Caminhos na Escuridão

Quando enfiou a cabeça mais uma vez na água, Anahera viu dois enormes animais cruzando as águas lentamente. A pele deles era azul, de um tom mais claro que o da água, e o ritmo vagaroso deles era hipnotizante e serviu para afastar da garota toda tensão que ainda pudesse haver por causa da queda livre dentro do barco.

Anahera começou a nadar para o fundo e cada vez mais fundo. Cardumes dos mais variados peixes cruzavam seu caminho, sem se importar com a invasora do mundo seco. A feiticeira não conseguia ver o fundo do lago e, contrariando o que ela havia pensado, logo seu fôlego começou a minguar e Anahera precisou voltar para a superfície em busca de ar. Quando tornou a colocar a cabeça fora d'água novamente, Anahera viu que a caverna não tinha se movido, mas o globo de luz estava exatamente acima da cabeça dela.

Com a cabeça fora da água, Anahera nota o Globo de Luz mais uma vez, acima de si. Estava confusa ainda, mas tranquila. A feiticeira não estava conseguindo decifrar o enigma do lugar, caso tivesse algum, simplesmente teria que interagir com ele e descobrir uma saída.

Outro mergulho ela deu, nadou cada vez mais perto das criaturas enormes, seguindo-os, aproximando-se e tocando-as, seguraria suas nadadeiras caso as criaturas permitissem, deixaria que elas nadassem por ela enquanto tentava observar o fundo do lago com os olhos submersos, aproveitava cada bolha de ar deixado na água para auxiliar sua respiração.

Anahera vê que as criaturas já estavam fora de seu alcance, nadando muito além da superfície. A garota começou a nadar atrás dos animais, batendo as pernas com força, se afastando cada vez mais da luz do globo. A garota nadou e nadou e nadou e quando percebeu, estava ela também muito além da superfície. Muitos e diversos peixes nadavam ao redor da feiticeira agora, como se de repente Anahera tivesse cruzado alguma fronteira entre o lago subterrâneo e mar aberto.

Antes que pudesse pensar em seguir ou voltar, um clarão de luz cegou Anahera por um momento e, quando ela conseguiu olhar para o que havia causado aquilo, a pequena esfera estava na frente da garota, flutuando. Flutuando? Sem saber como, Anahera estava fora d'água, de volta a caverna, mas acima da superfície do lago, em pleno ar. Quando a garota se deu conta disso, caiu pesadamente na água, que estava gelada e causou arrepios por todo o corpo de Anahera.

Inevitavelmente Anahera afunda em relação a superfície da água após a queda, e logo quando se recompõe da queda, Anahera nada em direção ao brilho do globo até voltar a boiar na água.

A feiticeira realmente estava perdida, não lembrava como havia parado ali e não lembrava como havia perdido seus itens. Continuava boiando, só sua cabeça estava fora da água, olhava para os lados, observava o quê podia observar, observava o quê o globo de luz queria que ela observasse. Aos poucos e devagar, Anahera boiava empurrando a água que impulsionava seu corpo para a margem do lago, e lá na margem ela volta a caminhar na lamacenta areia, circundando o lago até onde podia. 

A feiticeira nunca foi tão conhecedora das artes arcanas, ela apenas tinha o dom, o conhecimento que tinha a maioria era de experiencias próprias, pouco provinha de estudos, mas no fundo de sua mente conturbada ela vasculhava por alguma informação ou sinal que tinha deixado passar batido.

Spoiler:

Anahera flutua em direção à margem, sem se dar conta de que tudo havia voltado ao normal. A linha horizontal da caverna está onde deveria, a água do lago beira a margem de pedra, escondendo toda a areia, e o teto da caverna, qualquer que seja a altura dele, está onde deveria. A garota caminha até a margem, os pés afundando gentilmente na areia macia sob a água, mas isso quase custou suas sandálias algumas vezes.

Em pé e molhada, Anahera já tinha o globo de luz ao seu lado, impassível e silencioso. A feiticeira pensou consigo no que aquilo tudo significaria e como era possível uma caverna girar, mas antes que pudesse chegar em qualquer conclusão, uma voz grave surgiu atrás de Anahera.

- Se sentindo perdida?

Anahera se virou, apreensiva.O que viu era algo que nunca pensava ver um dia. Um homem, se é que era mesmo um homem, alto e musculoso, aparentando ter uma constituição física perfeita. Sua pele era castanha, seus olhos alguns tons mais escuros e eram ferozes. Estreitos e aguçados, parecia que eles atravessavam a carne da feiticeira e enxergavam sua alma, como todos os seus pecados e virtudes. Anahera não se lembrava de muitas coisas de sua vida, mas a sensação que aqueles olhos passavam a garota tinha certeza de nunca ter experimentado antes. As orelhas do ser eram côncavas e pontudas, e ficavam eretas todo o tempo. A mandíbula forte se projetava para a frente e terminava em um nariz negro, pequeno e triangular. Caninos proeminentes surgiam dos dois do maxilar, dentes brancos como Anahera nunca tinha visto. Uma espada descomunal descansava em uma bainha presa às costas da criatura por duas tiras de couro presas em seu peito e ombros nus e musculosos, e uma calça de tecido leve e claro e sandálias de couro negro eram as únicas roupas que ele vestia.

- Um pouco! Responde imediatamente Anahera à aquela figura.

Havia ficado um tanto assustada com a aparição repentina, e no mesmo momento que responde a criatura forte, ela se coloca em posição de combate, não por quê teria achado que aquela criatura lhe faria mal, havia sido um movimento natural por conta da aparição surpresa da criatura.

Passando o susto ela volta a se portar normalmente, a postura curvada de combate se torna a postura natural ereta, emendando o diálogo.

- Quem é você?... E onde estou?

o homem não esboça nenhuma atitude diante da reação de Anahera. Talvez ele compreendesse que a visão de sua pessoa causasse esse tipo de impacto.

- Fique tranquila, não lhes desejo nenhum mal. - O homem fez uma mesura com sua cabeça canina - Meu nome é Iaoth, e eu fui enviado para auxiliá-la.

Asteraoth deu passos firmes e tranquilos na direção de Anahera.

- Nós estamos em um lugar que você devia conhecer. Estamos na sua alma, na sua mente, dentro da sua própria existência. Toda a conturbação deste lugar é apenas um reflexo de si, Anahera.

- Você foi enviado... Minha mente...

Anahera tava um pouco confusa, nada mais parecia ter sentido.

- Iaoth... Se eu eu estou na minha própria, eh.. Existência... Você foi enviado por quem? Por mim?

Anahera continua o dialogo com aquela criatura, se dispersa um pouco do que acontecia ao redor e focava-se na criatura, queria lembrar dele caso acordasse repentinamente.

- Eu não entendo o quê causou toda essa conturbação, até onde me lembro é uma maldição que carrego comigo.

A feiticeira estava segura que realmente a criatura não lhe queria mal, algo incomum para ela que sempre guardava um pingo de desconfiança consigo, talvez fosse a magia do local ou a irrealidade de sua mente que fez ela aproximar-se cada vez mais da criatura, mostrando confiança, se sua mente fosse tão conturbada quanto aquele lugar, realmente estava precisando de ajuda.

- Uma maldição, ao meu ver, é motivo suficiente para tudo isso. O único motivo desta conturbação, na verdade. A maldição e o que veio antes dela - Iaoth se aproxima de Anahera, caminhando de uma forma peculiar. Os movimentos eram fluidos e leves; não pareciam ser de uma criatura feita apenas de músculos - Você nunca se perguntou o motivo de ter que esquecer o passado?

- Talvez, pode que já tenha me questionado sim... Pode que eu tenha esquecido o motivo... Do quê me adianta? Provavelmente esquecerei novamente... A selva é perigosa e preciso dos meus feitiços pra sobreviver.

Anahera responde a criatura, deixando Iaoth se aproximar, ela vira de costas e da dois passos em direção a água, continuava tentando achar algo, mas não sabia o quê.

- Faça o quê você veio fazer, me auxilie.

- Alguém lhe disse que eu estou aqui para lhe auxiliar? - Iaoth cruzou os braços sobre o peito, imóvel à beira do lago - Se nem mesmo você sabe o que quer, como eu poderia cumprir este meu suposto dever?

- Mas... Você disse que está aqui pra me auxiliar... hã... tudo bem...

Anahera olhava para o globo de luz e caminhava para mais próximo dele, sempre olhando para o quê conseguia enxergar ao redor. O sujeito não parecia querer simplesmente ajudar, era um pé no saco que queria de alguma forma ajuizar a feiticeira.

- Pra começar, eu quero que você me mostre a saída desta caverna... Mas você citou a maldição, a maldição e o que veio antes dela... O quê veio antes da maldição?

"A minha existência"

Uma voz falou dentro da cabeça de Anahera. Antes que a garota pudesse fazer algo, Iaoth sacou sua espada com um movimento rápido e a cravou no chão. Sua espada atravessou a pedra como se fosse carne, a carne de Anahera, e a feiticeira gritou quando sentiu a dor no peito, a dor do aço frio atravessando seu coração.

"A minha vida"

O pequeno globo de luz vacilou uma vez e por poucos segundos a caverna ficou completamente escura. Anahera sentiu a água do lago esquentar e então a luz do globo voltou, mas mais fraca. Iaoth estava ajoelhado, com as mãos no chão, rindo histericamente.

- A maldição! A maldição!

O globo estava translúcido e sua luz minguava rapidamente. O lago já soltava vapores que envolviam a feiticeira, tocando a pele da garota, fazendo-lhe carícias úmidas e quentes. Iaoth não parecia mais ter nenhuma razão dentro de si e o globo havia sumido por completo, junto com sua luz. A água estava quente o suficiente para queimar a pele de Anahera, um tremor violento tomou a caverna, a garota ouviu pedaços de rocha caindo na água por todo o lado e uma estalactite caiu ao seu lado, espirrando água fervente sobre a feiticeira.

Tudo acontecia repentinamente, muito rápido. Anahera sente o golpe da criatura e grita, caindo de joelhos no chão úmido e quente, apoiando no chão uma das mãos.

- ... Eu não consi... Eu não consigo levantar! A feiticeira intermediava sua fala com leves gritos e gemidos, era insuportável a dor que sentia, não podia imaginar que mesmo em seu coração endurecido, uma pontada de uma lâmina poderia doer tanto, anestesiada apenas pelo calor da água que queimava sua pele.

Foi só quando a estalactite caiu próximo de si que Anahera se levanta, de forma muito custosa e sobre mais gemidos de dor. A feiticeira toca uma de suas mãos em sua barriga e cria um campo de força que a envolvia, se afastando de onde a estalactite havia caído, correndo, ou pelo menos tentando, para onde melhor lhe convinha em meio a tudo aquilo. Iaoth já não parecia ter razão para lhe ajudar, e sequer respondeu algo coerente antes de enlouquecer.

O chão rachou assim que Anahera deu seu primeiro passo. Dar outro passo para escapar do buraco não adiantou, já que por todos os lados a pedra rachava e se abria. Engolindo a água, logo os buracos eram grandes o suficiente para que Iaoth sumisse na escuridão junto com as rochas. As paredes, a estreita margem, tudo desaparecia na escuridão, apenas a garota restou, suspensa no ar, sem saber como aquilo acontecia. Uma fraca luz surgia de algum lugar... O globo, é claro.

Mas, antes que Anahera pudesse se confortar, pelo menos um pouco, pela presença da pequena esfera, sua luz começou a minguar, minguar até sumir. A garota pensou ter visto o globo em outro lugar, mas era apenas o espectro de luz marcado em seus olhos. O silencio era absoluto e, junto com ele, veio o frio. Logo Anahera tremia, sentindo-se completamente impotente diante de tudo aquilo. A feiticeira parecia sentir o frio lhe agarrando, apertando-lhe os braços com mãos gélidas e terríveis, roçando em seu cabelo com dedos de puro frio... E logo a apreensão se tornou um profundo medo quando Anahera sentiu a mão que envolvia seu pescoço. Os dedos longos e finos, gélidos como a neve de inverno. Dois olhos surgiram, encarando a garota, púrpuras e com um sombrio brilho vermelho de sua íris. Anahera estava imóvel, petrificada pelo medo.

- Antes da maldição, eu caminhava pela terra. Antes de tudo, eu era o senhor do caos. E logo eu voltarei, Anahera. Logo eu serei livre novamente.

Anahera sentia o temor correndo em suas veias, era indescritível o sentimento que lhe afligia, nunca havia se sentido tão indefesa. Não conseguia se mover, só poderia pensar, e reclamar. A jovem forçava o pescoço tentando fugir do frio que transcorria o pescoço, mas nada feito, logo os olhos púrpuras encaravam ela ao som de vozes destorcidas que pouco entendia.

- Eu não consigo acreditar!... Eu... Eu estou, possuída?... Minha... Maldição... Senhor do Caos... Anahera falava com o sofrimento em sua voz, o medo custava folego para falar e sua voz saia falha, estava exausta daquilo, alguém estava brincando com ela e nada podia fazer, talvez fosse ela, ou Iaoth, ou quem quer que fosse falando em sua cabeça.

Os dedos se apertaram ao redor do pescoço de Anahera, tão gelados que queimavam a pele. As palavras sumiram e logo o ar também. Antes que a garota pudesse esboçar uma reação, os dedos se soltaram e as unhas deslizaram pelo peito de Anahera, arrancando sangue da pele por onde passava, e parou quando chegou perto de onde estava o coração. Não havia nada segurando a feiticeira, mas Anahera estava completamente imóvel, incapaz de fugir ou se defender. Pensamentos variados corriam pela mente perturbada da garota e, de forma súbita, Anahera sentiu uma dor descomunal em seu peito.

As unhas, os dedos e a mão haviam rasgado magia, pele e carne e penetrado fundo no corpo da feiticeira. O sangue escorria, rubro e quente, pela barriga e pernas de Anahera, manchando o chão. Os dedos gélidos se envolveram ao redor do coração da feiticeira e Anahera sentiu um enorme desespero e uma dor indescritível, que nunca havia sentido antes. Seu corpo ficou exausto e Anahera por um momento sentiu vontade de dormir, mas logo ela percebeu que estava morrendo. Aqueles olhos púrpuras a encaravam e sugavam sua vida, gota por gota, cada suspiro dela. Anahera tentou resistir, mas acabou fechando os olhos e mergulhando em um profundo mar calmo e gélido.

Aquele sofrimento tinha de acabar, tudo aquilo não poderia ser real, suas dores colocava um pé no mundo da realidade mas sua mente empurrava o resto do corpo em um mundo fantasioso, estava morrendo, sua vida era drenada pouco a pouco, mas se fosse pra morrer na escuridão desconhecida, que morresse na escuridão das profundezas daquele estranho lago.

A feiticeira gasta suas últimas energias nadando cada vez mais fundo, afastando-se daquela criatura horrenda, se afastando até mesmo do globo de luz que era seu único ponto de segurança, talvez fosse esse o erro de Anahera até então, o mesmo globo de luz que lhe dava segurança também era a razão pra ficar tão exposta em um mar de escuridão. Naquelas alturas, a única maneira de não temer o quê não podia ver, era fazendo parte da escuridão.

Anahera se desvencilha da mão espectral e nada fundo, mais e mais fundo, fugindo de seu toque gélido, mas não havia para onde fugir, não havia como se esconder. A garota sente garras finas arranhando sua perna e subindo por suas costas e segurando seu ombro. Outra mão surge e agarra novamente o pescoço de Anahera, arrancando os últimos momentos de ar que a feiticeira tinha. Anahera se debate, desesperada, mas não conseguiu se soltar outra vez.

Agora sendo empurrada cada vez mais para o fundo, a feiticeira sente a pressão da água esmagando seu corpo cada vez mais forte e vê as preciosas bolhas de ar se afastando. Não havia como resistir, o fim parecia próximo.

- Seu corpo será meu!

Anahera vacilou por um momento, fechando os olhos, mas os abriu rapidamente. Precisava manter-se acordada. A perna arranhada queimava, o pescoço de Anahera doía e do peito da garota um líquido vermelho escorria, mesclando-se com a água. Anahera sentiu os olhos fecharem novamente, mesmo contra sua vontade. As mãos não vacilavam, mas a feiticeira sim. Sem conseguir resistir, Anahera foi sendo levada cada vez mais para o fundo do lago.