscamente os dois lacaios no chão, e os encaminha em direção ao palanque. Olhando em volta, Ethir vê a multidão que se aglomera. Planejam fazer algum espetáculo com seus capturados, com certeza. O prisioneiro revira os olhos. Toda essa selvageria agressiva daquelas raças enchem-no de desprezo. Poderiam ser muito mais poderosos se tivessem um mínimo de inteligência e organização.

Logo em seguida, chega a sua vez de ser retirado da carroça. O orc puxa-o pelo tornozelo com uma violência desnecessária.

- Calma, meu senhor. - pede com sua voz suave, engolindo o desprezo que sente e dando um sorriso de canto de boca - Não precisamos ser tão violentos, precisamos? Se você fizer a gentileza de cortar as cordas dos meus pés, eu posso ir andando por conta própria. Assim você não precisa fazer esforço para me carregar, e eu me livro desse incômodo chato nos meus tornozelos. Afinal, estamos no meio de um acampamento cheio de aliados seus, se um magrelo como eu tentasse fugir tenho certeza que vocês poderiam me matar em um piscar de olhos.

Ethir aguarda atentamente a reação do orc, esperando que ele acredite em suas palavras.

Um suspiro de alívio escapa pelos lábios de Ethir quando o orc acredita em sua mentira e libera seus pés. Lentamente, desce da carroça e começa a subir a pequena escada do palanque, ainda com as mãos nas costas, olhando ao redor e prestando atenção em todos os detalhes. Franze a testa diante de um estranho símbolo que alguns dos orcs possuem no escudo, desconhecido pelo meio-elfo.

Terminando as escadas, é empurrado pelo orc para junto dos outros prisioneiros; entre eles, seus dois lacaios. Sentado, está um abastado goblin, com o corpo enfeitado por inúmeras joias. Ethir supõe que deve estar em Gan'Gardek, o assentamento orc que aparecia nos mapas que leu para aquela jornada. Pelo menos me deixaram mais perto da Torre de Zysgmar, pensa ironicamente.

O tal goblin ergue-se e começa a falar com a multidão. Ouvindo, Ethir enfim entende o que está acontecendo: estão prestes a ser vendidos como escravos. Com o coração palpitando, percebe que a hora de tomar uma atitude é agora, ou seria vendido para um daqueles orcs fedorentos.

- Vamos começar este leilão? - anuncia o goblin.

- Vamos! E eu começo, comprando a mim mesmo.

Faz, então, uma reverência ao goblin, que se vira para ele, surpreso.

- Ó Superior Lorde Goblin, seus servos capturaram-me, e, portanto, sou seu por direito. Mas também sou um poderoso mago das terras do oeste, e posso me libertar a qualquer momento - dizendo isso, enfim solta suas mãos das cordas falsamente amarradas. Erguendo-as ao ar, pronuncia algumas palavras em élfico, fazendo surgir quatro esferas brilhantes de luz, que começam a girar sobre sua cabeça - Apesar disso, vim até aqui pacificamente, nos termos de Vossa Senhoria, como uma demonstração do respeito que tenho; afinal, Vossa Senhoria subjugou minha expedição, e reconheço tal vitória militar. Mas também não desejo tornar-me um escravo, então diga-me o preço da minha liberdade, que pagarei. Tenho em meus pertences riquezas ocultas por proteção mágica, mas estarei grato em cedê-las ao senhor, se deixar-me ir junto com o restante do meu equipamento. Possuo outros dois amigos humanos que foram capturados, uma mulher e um homem, e, a depender do preço que Vossa Senhoria desejar, gostaria de libertá-los também. Está disposto a negociar?

Magia Utilizada:

Pela expressão no rosto do goblin, a tentativa de Ethir de impressioná-lo não dá muito certo. Merda, merda, merda. Agora, tudo que faz é rezar a Vecna para que não seja morto imediatamente. Não é esse o plano de morte que o meio-elfo tinha em mente; nada charmoso.

Antes que o senhor possa reagir, porém, aquele orc do símbolo estranho pronuncia-se e dá um lance. Trezentas? Estou até lisonjeado, pensa Ethir, com desgosto. O goblin parece hesitar a princípio, mas, por fim, concorda com a venda, sorrindo. Dois orcs saem sabe-se lá de onde e pegam o meio-elfo pelos braços.

- Mais brutalidade - resmunga o recém-vendido escravo, mas baixinho para que não seja ouvido.

É então levado ao seu novo senhor, que não lhe dá muita atenção, mas exige que o equipamento seja retornado. Ethir suspira de alívio; com acesso à sua bolsa de componentes mágicos, poderia fazer algumas coisas a mais que simples esferas brilhantes - que, a propósito, ainda giram sobre sua cabeça. Notando-as de repente, dissipa-as com irritação.

Logo chega um outro orc e larga no chão um saco com seu equipamento. Apesar da situação, o beguiler deixa escapar um pequeno sorriso; mas não ousa alcançar os itens antes de receber permissão para tal. Seu pequeno show fracassou, e qualquer nova tentativa seria burrice. Por isso, decide deixar os acontecimentos seguirem seu rumo, até que tenha uma melhor oportunidade para fugir; mas tal oportunidade só poderá surgir ganhando a confiança do seu comprador. Virando-se para ele, faz uma reverência.

- Senhor Urag Bloodyskull, estou às suas ordens. Reconheço meu fracasso e subjugo-me à sua vontade. Permite-me pegar meus itens de volta?

OFF:

À sua cortês e respeitosa pergunta, o tal "Ucrack" responde com ignorância e uma chuva de saliva. Ethir limpa o rosto disfarçadamente com as costas da mão direita, revirando os olhos por dentro. Orcs, pensa com desprezo. Nunca serão capazes de compreender a arte da palavra.

Enfim abre o saco e contenta-se ao ver que tudo está de fato ali; temia que tivessem roubado alguma coisa. Veste o corselete de couro, põe a mochila e o arco nas costas, embainha o sabre e amarra a algibeira e a tão querida bolsa de componentes mágicos na cintura. Com o equipamento novamente em sua posse, Ethir sente-se bem mais seguro e aliviado. Antes, podia imaginar o desastre que seria se surgisse uma oportunidade perfeita para fugir, mas estivesse destituído de seus pertences. Sozinho e sem equipamento, não duraria muito naquelas terras selvagens. Agora se sente melhor, mas ainda falta uma coisa: encontrar seus parceiros de crime. Não que tenha qualquer necessidade heroica de salvá-los, mas são úteis, e, sem eles, o meio-elfo não possui muitas chances de encerrar a jornada à Torre ou retornar a Argos. Ou ir a qualquer lugar, de fato.

Mal termina de se equipar, e já é empurrado para frente por duas daquelas criaturas asquerosas, com direito a cotoveladas e tudo. Ethir deixa escapar um suspiro audível; quanto mais tempo passa neste lugar, mais deseja sair correndo; até a morte parece melhor que aguentar mais desses seres.

Começam a se aproximar de uma imponente construção, que o meio-elfo não reconhece a princípio. Concentrado demais em imaginar as maneiras mais sangrentas e dolorosas de matar orcs e goblins, não percebe quando seu novo chefe para, e quase tromba nele. Felizmente, consegue conter-se a tempo.

"Ucrack" fala alguma coisa de precisar de um servo que consiga segurar uma espada. É então que Ethir começa a prestar atenção nos arredores, a fim de entender o que se passava. Uma massa de criaturas animadas dirigia-se àquele edifício, o que só podia significar duas coisas: espetáculo ou banquete. Não vê como uma construção tão grande serviria para banquete. Ao se aproximar mais e notar a arquitetura em arcos e a forma circular, enfim entende: uma arena. Vecna, só espero que seja o Ucrack aí que vá lutar, e não eu, pensa, preocupado. Agora podia conjurar uma ou outra magia útil que facilitaria seu combate, mas ainda assim não gostaria de correr esse risco.

- Mestre Ucr... Urag, o senhor lutará? - pergunta Ethir, apreensivo. Não tem certeza se é uma boa ideia iniciar qualquer conversação com aquele ser involuído, mas pergunta mesmo assim; talvez uma dose de elogios e incentivos, além de uma ou outra magia para ajudá-lo no combate, pudesse colaborar com sua confiança. Ou, se fosse o caso de ser o próprio meio-elfo o combatente, pelo menos teria mais tempo para se preparar.

O orc responde que não, não irá lutar; é muito lorde para isso. Está apenas indo assistir os "cães" lutarem. Ethir fica um pouco aliviado, pois não parece que ele lutará tampouco.

Entretanto, as últimas palavras de Ucrack, ditas quase que naturalmente, despertam imediatamente a atenção do meio-elfo. Procurando aventureiros, então, meu digníssimo lorde?, pensa, ironicamente. Vislumbra naquele pequeno pedaço de informação a oportunidade que esperava para sair daquele lugar odioso. Não fala nada de imeditato, é claro; mas, assim que os tais "cães raivosos" forem escolhidos, dará um jeito de ir com eles.

Por fim entram na arena, cujas fundações vibram com a movimentação dos espectadores sedentos. Passam por alguns corredores e uma escada, até que alcançam uma varanda de pedra, em uma posição de honra na arquibancada, com ótima visão da arena. Bom, pelo menos poderei aproveitar a luta.

Ucrack ocupa seu trono e aguarda o início do duelo. Ethir pensa que seria uma boa ideia se autopromover para o orc, tentando melhorar a impressão que ele tinha de si, então começa a falar, fazendo uma reverência:

- Lorde Bloodyskull, posso ter exagerado quando me pronunciei naquele palanque, mas de fato possuo habilidades mágicas. Além disso, sei aproveitar as fraquezas de meus inimigos em uma luta, e minha língua pode abrir portões e gerar discórdia. Se o senhor desejar, serei com prazer um de seus emissários nessa jornada para o oeste - diz, e conclui, com um sorriso amargo: - Afinal, desprezo os Reinos do Oeste tanto quanto o senhor.

Ethir logo percebe que aquele não foi o melhor momento para fazer o que fez, já que Ucrack está ansioso por assistir a luta. Dando de ombros, o meio-elfo não insiste e volta sua atenção à arena, aguardando o combate começar.

Ouve-se então o som grave de um berrante, e o goblin gordo que estava no leilão de escravos surge de uma das entradas da arena, deixando a plateia ensandecida. Ethir descobre então que seu nome é Zigzags, e ele é de fato o senhor - ou, como o próprio disse, gerente - daquele assentamento.

Aparentemente, a luta a seguir será um julgamento por combate entre dois condenados. Um pequeno sorriso aparece na boca do meio-elfo; ele não se importa em assistir a uma luta, especialmente quando essa luta envolve dois orcs tentando matar um ao outro. Seria satisfatório observar o assassinato que ele mesmo deseja cometer contra muitos dos ali presentes.

Os gladiadores surgem na arena; um armado com uma espada, e o outro com um machado. Ethir enche-se de expectativa, e, esquecendo-se de que acabara de ter sido ordenado a calar a boca, pergunta:

Ucrack não gosta nem um pouco quando Ethir acidentalmente volta a falar, e ameaça-o com ferocidade. O escravo revira os olhos internamente, mas, por fora, acata a ordem do mestre e permanece calado, atento à luta que se passa lá embaixo.

É um show de urros, gritos, golpes, sangue e movimentos rápidos. Apesar da selvageria exacerbada, o meio-elfo aprecia a luta quase tanto quanto os orcs, agitando-se por dentro a cada golpe, mas sem perder a pose silenciosa e imóvel exigida pelo seu mestre.

Enfim a luta acaba, em um espetáculo de violência: um orc é morto com a cabeça esmagada, e seu algoz morre logo em seguida. Ethir deixa escapar um leve sorriso. Ora, ora, isso foi melhor do que eu esperava. Não só um, mas dois orcs mortos.

Zigzags ironiza o resultado de seu camarote, ressaltando que, no fim das contas, os dois tiveram o destino que lhes fora originalmente imposto. Logo em seguida, revela que agora é a vez dos "convidados especiais" lutarem. Ethir retesa o corpo e fica mais atento do que nunca. Convidados não são orcs; provavelmente alguns prisioneiros capturados. Será que ali estaria alguém de sua expedição?

As suspeitas de Ethir crescem quando Zigzags anuncia que o próximo combatente será um dos humanos "recém capturados". E por fim elas confirmam-se quando ninguém menos que Espectro, o assassino, surge por uma das entradas da arena. Do outro lado, entretanto, um grande meio-orc portando uma clava intimidadora. A plateia vai ao delírio, mas o meio-elfo franze a testa. Não duvida das capacidade de matar sem ser notado de seu parceiro, mas uma luta corpo-a-corpo com um bruto daqueles?

Espectro rapidamente coloca uma flecha em seu arco e dispara-a, acertando em cheio o peito do meio-orc. Ethir dá um meio-sorriso quando vê o alvo cambaleando; mas qualquer sorriso logo desaparece quando aquele bárbaro solta um urro de fúria e avança com toda a sua força em direção ao ladino. Do camarote, o meio-elfo já prevê o que vai acontecer antes que aconteça; e, de fato, com um único golpe violento, Espectro é nocauteado.

Idiota, pensa Ethir, bufando; agora como vou convencer o Ucrack a te contratar quando você passa uma vergonha dessa?. Se a luta tivesse sido boa e o ladino tivesse vencido, poderia aproveitar para colocá-lo em bons termos para o lorde orc ao seu lado. Mas não desiste; tentará fazê-lo da mesma maneira, mas usando sua língua para tentar convencer Bloodyskull.

- Lorde Bloodyskull, perdoe-me por interromper seu silêncio, mas falarei rápido antes que a próxima luta comece. - engolindo em seco, continua: - O humano derrotado nessa luta é Espectro, um de meus parceiros. Apesar de ele claramente não ser um bom lutador, é um exímio assassino; todos os serviços que prestou pra mim fez com eficiência, profissionalismo e rapidez. Deixe-o chegar pelas costas de seus inimigos, que estarão mortos antes que notem sua presença. Se o senhor deseja enviados para aterrorizar as terras do oeste, tenho certeza que ele prontamente aceitaria.

Enquanto fala, Ethir vê o orc avançando para sua arma, e encolhe-se, temendo a luta. Mas continua falando, sem vacilar a voz, e tentando convencer aquele ser semi-racional.

Ao terminar, para sua surpresa, obtém uma reação positiva de Urag. Ele considera que de fato um trabalho mais furtivo e menos violento seria útil nas Terras do Oeste; mas ameaça o meio-elfo caso suas palavras não correspondessem à realidade.

- Garanto-lhe que ele é tudo o que eu disse e mais, senhor - diz Ethir prontamente, fazendo mais uma reverência. Depois disso, prefere ficar calado, e vira-se de volta para a arena.

Sua atenção, entretanto, não está na luta que começará a seguir, mas nas possibilidades que acabaram de se abrir. Se ele for realmente enviado com Espectro em uma jornada para causar caos nas Terras do Oeste, pouco importará quem os enviou. Será uma oportunidade única de causar discórdia, e da discórdia colher lucro e poder. Ethir deixa escapar um leve sorriso ao pensar em tudo o que poderia fazer.