Caminhos na Escuridão

O globo de luz flutuava a alguns metros do chão, um ponto amarelado na escuridão.

As paredes, o chão, o teto... Tudo era feito de pedra crua, intocada por mãos anãs, humanas ou de qualquer outra raça. Estalactites e estalagmites se uniam para criar verdadeiras colunas no largo corredor. A luz da pequena esfera era amena mas iluminava como o fogo. Veios largos corriam em ambas as paredes, fluindo da terra como rios dourados, e rochas de duas dezenas de cores diferentes brilhavam sob a luz do globo.

Anahera não sabia onde estava e não sabia como chegou ali, e isso lhe causou um certo desconforto. A feiticeira olhou para si e viu que estava com sua roupa e nada mais; sem armas, sem seus componentes para realizar seus feitiços, sem seu chá. Aquilo apenas aumentou o desconforto e incitou um certo medo em Anahera.

À frente, não havia nada além do globo de luz e de um corredor em que o fim era apenas breu, e olhando para trás, a feiticeira viu apenas rocha e escuridão. Anahera estava sozinha, como sempre, mas em um lugar desconhecido e sua única opção de saber onde está e sair dali é uma esfera de luz. Sons surgiram de todos os lados: o pingar incessante de uma goteira, guinchos de pequenos animais, um ruído distante e contínuo.

O globo desceu alguns centímetros, se aproximando de Anahera, que deu dois passos para trás. O reflexo fez a feiticeira buscar algum componente com sua mão, mas não havia nada a ser pego. A esfera se aproximava com calma, flutuando lentamente na direção de Anahera, sua luz se tornando cada vez mais intensa à medida que se aproximava.

Ela parou a cerca de um metro da garota, percorrendo um semi-círculo para a esquerda e parando atrás da feiticeira, à centímetros de seu ombro direito. Anahera acompanhou todo o movimento com os olhos e, apesar do globo ser algo que a garota nunca tinha visto, Anahera começava a se acostumar com sua presença, sentindo-se cada vez menos ameaçada pela pequena esfera de luz.

Com um movimento suave, a esfera empurrou o ombro da feiticeira. Anahera sentiu o toque através da roupa, era morno e macio, como se a esfera fosse na verdade uma grande bola de algodão embebido em água quente. Não era preciso refletir por muito tempo para entender o que a esfera queria que Anahera fizesse.

Não importava o esforço que Anahera fazia, ela simplesmente não lembrava como parou ali, um lugar escuro, desconhecido e com o desconhecido, a presença de pequenos animais que não via, e também do intrigante globo de luz, que além do que o próprio iluminava, era a única coisa que enxergava.

O movimento do globo de luz semi-circundando seu corpo foi notado por Anahera, ela só deixa, não havia achado seus pertences, fato quê desconcertou a feiticeira, entretanto não tinha por que fazer qualquer coisa. O globo de luz apenas queria que Anahera continuasse.

Ela vira sua cabeça para trás novamente, sem virar muito o tronco, sua expressão não falava nada, logo depois ela volta a olhar para o globo de Luz.

- Não tenho muita escolha. Não é mesmo?
Anahera fala com o globo de luz, sem esperar respostas, mas não sabia dizer se o globo de luz entenderia o quê falava.

Seus passos mal faziam barulho, um pouco pela velocidade que andava, também pelo cuidado. Não sairia correndo ou se apressaria em um lugar onde mal conseguia ver os dedos do pé. Anahera continua a andar por entre os pilares naturais, sua mão direita ficava a sua frente procurando por nada, e sua mão esquerda balançava suavemente junto com o resto do braço no movimento rotineiro do caminhar.

Os passos eram calmos e guiados por uma mão sempre atenta. Anahera tateava o ar à procura de algo que pudesse atrapalhá-la de alguma forma, mas não encontrou nada enquanto andava, nem mesmo a mais fina teia de aranha. Parecia que naquele lugar, onde quer que fosse, só havia o globo e a garota.

Uma declive agudo se estendeu diante da feiticeira, e quanto mais Anahera descia, mais frio ficava. Tudo parecia disforme, parecia mudar de lugar. Os veios dourados minguaram pelo caminho e os pilares de pedra deram lugar à um lago de água azul, escura e profunda. Anahera teve a impressão de ter andado menos do que precisaria andar para chegar aqui, como se o tempo não fosse ele mesmo aqui. Além da passagem para o lago, o chão da estreita margem era irregular e coberto de pedras soltas de diversos tamanhos; o teto era alto como a torre mais alto de um castelo, em frente e para os lados não haviam paredes, apenas o lago, infinito e escuro.

A única luz provinha do pequeno globo, que se adiantou à Anahera e avançou cruzando a margem, parando no limite entre a água e a terra. A garota viu um barco à sua esquerda, todo fora d'água e com uma tocha ao seu lado. Fora isso, não havia mais nada.

Estranho era aquele lugar, Anahera deveria ter passado mais tempo ali do que saberia, ou o tempo já não era mais o mesmo por ali.

- Esse lugar muda de forma tão rápido enquanto avançamos, tal como em um... Eiii, espera!
Ela se apressa na medida com que o Globo se adianta até a margem do lago e observa o que poderia ser uma boa ou má provisão, um barco, um barco e uma tocha.

Anahera fica um tanto curiosa em caminhar um pouco mais pela margem do lago, então ela pega a tocha e começa a caminhar para a esquerda do barco, seguindo próxima a margem do lago. O chão irregular talvez incomodasse ela menos do que incomodaria uma pessoa da cidade, mas o que realmente queria saber era se o Globo de Luz seguiria ela, ou se ficaria por lá. Anahera se afasta a duas dezenas de metros do barco, volta a olhar para o barco e para onde estaria o Globo de Luz.

Anahera caminhou dez, vinte passos para longe, e se virou. O globo de luz havia ficado perto da entrada, como a garota já tinha notado pela escuridão que aos poucos a envolveu. Anahera também percebeu outra coisa: logo quando entrou, a feiticeira havia olhado para os lados e pensou ter visto uma margem de não mais de seis metros, mas agora ela estava a quase vinte metros do barco, e ainda havia o resto da margem além dele.

Assim que percebeu isso, Anahera teve a sensação do chão estar se movendo e dela estar sendo inclinada. Nada muito brusco, isso fez a garota olhar para os lados, para cima e para o lago. A parede da entrada parecia estar torta para frente, como se fosse cair sobre o lago a qualquer momento. Já o lago parecia fugir da margem, revelando a terra lamacenta que há sob as águas. Antes que Anahera pudesse ver se o a pequena esfera havia percebido algo, a feiticeira viu que o barco começava a escorregar na direção do lago e não havia nenhuma corda mantendo-o preso à margem.

Novamente os reflexos da feiticeira faz com que buscasse algum componente com as mãos, mas novamente não acha nada.

Anahera caminha até o barco, vira seu rosto para a entrada outra vez, tinha convicção que o quê estava vendo não é o quê outrora tinha visto. Nessa altura ela já conseguia sentir a temperatura que aquela água poderia estar, seus pés haviam encostado o lamaçal para onde o barco foi arrastado.

Aproveitando a luz que o Globo radiava, ela procura por algum objeto que pudesse servir de remo, por sorte poderia encontrar um remo mesmo, ela vasculha na lateral do barco e dentro também. Anahera não conseguia lembrar por quantas vezes havia entrado em um barco, talvez nunca tenha entrado, o certo era que ela lembrava pouco, sobre qualquer coisa.

- Pode dar uma mãozinha? Anahera procurava procurando e interagindo com o Globo de Luz, a feiticeira imaginava que talvez sendo amigável com o Globo de Luz ele retornaria a gentileza não se afastando demais dela.

Anahera encara o globo sem face pedindo por ajuda, mas ele permanece imóvel. Anahera nota que o lago se afasta mais da margem e sente o seu corpo ser atraído pelas águas escuras e geladas. Correndo os olhos por dentro do barco, a feiticeira não vê remo algum nem qualquer outra coisa que sirva como um. Os pés de Anahera escorregam para a frente quando ela se levanta e, de pé, a garota percebe que o chão antes plano se tornou uma ladeira.

O lago se afastava cada vez mais da margem, revelando seu leito lamacento. Pedras, plantas e peixes que saltavam desesperados de volta para a água. O globo, que antes estava parado acima de Anahera, agora se encontra na altura dos olhos da feiticeira, flutuando imóvel ao seu lado.

Anahera havia percebido claramente as mudanças no cenário, ficar ali parada não adiantaria nada, era como se o mundo empurrasse ela para baixo e ela tivesse que acompanhar, a força natural que prendia ela no chão ditava isso e nada podia fazer.

O barco pouca função tinha se a aguá do lago fluía como se fosse a de um rio, talvez não exatamente como em um rio, pois até onde sabia daquele lago, ainda era um lago e sua água não tinha nenhuma correnteza.

Apesar do lago parecer ainda um lago, Anahera começa a acreditar que alguma magia fazia aquele estranho lugar funcionar daquela forma, na verdade, já estava tão certa que ignora a opção pra de usar sua magia pra descobrir, Anahera sempre evitava usar magias desnecessárias. A feiticeira joga a tocha dentro do barco e o empurra até a água do lago, dando um suave pulo e sentando de forma até desajeitada por conta do balançar do barco em sua subida.

Dentro do barco, apenas espera algum movimento, torcia para que não encalhasse na areia novamente, apesar de também não querer se afastar da margem do lago.

- Vem... Não tenha medo!
Até onde era loucura não sabia, mas Anahera já estava falando com o Globo de Luz como se falasse com outro humanóide qualquer, era importante que ficasse perto, a feiticeira queria poupar suas magias e guardar a tocha para um momento onde um Globo de Luz não estivesse com ela.

Aos tropeços e se esforçando para não cair, Anahera empurra o barco da margem para o lamaçal, do lamaçal para a água. Não foi uma tarefa simples, entretanto. Anahera sentia os pequenos braços da doer quando pulou no barco que, ao contrário de qualquer coisa que a garota possa ter pensado, começou a descer vertiginosamente assim que tocou a água por completo.

Anahera olhou para trás e viu, além dos cabelos que dançavam, a margem e o globo de luz diminuírem cada vez mais. Tudo foi ficando cada vez mais escuro até chegar ao ponto da feiticeira não conseguir distinguir aonde a água e o ar se encontravam. Tudo era uma enorme mancha negra que engolia a garota com voracidade.

- Por quê eu imaginei que você viria não é mesmo? A Feiticeira fala baixo, se lamentando pelo globo não ter vindo.

Em meio ao breu Anahera se sentia um pouco desconfortável naquele lugar, o quê ninguém poderia observar naquela escuridão era os gestos que Anahera fazia, e no meio da escuridão outro ponto de luz se forma, uma das mãos de Anahera em chamas e logo a tocha também estava.

Anahera se sente mais tranquila, mesmo estando sem rumo ela relaxa, se aconchega como dava e deixa o barco a levar.

OFF:

Anahera conversava com o globo, mas não sabia nem mesmo se ele poderia ouvi-la. A garota também não sabe se a esfera viu os gestos, mas imaginava que mesmo a esta distância, ele tinha visto o resultado. Labaredas voaram dos dedos de Anahera, aquecendo e iluminando por um instante aquele lugar. A tocha que a garota levava se acendeu, em uma explosão laranja e vermelha, mas, um instante depois do clarão surgir, ele dá lugar novamente à escuridão, e as chamas da tocha se tornaram finos filetes alaranjados resistindo bravamente ao movimento veloz do barco sobre as águas.

A feiticeira pensava nas possibilidades de usar seus feitiços, mas sem os componentes necessários o mais útil dos feitiços no momento não poderia ser evocado. Passou pela cabeça até incendiar uma parte do barco para poder visualizar alguma coisa, mas talvez o risco não valesse a pena.

Anahera aceita a escuridão a contornando, talvez não precisaria se preocupar tanto quanto estava se preocupando, suas longas noites poderiam ser até piores, ainda mais as noites invernais.

Sem a ajuda da visão, Anahera não cede a pressão que sua mente fazia, e ali mesmo onde estava, encostada em algum canto do barco, se concentra em sua audição, esse sim era o sentido mais confiável de agora, pelo menos até seus olhos se acostumarem com a escuridão ou o breu ser eliminado de vez.

Todos os sons poderiam sussurrar como dicas, e Anahera se mantinha concentrada e alerta.

Anahera não ouvia nada além do barco deslizando sobre a água e o fogo da tocha dançando sob o vento. Além do barco, não havia nada. A escuridão se prolongava até onde os olhos da garota alcançavam e além. Anahera sentiu que a inclinação da água havia aumentado; seus cabelos esvoaçavam para trás, a chama na tocha resistia bravamente e o barco descia cada vez mais rápido.

A feiticeira então viu, à frente e talvez ainda muito distante dela, um pequeno ponto pálido de luz.

Toda movimentação incomum daquele lugar deixava Anahera desprovida de qualquer reação lógica, era a primeira vez que lidava com um universo que desrespeitava a ordem natural dos elementos mundanos, com exceção de suas viagens mentais.

Anahera passava tanto tempo praticando suas manias que sua cabeça mal dava conta de manter a sobriedade. Lentamente, a feiticeira estava perdendo a noção do que era real, e o quê era fruto de sua mente conturbada e esquecida.

Seus cabelos esvoaçaram pra trás, e a sua frente um pequeno ponto de luz, por ser pequeno, deveria estar a alguns metros de distancia, dependendo do tamanho, era possível até estar a quilômetros, mas a possibilidade que ela não descartava era que aquele ponto de luz era do Globo de Luz que teria deixado pra trás a pouco tempo.

- Se meus olhos não estão me enganando, há outro ponto de luz a frente... Que me guie a realidade. Anahera falava com ela mesmo, ainda segurando a tocha.

A feiticeira ainda não reage a inclinação do barco, ela deixa o mesmo seguir seu fluxo. Em águas normais, o barco já teria parado o movimento feito por seu empurrão, logo, Anahera assume que aquele lago era mágico, o barco chegaria em seu destino, Anahera só não podia imaginar qual era, pelo menos tentava não imaginar o pior.

As suspeitas de Anahera foram precisas. Logo o barco, deslizando rápido sobre a água do lago inclinado, se aproximou o suficiente para que a garota visse o pequeno globo, flutuando sobre a água... E somente sobre a água. Não havia mais a margem. Talvez, por conta daquele lugar ter se inclinado, a margem estivesse agora debaixo d'água, o que era um problema, pois as paredes da caverna ainda estavam ali, esperando por Anahera.

A feiticeira sabia que o barco estava rápido o suficiente para deduzir que ele seria reduzido a lascas se batesse contra o muro e, Anahera, muito provavelmente, se tornaria uma massa disforme de carne morta.

A feiticeira teria que tomar uma decisão rápida, sua mente pouco ajudava, aquela confusão incomum e o cenário distorcido que água aparentava fazer em seus movimentos fazia Anahera pensar que estava em um sonho.

O fogo da tocha ainda resistia, mesmo que quase todo fogo sendo lançado para trás. A feiticeira observa o barco ficando cada vez mais próximo do globo de luz.

- Droga... Se isso não for real, o barco vai bater na parede e eu vou voltar a realidade... Ou então atravessar a parede... Eu preciso acreditar! Anahera estava um pouco aflita, e como de costume, falava consigo mesma, sua vida solitária fazia que a maioria dos seus diálogos fossem dela, com ela mesma.

Aos poucos Anahera aproxima o fogo da tocha no pulso do seu braço esquerdo, duvidava de seus próprios sentidos, duvidava até de ter sentido a úmida e lamacenta areia que tinha sentido quando empurrou o barco. O fogo arderia em dor e ela despertaria.

A feiticeira não parava de olhar pra frente enquanto o calor da chama aumentava cada vez mais em seu pulso, o terror da parede estava mais próximo a cada segundo que passava e o calor da chama se tornava insuportável.

- Eu não consigo. Anahera afasta a tocha de seu pulso e se joga do barco quando estava próximo ao globo de luz, abortando o plano de tentar a sorte contra a parede, talvez fosse melhor acreditar que aquilo tudo era real que se perder para sempre nos complexos labirintos que a morte providenciaria.

O pulso de Anahera já ardia quando a garota puxou a tocha e continuou ardendo depois. Mas não havia tempo para olhar a queimadura, e a feiticeira se joga como pode nas águas do lago, e a última coisa que ela ouviu foi o som característico do fogo sendo dominado pela água.

Debaixo d'água, Anahera sentiu seu corpo ser freado bruscamente e então a tranquilidade a envolveu. Sob as águas, outro mundo existia. Mal Anahera havia sentido a água e um cardume de peixes passou por ela, pequenos peixes de escamas prateadas e escarlates, que subiam e desciam na água negra. Mais adiante, dois peixes longos e azuis nadavam calmamente. A feiticeira notou que, agora que estava de fato dentro do lago, as águas pareciam muito mais claras, ou talvez mais nítidas. Foi então que ela notou o globo de luz acima dela, e como a luz dele parecia muito mais forte dentro d'água.

Era impressionante os mistérios que o mundo reservava, Anahera conseguia comparar aquele "novo mundo" com o natural que ela vivia. Apesar de ter trancado a respiração, se sentia tranquila o suficiente para acreditar que as águas daquele estranho lugar funcionariam como o ar, e o globo de luz como o Sol.

Antes de tentar conhecer aquela nova situação melhor, Anahera tenta subir a superfície novamente para respirar mais uma vez, usando o globo de luz como referência.

Assim que coloca a cabeça para fora da superfície e tira o excesso de água dos olhos, Anahera vê que tudo estava ainda mais estranho. A caverna havia girado 90º em seu eixo, a entrada e a margem pedregosa sumiram sob as águas do lago e tudo o que a feiticeira via era a escuridão, a não ser por um ponto luminoso alguns metros acima de sua cabeça.

Anahera espera um pouco com a cabeça fora da água, esperava retomar o fôlego enquanto observava a rotação da caverna, mas como fora da água não conseguia enxergar quase nada, ela segura o ar no pulmão e mergulha novamente.

Dentro da água a feiticeira se sentia mais tranquila, e intuitivamente decide nadar para onde os peixes nadava, como se fossem seus guias.