Olá pessoal, tudo bem?
Eu sempre quis usar esse espaço de contos desde quando inaugurou e acho que seria um bom momento de fazer isso agora que estou de volta ao forum. Esse é um conto/noveleta que comecei a escrever esses dias e vou compartilhar aqui conforme os capítulos ficarem prontos. Espero que gostem e aceito críticas, xD
CONTINUA...
Eu sempre quis usar esse espaço de contos desde quando inaugurou e acho que seria um bom momento de fazer isso agora que estou de volta ao forum. Esse é um conto/noveleta que comecei a escrever esses dias e vou compartilhar aqui conforme os capítulos ficarem prontos. Espero que gostem e aceito críticas, xD
- INSPIRAÇÃO PARA O MERCENÁRIO VINCENT E A FEITICEIRA ELISA:
- O Bastardo da Cidadela - CAPÍTULO 1:
Como sangue diluído nas águas do rio Baronel, sua luz escarlate cobria a cidade pelo terceiro dia seguido. Eu tinha a clara impressão de que a lua vermelha no céu parecia saudar e aguardar, com mórbida expectativa, a conclusão do meu próximo serviço.
Era a única luz disponível, pois as ruas escuras do Bairro das Ratazanas não tinham iluminação alguma, nem uma mísera tocha. Em sua maior parte era feita de casebres e barracos abandonados, caindo aos pedaços. Apenas pessoas mais humildes viviam em algumas daquelas residências, compartilhando o espaço com sujeira, esgoto, criminosos...e outras coisas muito piores.
Não que eu esteja reclamando. O manto negro que me cobre da cabeça aos pés ajuda a me manter camuflado nas sombras da noite, enquanto me arrasto com rapidez pelos becos sujos e fedorentos desta que é a parte mais perigosa da cidade. Seguro firme o cinto que carrega minha lâmina, de forma que meu alvo não ouça um tilintar sequer que possa levá-lo a ter a mínima suspeita de que estou na sua cola. Para ser sincero, isso não faz muita diferença agora, sei para onde Terence vai e claramente não tem como fugir de mim...mas eu gosto de manter o elemento surpresa, sabe? Ajuda no drama…
As vezes eu simplesmente não consigo evitar.
Vou acompanhando enquanto sua silhueta magra, quase esquelética, dobra uma esquina que dava para um beco sem saída. Me escondo rapidamente atrás de uma parede de madeira podre, quando ele olha nervosamente para trás. Sua aura de nervosismo é para mim quase como um farol. Ele está tremendo, quase consigo sentir daqui. Não há muito o que possa fazer, Terence. Dessa vez você foi longe demais.
E eu preciso cumprir meu contrato. Tenho um nome a zelar.
⎼ Acabou, Terence. Chega de brincar. ⎼ Digo em voz alta, enquanto saia das sombras, sacando a espada.
Acompanho toda a expressão em sua face se retorcer em uma máscara de horror, sua boca, quase uma linha incolor, se abre em espanto revelando os vários dentes podres. Ouço uma fungada de seu nariz anormalmente longo e torcido. Terence leva os dedos e agarra alguns tufos de seu cabelo ralo com força. Mesmo no escuro, seus olhos brilham como se tivesse encontrado encontrado o próprio Ceifador Sangrento, ao olhar para minha lâmina. Não que eu esteja totalmente errado ao afirmar isso.
Sob muitos aspectos, ele lembrava uma ratazana. Talvez tivesse algum parentesco com os temidos homens-rato que diziam viver nas camadas mais profundas dos esgotos da cidade, embora eu mesmo nunca tinha visto um deles pessoalmente. Mas imaginava que deveriam se parecer com Terence, magrelos, escorregadios, furtivos e feios.
⎼ V-Vi-Vincent?! ⎼ ele me responde em um sussurro com sua voz anormalmente fina, enquanto encosta seu corpo magro, vestido em farrapos, na parede. ⎼ Olá, amigo. Quanto t-tempo, não?
⎼ Não se faça de desentendido. Você realmente achou que ia conseguir roubar do Duque de Monteilier e fugir da cidade sem ninguém no seu pé, Terence? Eu não sou o único que está te procurando. O duque não está nem um pouco feliz.
Quem poderia dizer que aquela criatura de aparência tão desprezível era um ladrão conhecido e razoavelmente bem-sucedido? Terence era o tipo de pessoa que ninguém olharia duas vezes e, o que era ótimo para ele. Pois no momento seguinte, o patife estaria arrombando a tranca da sua casa e fazendo a limpa.
Mas Terence tinha um problema muito sério: com frequência tentava agarrar mais do que cabia nas mãos. Normalmente nessas situações, quando dava merda, ele conseguia sair na base da conversa, suborno ou com um ou outro osso quebrado no lugar de uma facada no coração.
Mas dessa vez...não.
⎼ Por favor, Vincent! Somos amigos. - ele continuou, a voz elevando-se aos poucos devido ao desespero. - Já fizemos alguns trabalhos juntos. Sabe como sou, não consegui resistir. O colar do duque estava ali, é minha chance de aposentadoria. Eu posso te dar um dos rubis se me deixar ir embora, pegar o navio….por favor...
Terence havia ido longe demais dessa vez, roubando o colar de rubis da recém falecida filha de um dos homens mais influentes de Porto Baronel. O maldito era habilidoso e admito que conseguir tal feito era algo notável mas, mesmo assim, nem um pouco sábio. Não demorou muito para o duque ter todos os mercenários de Porto Baronel atrás dele com a gorda recompensa que foi oferecida. Tudo em nome da memória de sua filha e, principalmente, do próprio orgulho de nobre ferido.
⎼ Idiota, Terence. E se eu te deixasse ir? Você não vai conseguir sair da cidade. Navio NENHUM vai te levar, pelo contrário e você sabe disso.
Respirei fundo antes de continuar enquanto avaliava sua reação. Ele olhava para todos os lados agora, tentando achar uma forma de sair, talvez escapar por alguma porta das diversas ruínas abandonadas ... mas estava encurralado.
⎼ Sinto muito, Terence.
Tentei fazer da forma mais rápida e limpa possível. Ele não estava totalmente errado no final das contas. “Amigos” era uma palavra muito forte para definir meu relacionamento com Terence... mas já participamos de mais de um serviço juntos, pois ladinos habilidosos podem ser úteis em diversa situações.
⎼ NÃO, VINCEnnn…!
Seu grito ecoou por todo o quarteirão mas cessou rapidamente quando seu coração foi perfurado pela minha espada. Mas apenas eu estava lá para ouvi-lo. Talvez as ratazanas também.
Limpei minha lâmina na parte não manchada da roupa de Terence e começei a revistar o corpo. Prova da morte não seria necessária se o colar estivesse intacto. Não precisei procurar muito, estava no bolso esquerdo de sua calça de couro, embrulhado em um pano encardido. Intacto.
Passei alguns segundos admirando o colar. Era uma bela peça de fato, feito em ouro maciço e cravada com rubis de tamanhos variados. Deveria valer o dobro da recompensa oferecida pelo duque, se você procurasse as fontes certas. Qualquer outro mercenário ficaria tentado a ficar com a jóia para si, talvez seguir o plano de Terence e comprar uma passagem de barco para bem longe, depois de vender tal preciosidade. Mas eu não era esse tipo de mercenário. Tinha uma reputação a zelar em Porto Baronel. Minha espada era meu ganha pão e não a ladinagem.
Além disso, a idéia de brincar com o luto de qualquer pessoa não me era nem um pouco atraente.
Guardei a peça com cuidado no meu próprio bolso, voltei a me cobrir com o manto e decidi dar o fora daquele lugar desolado. Antes de virar à esquina, de uma última olhada no corpo sem vida de Terence e dei de ombros.
⎼ Sinto muito. Amigos amigos, negócios à parte.
***
Quando se trata de tavernas, o primeiro pensamento é o de gente animada, bebendo, comendo e jogando ao som de algum bardo intrépido e talentoso. Uma briga aqui e outra ali, talvez, mas o clima normalmente tão alto quanto o barulho.
Acontece que esse barulho é o inferno quando se quer ter uma noite tranquila de sono.
O quarto onde estou hospedado fica no segundo andar da taverna Canto da Sereia, uma das mais famosas da cidade. E hoje é sexta, o que torna dormir uma tarefa extremamente complicada. Sempre durmo muito após concluir um serviço. Ou tento, pelo menos.
Passaram-se dois dias desde que dei cabo de Terence nas Ratazanas. Devolvi ao duque o lhe era de direito e agora passo meus dias desfrutando do ouro que recebi. É o suficiente para me manter na cidade por mais algumas semanas, mas não pretendo demorar tanto assim para conseguir um novo contrato.
Viver da espada é viciante. Essa é uma verdade que todos os aventureiros, guerreiros e mercenários sabem no fundo de seu coração, embora nem sempre estejam dispostos a admitir. Muitos clamam pela aposentadoria e a dizem desejar a vida tranquila de fazendeiro, mas depois que se prova a adrenalina da batalha e se derrama o primeiro sangue, é um caminho sem volta. A espada sempre te chama de volta e a esse chamado temos apenas duas opções: viver o resto dos dias lembrando com certa amargura dos dias que vivíamos pela espada ou então morrer por ela. Todas as possibilidades são variações desses dois destinos.
Eu não planejo parar tão cedo, não importa quanto dinheiro ganhe. E espadas são sempre necessárias em Porto Baronel.
Completamente convencido de que não conseguiria mais dormir aquela noite, eu me levantei e passei um tempo sentado na cama. Havia uma vela em cima do criado mudo, bem ao lado do espelho, mas não é necessário acendê-la. Apesar de estar no meio da madrugada, a iluminação era satisfatória graças ao fato da janela do meu quarto ter vista privilegiada da Cidadela Prateada. A luz mágica que emanava de suas grandes e ostensivas torres suspensas em pleno ar era tão forte que dispensava o uso de tochas, lampiões ou qualquer fonte de iluminação naquela parte da cidade.
Pois a Cidadela Prateada era o lar dos Lordes Feiticeiros, os verdadeiros governantes do continente. Somente a eles era garantido o privilégio de viver naquelas torres voadoras, de desfrutar das riquezas e deleites de uma vida paradisíaca. Lá viviam as famílias cujo sangue vinha diretamente de Vestarak, o Deus Dragão e patrono da humanidade. A capacidade de realizar feitiços, de manipular as forças naturais que regem o mundo, era a prova dessa conexão com o sangue do dragão, pois apenas os herdeiros de Vestarak tinham a capacidade inata de fazer magia. E por isso têm o direito de viver no céu.
O resto de nós que se vire aqui em baixo.
Dei uma olhada no espelho após me levantar. Meus cabelos escuros estão uma bagunça, minha barba precisa um tanto desgrenhada precisa ser aparada antes que tome o meu rosto. Talvez seja bom deixar ela crescer, daria para esconder a cicatriz no meu maxilar. Mas confesso que nunca gostei da minha barba. A luz da Cidadela Prateada realça a palidez de minha pele e as tatuagens no meu braço direito, que um dia brilharam com a marca de Vestarak e indicam meu nascimento e infância nas torres flutuantes, agora não passam de riscos negros e sem cor.
Sim, eu nasci na Cidadela Prateada. Mas não sou mais um reconhecido como um descendente do Deus Dragão. Acontece que, diferente dos meus parentes que ainda vivem lá em cima, eu não nasci com o dom da magia.
Acontecer isso é algo raríssimo mas não inédito. Com a passagem dos milênios, desde os primeiros descendentes de Vestarak, alguns nascidos na Cidadela Prateada não demonstraram possuir a habilidade inata de usar a “arte”. E, assim como eu, eles foram considerados “impuros”, “bastardos”, “amaldiçoados” dentre outros maravilhosos títulos que também foram dirigidos à mim quando eu fui expulso. Exilado como uma vergonha para a família e condenado a viver no mundo de baixo com o resto da plebe.
Alguns de meus ancestrais que sofreram deste mesmo destino não aguentaram e preferiram o conforto da morte e do esquecimento ao tormento de nunca mais poderem entrar no paraíso que um dia chamaram de lar. Fracos de espírito, na minha opinião. Talvez nunca merecessem viver, para começo de conversa, seja aqui seja na Cidadela. Não, eu não sou um deles.
Eu me adaptei. Eu sobrevivi.
O que sobrou da marca de Vestarak em meu braço é apenas uma mera lembrança amarga de uma vida que não mais me pertence e não mais me interessa. Apenas a espada me interessa. E se minha família, Lordes Feiticeiros e até Vestarak não me consideram digno, eles que se fodam.
Após me arrumar, decido descer até a taverna. Meu sono foi completamente perdido.
- O Bastardo da Cidadela - CAPÍTULO 2:
- O taverna que ocupava o primeiro e segundo andares do Canto da Sereia era construída em um grande salão feito de pedra. Era uma das construções mais bem feitas e aconchegantes de Porto Baronel e uma das razões disso é justamente o fato de sua simplicidade, limpeza e bom serviço. Era um lugar com público considerado neutro: aqui você pode encontrar desde simples fazendeiros tentando relaxar após uma semana dura de labuta até jovens nobres em busca de diversão longe da pomposidade das cortes, passando por aventureiros, viajantes e, claro, mercenários de aluguel, assim como eu.
Como já esperava, o lugar estava lotado. A luz das tochas e dos lampiões que iluminavam o lugar lançavam sombras dançantes no teto alto conforme a multidão de pessoas comia, bebia, dançava e cantava. As noites de sexta eram sempre assim no Canto da Sereira.
Usando o forte balcão de carvalho como um palco improvisado, um velho e conhecido bardo local dedilhava seu alaúde enquanto se esforçava para projetar sua voz acima da multidão barulhenta. Paro por um momento para ouvi-lo. A voz do velho claramente já teve dias melhores, mas ainda consegue entreter seu público com uma conhecida balada sobre uma princesa guerreira e um troll. Alguns aplausos após o final da música, que descreve uma batalha épica, e seu chapéu ganha algumas moedas.
Ele se prepara para começar uma nova canção quando nossos olhares se encontram. Ele me saúda com um movimento da cabeça cheia de cabelos grisalhos e desce do púlpito improvisado com um salto felino que faz esvoaçar seu manto colorido, agradecendo aos seus “queridos apreciadores de uma boa música” e vem ao meu encontro, segurando firmemente seu chapéu cheio de moedas.
⎼ Parece que a noite está sendo boa para você, meu velho. ⎼ digo apontando para o chapéu verde esmeralda na mão de Valleren.
⎼ Já foram melhores, meu rapaz. Bem melhores. No meu tempo, minhas canções traziam multidões. Eu precisava de um chapéu muito maior do que este para colocar todas as moedas que recebia. E era ouro, Vincent! Nada dessas moedinhas de cobre vagabundas. Eu ganhava tanto dinheiro que às vezes guardava dentro da Juju aqui. ⎼ ele responde, dando umas batidinhas carinhosas no alaúde, várias vezes remendado e concertado com o passar dos anos.
⎼ Deveria ter guardado um pouco desse ouro, Valleren. Se não tivesse desperdiçado tudo em farra, quem sabe hoje teria sua própria casa de shows e um nome grande.
⎼ Pois eu digo que você talvez esteja certo, caro Vincent. Mas não me imagino vivendo de outra forma. Ah, as mulheres...caíam aos meus pais só de ouvir a minha voz. Noites e noites de paixão, meu rapaz. E corações quebrados. Como sinto falta de deixar alguns corações quebrados por aí.
Valleren não olhava diretamente para mim. Como várias outras vezes em que conversamos, quando falava de seu glorioso passado, ele parecia se perder do presente. Era como se não estivesse mais ali com você mas dedilhando novamente seu alaúde em alguma festa de nobres cheios de ouro para gastar ou quebrando o coração de alguma donzela.
⎼ ...mas agora me resta os trocados do meu chapéu para viver ⎼ ele disse, voltando a si e olhando novamente para mim - e os sussurros, é claro. Venha Vincent, vamos discutir negócios.
⎼ Sim. Acho que já dormi o suficiente. ⎼ digo cruzando os braços e acompanhando o Agente dos Sussurros de Porto Baronel, que de vez em quando fazia bicos como bardo, até a única mesa vazia do Canto da Sereira.
Era um lugar estratégico. Ficava no segundo andar e razoavelmente afastado da bagunça. A iluminação era precária, nos deixando parcialmente na escuridão. Haviam alguns lugares assim no Canto da Sereia, feitos para clientes que precisavam tratar de negócios, que apreciavam a privacidade.
⎼ Ouvi dizer que o bom Duque de Monteilier ficou muito satisfeito com o retorno do precioso colar de sua querida filha, que Vestarak a tenha.
Fiz uma careta ao ouvir o nome do patrono da Cidadela mas se Valleren notou, na escuridão que nos encontrávamos, não demonstrou.
⎼ Posso dizer que também estou. O ouro é bom. Mas Terence não compartilha da mesma opinião…
⎼ Aquela ratazana já estava com os dias contados há muito, muito tempo! ⎼ Valleren disse rispidamente, a voz carregada de nojo. ⎼ Há anos ele vinha fazendo serviços “extras” sem a autorização da guilda. Mas que diabos, ele era competente, isso tenho que reconhecer, mas aquele filho de uma puta nunca estava satisfeito. Uma hora ia feder pra ele, Vincent. Ele teve o que mereceu.
⎼ Sim, teve mesmo. Mas agora, vamos Valleren, você disse que tínhamos negócios para tratar. Quero um novo sussurro. ⎼ disse apoiando os cotovelos na mesa.
⎼ Certo, certo. Bem, o pagamento desse não é tão grande quanto o anterior. Mas ainda é um bom dinheiro, acima da média. Diga-me, o que sabe sobre os Maroh?
Pensei durante alguns segundos antes de responder.
⎼ Hum...não muito. Fazendeiros, possuem terras férteis no Distrito Rural mas não são excepcionalmente ricos, apesar do patriarca carregar um título nobre...o que tem eles?
⎼ O patriarca é o velho Frederick Maroh e ele não frequenta a corte apesar de ter o título. Ele tem uma filha, Aurora, a única que nasceu, momentos antes da morte da esposa. A garota deve ter uns quinze anos, mais ou menos. Bem, o problema é com ela na verdade. Sumiu há dois dias.
Me ajeitei no banco de madeira e tomei um gole de cerveja.
⎼ O Maroh tinha algum inimigo? Como ela tem certeza de que ela foi sequestrada? Pode ter fugido ou algo assim. Sabe como são os jovens hoje em dia.
⎼ Sim, claro. Mas fica difícil pensar em fuga se você olhar a bagunça que deixaram na casa do velho quando ele chegou da feira. Dizem que a garota tinha gênio, deve ter lutado. Mas sumiu mesmo assim. O velho não pensou duas vezes e veio correndo atrás de nós. quer a filha de volta, viva. E se puder arrancar algumas cabeças dos bastardos que a levaram, ele não se incomoda. O que acha? Vai aceitar o serviço?
⎼ Me dê o endereço. ⎼ disse sem rodeios.
***
Pouco mais de uma hora depois aceitar o trabalho com Valleren na Canto da Sereia, eu estava chegando na propriedade Frederick Maroh. Ainda era noite em Porto Baronel mas aqui, adentrando na zona rural, a Cidadela Prateada nada mais era do que um ponto pálido no céu. Havia pouca ou nenhuma iluminação através da estrada de terra, além da luz de lampiões que encontrava em um ou outro casebre habitado pelos lavradores que há muito já estavam dormindo, preparando-se para acordar bem cedo, antes mesmo do sol sair no céu. Meu caminho também foi silencioso. Definitivamente eu estava longe da bagunça do grande centro urbano de Porto Baronel, de modo que o barulho dos insetos era a única coisa que se misturava com os cascos do meu cavalo.
Não demorou para eu encontrar a casa de Maroh. Era a maior e mais bem acabada, apesar de ainda carregar o ar de simplicidade do campo. Era que claro que, apesar de tudo, levava uma vida simples mas nem longe sem conforto.
O velho me esperava na varanda, sentado em uma cadeira de balanço, balançando lenta e silenciosamente. Mas da distância que eu estava não conseguia decifrar a expressão em seu rosto.
⎼ Boa noite. A Guilda me enviou. ⎼ disse após desmontar do cavalo e ir caminhando até ele. A única fonte visível de iluminação era um lampião que ficava no chão ao lado do velho, sua luz fraca graças ao óleo que provavelmente já estava acabando.
Ele usava couro e algodão, sujos de terra, lama e lágrimas provavelmente.
⎼ Todo o ouro que eu dei a eles e só puderam me enviar você?
⎼ Eu sou tudo o que vai precisar, senhor. ⎼ disse com firmeza e olhando-o nos olhos enquanto apontava para minha espada embainhada. Pelo menos aonde eu imaginava que os olhos estariam, uma vez que metade de seu rosto era invisível naquela penumbra. ⎼ Conte me tudo.
⎼ Muito bem, então...
Ele permaneceu imóvel por alguns segundos, sustentando meu olhar por trás das sombras da noite, antes de se levantar com dificuldade, o rangido da velha cadeira de balanço cortando o silêncio de morte que preenchia o ar à nossa volta. Percebi que ele mancava na perna direita, quando fez um sinal para que eu o acompanhasse enquanto pegava o lampião e abria a porta principal de casa.
⎼ Eu também já fui um aventureiro, sabe? ⎼ ele continuou enquanto me guiava, acendendo outros lampiões para iluminar o lugar ⎼ costumava viajar o continente escoltando caravanas nos tempos da guerra com o Lorde Traidor. Mas então enfiaram uma adaga na minha perna pouco antes da guerra acabar, quando decapitaram o filho da puta. Aí eu decidi que era hora de parar.
Conforme o interior da casa se iluminava com os lampiões, eu pude ver o cenário de destruição que se instalara lá dentro. Móveis quebrados, uma cômoda partida ao meio. Cortinas rasgadas em frangalhos. Duas cadeiras reviradas e outras três completamente despedaçadas. Havia um rastro de sangue, já seco, que ia do meio da sala e terminava em uma janela com vidros quebrados.
⎼ Você tem filhos, mercenário?
⎼ Não... ⎼ respondi enquanto analisava o rastro de sangue. O combate lá dentro havia sido selvagem, sem dúvida.
⎼ Se tiver a sorte de ter algum dia, ensine-os tudo o que sabe. Ensine-os a usar essa espada que carrega na cintura. Eu ensinei tudo o que sabia à minha Aurora, tudo sim. Ela sabia onde estava minha velha espada. Esse mundo é cruel com todos, principalmente com os jovens. E ela aprendeu muito bem, dá pra ver que deu a eles uma bocado de trabalho.
Continuei a estudar o caos do lugar. Tudo o que aconteceu estava ali, se você soubesse como procurar as pistas. Havia pegadas de lama junto com as marcas de sangue. Um combate de cinco, contando a filha do velho. Eles tinham conhecimento de que ela sabia lutar, por isso qualquer intenção de combate honrado foi jogada na lixeira. O plano era levá-la e nada poderia impedir que isso acontecesse. Mas Aurora aguentou bem, por isso deve ter machucado feio pelo menos um deles. O rastro de sangue provavelmente era dele. Mas no final foi subjugada e nocauteada. Caiu de cabeça no chão, posso ver a mancha já seca na madeira, junto com um pedaço de tecido azul. Eles não perderam tempo, amarrando-a logo em seguida e a arrastando pela janela.
⎼ E então? ⎼ perguntou o velho Maroh.
⎼ Eles vieram para levá-la. Precisam dela viva e aparentemente isso era muito importante para valer todo o esforço. E sabiam que ela podia lutar. Por isso enviaram quatro. Sua filha machucou um deles, possivelmente grave, mas a luta foi injusta. Foi nocauteada e saíram com ela pela janela, possivelmente para evitar qualquer um que viesse aqui após ouvir os sons do combate.
⎼ Eu sabia! ⎼ ele exclamou. ⎼ Minha garotinha está viva! Então ainda há tempo...sim, ainda há!
Olhei para o lado de fora da janela, o rastro de sangue continuava. Quem quer que tenha sangrado tanto assim, não poderia ter ido longe. Ainda havia tempo, de fato.
⎼ Vou atrás deles. Provavelmente pegaram a estrada sul, de volta para a cidade.
⎼ Vou com você, mercenário.
⎼ Não. ⎼ disse com rispidez. ⎼ um velho manco só vai servir para me atrapalhar.
⎼ É a minha filha!
⎼ E eles são profissionais. Assim como eu. Então me deixe trabalhar.
Decidi não prolongar a discussão, eu estava em uma corrida contra o tempo. Fui até meu cavalo e dei a volta na propriedade, pegando a estrada sul. O velho Maroh não me seguiu, para meu alívio. Se ele morresse no caminho, ficaria sem meu ouro.
Percorri a estrada com pressa mas da forma mais cautelosa quanto possível, numa tentativa de não deixar passar nenhuma outra pista que possa me aparecer pelo caminho. A luz da Cidadela Prateada se intensificava conforme eu fazia o caminho de volta para a cidade. Daqui a algumas horas o sol nasceria mas isso não importava. A luz do paraíso que flutuava acima de nossas cabeças era capaz de rivalizar com a lua, o sol e as estrelas. A magia dos filhos legitimos de Vestarak era o ápice do poder, abaixo apenas do próprio Deus Dragão. Forças da criação manipulada pelos governantes do paraíso. Apenas beleza e poder, não havia falhas.
Não deveria, pelo menos.
Os pensamentos são interrompidos quando meu sentidos captam algo, alguns metros à frente. Havia uma sombra sob uma árvore, que logo percebi ser a silhueta de uma homem. Segurei firme as rédeas do cavalo e o fiz diminuir a velocidade até um trote manso, me aproximando cautelosamente da figura. Devia ter por volta de 35 anos, careca. Porte físico de guerreiro, o que confirmei quando vi a lâmina jogada alguns metros à frente dele. Havia bastante sangue em suas roupas, ferimento de corte, provavelmente. Sua respiração estava irregular, hora profunda, hora acelerada.
Não pude deixar dar um sorriso de canto de boca, antes de descer do cavalo e me aproximar do sequestrador caído. Provavelmente aquele que foi ferido pela filha do velho Maroh.
⎼ Realmente, não existe honra entre bandidos, não é mesmo? ⎼ disse em voz alta para chamar sua atenção.
Funcionou, ele ainda estava consciente e se voltou com dificuldade para me olhar.
⎼ Acabe com isso logo de uma vez e me poupe do discurso.
O bandido cuspiu aos meus pés, uma bola vermelha de sangue. Tal ato pareceu ser extremamente difícil para ele.
⎼ A garota te machucou bastante. Seus amigos acharam que não valia à pena levar você e te abandonaram para morrer aqui, não é mesmo? Mais ouro para eles, provavelmente.
Me agachei e fiquei de frente para ele. Olhei-o nos olhos, sem um pingo de emoção.
⎼ Mas você é durão e não morre fácil. Sua vontade de viver é admirável, preciso admitir. Você pede que eu acabe logo com isso mas eu tenho uma proposta melhor.
Apesar de seu estado, agarrando-se à sua vida por um fio, sinto seus olhos observarem com atenção o movimento de minha mão até minha algibeira, de onde tiro um pequeno frasco contendo um líquido verde musgo.
⎼ Sabe o que é isso? Elixir de Cura dos alquimistas de Exon. Tive um ótimo pagamento do último serviço e pude comprar alguns frascos. Apenas uma gota é o suficiente para curar pequenos cortes mas esse frasco inteiro pode salvar sua vida. Você quer viver, não quer?
Ele acenou sem tirar os olhos do frasco em minha mão, novamente um movimento que pareceu extremamente difícil para ele e doloroso, a julgar pelo gemido que deu em seguida. Pude perceber um certo brilho nos olhos do homem que claramente significava desespero.
⎼ Então me diga, para onde estão levando a menina?
Ele sussurrou algo indistinto, engasgando-se com o próprio sangue, quer tossiu logo em seguida, empapando ainda mais suas vestes.
⎼ Não ouvi. É melhor se esforçar mais.
⎼ Terceiro. Armazém. Ratazanas.
Era o suficiente. Guardei o frasco novamente na algibeira e saquei minha adaga. Ele teve tempo para apenas um olhar de horror e um começo de protesto, antes de eu cortar sua garganta com um movimento preciso e profundo.
Larguei seu corpo sem vida no chão, voltei para o cavalo. Lancei um último olhar de frieza para a Cidadela Prateada e seu povo perfeito, antes de acelerar o passo de volta para Porto Baronel.
- O Bastardo da Cidadela - CAPÍTULO 3:
- De volta às Ratazanas.
Para ser sincero, não estou surpreso. Praticamente todo o sindicado criminoso que se preze escolhe essa parte da cidade para se esconder e operar seus negócios. É perfeita. Parcialmente abandonada, escura e nenhum interesse por parte dos Lordes de Porto Baronel em se esforçar para renová-la. Se você procura os piores tipos de criminosos, o Bairro das Ratazanas é o lugar para o qual deve ir...se tiver coragem e, claro, estômago.
O cheiro da lama com excrementos vai tomando conta de minhas narinas como um gás venenoso. Ele é parcialmente tolerável nos limites com as outras áreas da cidade mas ia piorando progressivamente conforme eu avançava para o interior do Ratazanas, consequência do sistema de esgoto que há muitos anos não recebia manutenção apropriada.
Hoje é difícil pensar que tal cenário de nojeira e desolação urbana já foi uma área nobre de Porto Baronel. Na época, não se chamava Ratazanas, é claro, mas Bairro da Lira, graças a quantidade de artistas que vivia aqui, músicos principalmente.
Mas então veio a infestação de ratos, saindo aos montes dos bueiros, das latrinas, trazendo com eles a Praga Negra. Ninguém pôde descobrir até hoje o que trouxe esses pequenos monstrinhos contagiosos em tal quantidade para os esgotos daqui. Alguns dizem que foram os supostos homens rato, criaturas híbridas, sujas e monstruosas que eram imunes à praga, em uma tentativa de tomar a cidade inteira. Eu particularmente nunca vi um desses e prefiro que continue dessa forma.
Uma doença infecciosa que até mesmos os grandes alquimistas reais de Exon tinham dificuldade em tratar foi o que matou milhares de pessoas, incluindo grandes músicos, pintores e artistas de grande prestígio. Com a pilha de corpos queimados dobrando a cada dia, foi decretada a quarentena pelo Conselho dos Lordes. Não era permitido entrada nem saída do Bairro da Lira, sob pena marcial. As tensões foram crescendo, assim como as mortes, até que o homem que mais tarde seria conhecido como Lorde Traidor manipulou o desespero do conselho para aceitar uma solução extrema: queimar o lugar inteiro com os poucos infelizes que ainda sobraram vivos. O argumento era o de que todo o lugar estava infectado, incluindo as pessoas presas lá dentro. E não havia cura para a praga.
Já ouvi de gente que testemunhou de perto as chamas ardendo por todo o lugar e as cinzas subindo tão alto que nem mesmo a luz da Cidadela Prateada pode ser vista aquela noite nas proximidades. Eles dizem que têm pesadelos até hoje com aquele dia terrível, suas mentes extremamente perturbadas por terem presenciado tamanho ato de abominação e crueldade.
Mas isso faz muito tempo, décadas antes mesmo de eu ter sido banido da Cidadela Prateada. Mas é uma prova de que os humanos são seres cruéis por natureza, sejam lá em cima, seja aqui em baixo.
Finalmente encontro o armazém três.
Os “armazéns” são o que restou das grandes construções que preenchiam este cenário desolado antes da grande queimada. Tavernas, teatros, mansões...a maior parte hoje não passa de madeira e pedra queimadas, ruínas que assombram este lugar de tragédia. Ainda sim, algumas poucas estruturas conseguiram resistir ao fogo, ao tempo e ao abandono mas, devido a negligência do Conselho dos Lordes e sua completa incapacidade de tomar uma iniciativa para recuperar esta parte de Porto Baronel, essas estruturas servem a vários outros propósitos mais...escusos.
Usando o manto, o capuz e as sombras para me manter oculto, vou me esgueirando pela parede leste do armazém, que antigamente costumava ser uma pequena casa de espetáculos. A pintura externa está descascada, enegrecida em vários pontos e em outros coberto de limo. Se me dissessem que o lugar era assombrado, eu ficaria tentado a acreditar. Uma parte do telhado caiu há muito tempo e o que sobrou dele ainda resiste sabe lá o porquê. Pela vontade das supostas assombrações, talvez?
Dou uma espiada para o que, antigamente, deveria ser a entrada principal. Um homem enorme, carregando uma espada na cintura, está de guarda. De costas para mim. Aparentemente sozinho.
Terei apenas uma chance.
Saco minha adaga e, silencioso como um gato, me aproximo com cautela. Ele só percebe minha presença quando sente a mão segurando sua boca e treme quando corto o pescoço com a lâmina. Um movimento rápido mas profundo. O cheiro ferroso preenche minhas narinas quando sangue jorra por toda o seu couro acolchoado. Naqueles segundos em que vê sua vida se esvaindo pela garganta, ainda em confusão, ele tenta agarrar a mão que segurava sua boca, numa tentativa de gritar talvez. Não perco tempo e uso a adaga para apunhalar sua cabeça. Uma, duas vezes. Ele cai finalmente com um barulho que me deixa preocupado à princípio. Olho à minha volta na tentativa de identificar alguém que possa ter ouvido mas não encontro. Tenho sangue em minhas no meu manto, no meu rosto e em minhas mãos mas a ação desta noite apenas começou.
Não perco tempo com o corpo e faço meu caminho para dentro da construção arruinada, silenciosa e atentamente. Ando por um pequeno corredor até o salão principal em frangalhos. Um monte entulho velho e enegrecido ainda persiste como uma lembrança da queda do telhado. Pegou uma parte do pequeno palco. Não que o que tenha restado dele esteja lá em melhores condições. O cheiro de poeira e velharia se junta ao de esgoto.
Não havia nada naquele lugar. Só destruição e abandono.
Isso estava errado. Se não houvesse nada, então qual o motivo de colocar uma sentinela na entrada? Respiro fundo e começo a analisar com calma o local...palco destruído. Telhado de pé pela metade. Ruínas despedaçadas do que antigamente era uma pequena arquibancada. Um tapete enorme e...razoavelmente novo?
Empurro o tapete com o pé. Um alçapão. Bingo.
Tento abrir com cuidado a tampa do compartimento mas o rangido da madeira reclamando me deixa incerto se consegui ou não ser bem sucedido em entrar sem ser notado. Não há muito o que possa fazer e não posso esquecer que meu tempo é curto. Não tenho a menor idéia do que esses bandidos querem com a garota mas algo me diz que não posso demorar muito se eu quiser garantir meu ouro.
Desço um pequeno lance de degraus e sinto a madeira velha inclinar e ranger sob meus pés. Havia um lampião queimando, pendurado em um compartimento na parede. Dava uma boa iluminação ao local um tipo de porão. Havia um corredor escavado na terra, cujo final não conseguia enxergar.
Paro por um momento. Meus sentidos gritam em aviso. Sinto os pelos do meu braço se arrepiarem. Novamente aquela sensação maldita. Estou sendo seguido, estou sendo observado. Dou uma olhada à minha volta mas não vejo nada. Mas que diabos! Pego o lampião e vou caminhando silenciosamente pelo corredor. Posso ver diversas pegadas, ele foi usado recentemente. Alguém foi arrastado por aqui também. Aurora. E provavelmente não estava mais inconsciente. Tentou se livrar, se debater e fugir. Mas as amarras foram feitas de forma eficiente.
Continuo o meu caminho pelo corredor escuro e, alguns passos à frente, entro em uma nova sala parecida com a anterior. A única diferença é a presença de uma estátua feita de pedra, representando a figura não muito bem moldada de um humanoide. Um pouco maior do que eu mesmo, a estátua tinha a forma um guerreiro em armadura completa e segurando em suas duas mãos, em uma posição de ataque, havia um enorme martelo de guerra.
Logo atrás da estátua havia o caminho continuava. Sem pensar duas vezes e sem me deixar intimidar pela estátua, ando em direção a passagem. Tive pouquíssimos segundos para perceber que algo estava terrivelmente errado. Com um barulho ensurdecedor e um movimento largo, o guerreiro de pedra gira o imenso martelo de guerra em minha direção. Me jogo para trás com rapidez, desviando por milímetros de um golpe que potencialmente poderia me quebrar o crânio.
"Mas isso é impossível!", exclamo enquanto salto para trás rapidamente, me afastando daquela ameaça. O guerreiro de pedra, lenta e pesadamente, levanta seu martelo e segue em minha direção, preparando mais um golpe. Apenas magia seria capaz de animar essa estátua! Mas estamos bem longe da Cidadela…
A criatura era lenta mas bastaria apenas um golpe para quebrar um membro do meu corpo. O martelo desce novamente atingindo o chão no momento em que eu giro para esquerda, circulando seu corpo e sacando minha própria espada. Faço um ataque pelas costas. A lâmina grita no momento em que atinge a pedra mas o único resultado são algumas lascas caindo no chão. Como resposta, a criatura solta uma das mãos do martelo e tenta um safanão com as costas de mão, dessa vez me atingindo em cheio no peito e me jogando para trás. Bato com força de costas na parede e um bocado de terra cai na minha cabeça. Uma dor enorme atinge o meu peito, não preciso nem olhar para saber que vou passar um tempo com um hematoma gigante.
Com a força da porrada, minha espada cai no chão. Preciso de um plano melhor.
Me recupero com rapidez a ponto de escapar de um terceiro golpe, dessa vez com toda a potência do martelo. O chão treme com a força e ferocidade do construto. Ele prepara novamente sua arma. Preciso de uma solução. Não preciso ser um feiticeiro da Cidadela para saber que essa criatura pode continuar nessa dança mortal comigo eternamente...ou até que eu mesmo esteja cansado demais para escapar. Apenas uma porrada certeira daquele martelo e nenhum elixir de Exon vai me salvar de uma cabeça esmagada.
Elixir de Exon…
Dou mais um passo na dança mortal com meu adversário e tenho tempo de desviar de um segundo ataque, por muito pouco. Maldito. Era assustador pensar que essas criaturas tem consciência o suficiente para aprender com nossos movimentos em combate e criar suas próprias contra-estratégias.
Saco um dos frascos mas, ao contrário do elixir de cura, o conteúdo desse frasco específico era muito mais peculiar. Ácido de Verme Fantasma. Extremamente difícil de conseguir e custa uma fortuna. Mas acho que vai dar. Aguardo ele levantar o martelo novamente, bem acima da cabeça. Na hora certa, arremesso o frasco com força em direção ao teto logo acima dele, enquanto salto para trás a fim de evitar o respingo. O frasco se quebra e seu conteúdo cai bem e cima das mãos que seguravam sua arma. O efeito de corrosão é instantâneo e o martelo, agora livre dos punhos que o seguravam, cai bem na cabeça dele. O impacto faz metade de sua cabeça cair no chão.
Mas ainda não estava acabado.
A falta dos punhos, do martelo e de metade da cabeça aparentemente não era o suficiente para derrubar aquela coisa. Ele avança em minha direção, usando o corpo e o que sobrou de seu braço para continuar a luta. Ele não desistiria daquela batalha até me abater. E eu não tenho mais frascos de ácido.
Isso não pode continuar, preciso recuar.
“Ele vai cair se você destruir a fonte que sustenta seu poder.”
⎼ Quem disse isso? Onde está essa fonte? ⎼ digo em voz alta enquanto rolo para direita. O corpo de pedra atinge a parede onde eu estava um segundo atrás, deixando uma grande rachadura.
Na confusão, consigo recuperar minha espada do chão.
“Eu lhe mostrarei.”
Nesse momento, tive certeza de que a voz estava na minha cabeça. Mas nem de longe era meu subconsciente, apesar de eu ter a impressão de que me era familiar. Comunicação telepática era uma forma de magia bem comum na Cidadela. Sinto um comichão no braço onde estava minha tatuagem. Isso acontecia quando um feitiço era conjurado próximo de quem possui a marca, apesar da sensação não se comparar com aquela que um feiticeiro de verdade experimenta. Mas eu não tinha idéia de algum dia voltaria sentir isso novamente.
A sensação vem acompanhada de palavras ditas em uma língua antiga, um idioma que me forcei a esquecer. O guerreiro de pedra prepara uma nova investida mas, subitamente, algo muda. Seu peito brilha com uma luz esmeralda. Um pequeno ponto apenas. Mas era tudo o que eu precisava.
Eu aguardo por sua nova investida. Ele dispara, na sua lentidão e eu me agacho, apontando a lâmina para o alto e estocando, na direção do ponto luminoso. Ao contrário do que eu esperava, o golpe não atinge pedra dura mas entra com facilidade como se eu estivesse enfiando a lâmina em uma poça de lama.
O efeito é instantâneo. O guerreiro de pedra, no mesmo segundo, se desfaz em areia bem acima da minha cabeça. O silêncio toma conta novamente do lugar. Respiro fundo, recuperando meu fôlego antes de me levantar e sacudir toda a sujeira.
⎼ Chega de mistérios. Você está me seguindo desde que saí da fazenda. Mostre-se.
Uma figura encapuzada se materializa ao meu lado. Apenas aparece do nada, como se fosse criada do próprio ar à minha volta. Usava um robe prateado que a cobria da cabeça aos pés, apenas seus olhos eram visíveis, amendoados, brilhantes e vivos. Um brilho de vivacidade sobrenatural que todos os feiticeiros da Cidadela Prateada compartilhavam. Ela retira o capuz revelando o rosto fino e simétrico, a pele negra como ébano, lisa e macia. Perfeita, sem falhas.
Por isso a voz me era familiar.
⎼ Elisa...
⎼ Vincent, há quanto tempo. ⎼ ela diz, esboçando um sorriso.
- O Bastardo da Cidadela - CAPÍTULO 4:
Elisa caminhou graciosamente até o monte de areia que poucos segundos atrás era o guerreiro de pedra, o fino tecido de suas vestes prateadas balançando leve e silenciosamente, seus cabelos negros como a noite, longos e pesados, estavam amarrados em uma trança intrincada. Carregava um semblante sério no rosto mas, quando voltou-se novamente para me encarar, sua voz era suave como veludo e o sorriso havia retornado.
⎼ De todas as pessoas que esperava encontrar nessa missão, confesso que você era a última delas. Precisei de um tempo para acreditar que era realmente você quando o encontrei na floresta. Nunca imaginei que ainda estaria…
⎼ ...vivo? ⎼ eu respondi após recuperar-me da surpresa do reencontro.
Elisa Rasland era, assim como eu, apenas uma criança quando a encontrei brincando nos Jardins Brancos da Cidadela. Nos tornamos amigos inseparáveis aquele dia e, por anos, achávamos que nunca terminaria.
Estávamos errados.
O sorriso deu lugar a uma expressão de desolação. Ela não conseguia me encarar nos olhos e aquilo me incomodou. Era a mesma expressão que tinha cinco anos atrás, quando eu falhei no Teste da Feitiçaria e, logo em seguida, quando fui condenado ao exílio nas terras de baixo. Não achava que, depois de tanto tempo, ainda me afetaria.
⎼ Não se culpe, Elisa. Eu não seria o primeiro a preferir morrer do que viver como um bastardo.
Ela voltou a me encarar nos olhos. Um momento silencioso, solene, se passou. Voltei a encarar o monte de areia que quase me matou minutos atrás.
⎼ Como tem sido, Vincent?
⎼ Estou me virando.
A passagem protegida pelo guerreiro de pedra jazia a nossa frente. O simples fato de ter tal criatura como guarda havia me alertado para o fato de que algo muito mais perigoso do que imaginei estava ocorrendo aqui. Algo que ia além de um simples sequestro.
⎼ Elisa… essa coisa que me atacou não deveria estar aqui. O que a Cidadela Prateada tem com este lugar? O que está acontecendo?
O fogo do lampião gerou sombras que caíram sobre a face de Elisa, que se converteu em uma expressão grave.
⎼ Você se lembra da Sagrada Biblioteca, Vincent?
⎼ Impossível esquecer. Sempre que queria falar com você, chamá-la para brincar nos jardins, era lá que eu a encontraria.
⎼ O contrário é o mais provável…
⎼ Talvez.
Uma das maiores construções da Cidadela, a Sagrada Biblioteca estava longe de ser meu local favorito. Sua torres brancas e lotadas de prateleiras infinitas, contendo tomos, pergaminhos e livros que datam desde que Vestarak concedeu o dom da escrita aos seres humanos, no início dos tempos. Eu sempre me perdia no meio daqueles corredores repletos de escritos empoeirados. Mas não Elisa. Para ela a Sagrada Biblioteca era praticamente sua segunda casa. Eu lembrava das várias vezes em que precisava gritar por ela pois, uma vez lá dentro, eu nunca sabia como sair daquele labirinto que ela tinha tão bem gravado em sua própria cabeça.
Elisa continuou.
⎼ Depois que você, bem...depois que você foi banido, eu pensei que nunca mais o veria de novo. Foi horrível, Vincent. A Sagrada Biblioteca era meu único refúgio para tentar esquecer o que havia ocorrido. Eu me tornei aprendiz da Grande Mestra dos Tomos. Tenho dedicado minha vida a essa tarefa desde então.
⎼ Eu sinto muito por tudo, Elisa. De verdade. Mas, mesmo assim, fico feliz em saber que você tomou esse caminho. Você sempre amou aquele lugar.
⎼ Sim...mas é por causa da Biblioteca que estou aqui, Vincent. ⎼ ela me olhou nos olhos, havia uma grande preocupação neles ⎼ Aconteceu há 3 dias. Eu fui até os aposentos da Grande Mestra...e ela estava morta. Assassinada por magia. E um dos tomos foi roubado.
Tentei não demonstrar mas, pela segunda vez, Elisa me surpreendeu com tal declaração. Mesmo eu, um bastardo banido da Cidadela e com todos os motivos para ver os defeitos daquele lugar, jamais poderia pensar que um assassinato pudesse ser cometido naquele espaço supostamente sagrado. Você não precisava matar, roubar ou mentir na Cidadela Prateada. Você deveria ser puro no paraíso.
⎼ Isso é impossível Elisa...quem poderia cometer tal atrocidade? - minha voz era apenas um sussurro, tamanha minha descrença.
⎼ Eu não consegui descobrir ainda. Mas deve ter sido alguém com grande poder para desafiar a Grande Mestra. Tudo ainda é muito confuso. Mas, antes de morrer ela teve tempo de me enviar uma mensagem. Disse o nome de um tomo da sessão proibida que, pude constatar depois, foi roubado. O que também deveria ser impossível. Os feitiços que protegem a sessão proibida permitem apenas que a Grande Mestra tenha acesso a seu conteúdo. Eu só consegui entrar naquela parte porque sou a sucessora direta.
⎼ O que tem de tão precioso naquele livro, Elisa?
Para alguém ser capaz de assassinar a Grande Mestra e quebrar os selos mágicos que protegem a Sessão Proibida, o que quer que tenha naquele livro deve ser extremamente valioso...e perigoso. Ninguém a não ser o cargo mais alto da Sagrada Biblioteca sabe o que tem na Sessão Proibida mas a lendas percorrem toda a Cidadela. Dizem que em seus tomos e pergaminhos estão segredos e feitiços terríveis, que desafiam as bases e crenças no poder do Deus Dragão. É sabido que Vestarak enfrentou muitas guerras contra outras entidades terríveis, seres alienígenas e profanos, até que o mundo fosse moldado como é hoje, supostamente protegido contra tais seres das trevas. Dizem as lendas que os tomos da Sessão Proibida relatam essas guerras com detalhes capazes de enlouquecer a mente de um homem normal, seja na Cidadela, seja no mundo de baixo.
⎼ Eu não sei. E por isso tive medo de revelar o roubo aos governantes. Apenas alguém realmente poderoso poderia ter feito isso, Vincent. Não posso confiar em ninguém lá em cima e isso é horrível. Eu selei a Biblioteca e nos últimos dias tenho usado cada feitiço de localização que possuo para achar o tomo roubado, mas sem sucesso. Até que algo mudou, senti um padrão mágico vindo daqui, de Porto Baronel. Encontrei você na estrada e, pelo Dragão, tive certeza de que não poderia ser coincidência.
Há muito tempo eu havia desistido dessa fé em Vestarak, então, se era coincidência ou não aquele reencontro, eu não me importava e nem Lhe daria crédito por isso. Olhamos em silêncio por alguns segundo o caminho que seguia à nossa frente.
⎼ A confusão que causei aqui lutando contra a criatura de pedra provavelmente alertou quem quer que esteja no controle desse show de horrores lá na frente. Provavelmente estão nos esperando.
⎼ Não temos alternativa, temos?
Balancei a cabeça em negativa. Com a lâmina em punho segui em frente, com Elisa no meu encalço. Antes de seguirmos pelo corredor, as sombras alimentadas pelo lampião pareceram crescer à nossa volta, ameaçadoramente.
- O Bastardo da Cidadela - CAPÍTULO 5:
O corredor era estreito, escavado na terra e seguia para baixo, cada vez mais profundamente no coração daquela área maldita de Porto Baronel. O cheiro de podridão do Ratazanas estava pior do que nunca. Eu tinha certeza de que, à partir desse ponto, uma pessoa normal poderia ficar doente se passasse muito tempo ali. Ao contrário de mim, Elisa não esboçava qualquer sinal de desconforto. Provavelmente estava preparada com algum tipo de feitiço, ou talvez fosse apenas um efeito da mágica latente que os habitantes da Cidadela Prateada carregavam dentro de sí. Eu jamais poderia saber por conta própria pois, quando cheguei aqui, qualquer traço de poder ou imunidade mágica que poderia restar em mim já havia sido retirado. Na maior parte dos casos, eu era como qualquer habitante das terras de baixo.
Tive conhecimento de que estávamos chegando quando a escuridão do corredor foi parcialmente afastada pelas chamas de um novo lampião, situado na entrada do próximo aposento. Havia algum tipo de comoção vindo de dentro embora eu não pudesse discernir exatamente do que se tratava. Voltei-me para Elisa que acenou afirmativamente com a cabeça.
E entramos.
Era um grande espaço, quase do tamanho do salão principal da casa de shows arruinada que servia de fachada. Totalmente escavado na terra, com entulhos de dejetos por toda à parte. Mas naquele lugar o que nos chamou a atenção logo que entramos foi outra coisa, muito mais sinistra.
Havia um altar à nossa frente. Feito de terra, pedra e madeira velha, pintada toscamente com diversos símbolos grotescos em uma tonalidade rubra que só poderia ser sangue fresco. Diversos crânios adornavam a construção, alguns claramente humanos...outros horrivelmente deformados para serem classificados. Mas o pior era o que estava no altar, o corpo inerte de uma jovem nua, suja, e desgrenhada, amarrada fortemente pelos pulsos e pernas. O sangue ainda escorria de forma abundante até o chão, indicando que o ato terrível foi cometido pouco antes de entrarmos.
O responsável permanecia ao lado do altar. Alto, de aparência frágil devido a magreza de seu corpo, algo perceptível mesmo sob as roupas que usava, apenas um manto longo, vermelho e encardido. O rosto coberto por uma máscara totalmente negra e sem expressão. Ele se volta para nossa direção e ergue um dos braços como que para saudar nossa chegada. Com o outro aponta para trás, mostrando que a jovem naquele altar não era a única a correr perigo, pois outra encontrava-se na fila para o mesmo fim.
A semelhança com o velho Maroh era notável, por isso logo percebi que se tratava de Aurora, ainda amarrada mas não mais inconsciente. Havia em seu olhar um misto de confusão, medo e raiva. Ela lutava para se libertar das amarras, mas sem muito sucesso.
De alguma forma eu sabia que negociar não seria uma opção mas lancei o aviso mesmo assim:
⎼ Sou um membro da Guilda dos Mercenários de Porto Baronel. Há um contrato pela garota, então sugiro que pare com essa loucura e a liberte de uma vez...ou vou ficar muito feliz em levar sua cabeça ao meu contratante por umas moedas há mais.
Nenhuma resposta. Não que precisasse.
⎼ Vincent…
Elisa começou mas eu já havia percebido os vultos que se aproximavam sorrateiramente, nos cercando por trás e bloqueando a entrada por onde havíamos passado. Quatro lâminas foram desembainhadas à nossa volta, por homens cobertos da cabeça aos pés com capuzes idênticos ao outro que estava no altar.
⎼ O que acha das nossas chances? ⎼ Elisa perguntou, enquanto ficávamos de costas um para o outro, em posição de defesa com a tensão do momento aumentando e preenchendo o ar como o calor de uma fogueira.
⎼ Boas o suficiente.
Eles avançaram. Duas lâminas afiadas girando em um arco com velocidade em minha direção. Fui mais rápido, bloqueando a primeira com minha própria arma e girando para escapar da segunda. Usei o impulso para empurrar um de meus adversários com força para trás. O efeito desejado me deu espaço para girar minha lâmina em direção ao outro. Mas o bastardo foi rápido, prevendo meu ataque e o bloqueando com vigor. Meu encontro com o guerreiro de pedra minutos atrás havia me afetado mais do que eu pensei, comprometendo minha própria velocidade. Mas isso não importava, eram apenas dois e eu sabia me virar.
Ao meu lado, Elisa usava de suas próprias habilidades com surpreendente maestria. Seus dois oponentes atacaram ao mesmo tempo mas a feiticeira os recebeu conjurando uma barreira feita de pura luz, sólida como aço. Com uma palavra arcana e um movimento fluido, ela transformou a barreira de luz em diversos estilhaços, como cacos grossos de vidro, que explodiram e voaram em direção aos atacantes na forma de flechas de luz, cravando-se em suas peles em diversos pontos. O grito de dor e o recuo foram instantâneos.
Aquilo pareceu despertar o interesse do homem no altar. Enquanto eu bloqueava as investidas de meus dois oponentes, percebi que sua atenção estava totalmente focada em Elisa, à ponto de fazê-lo se afastar alguns metros do altar, esquecendo-se completamente de Aurora que ainda lutava para se livrar das amarras, agora com fôlego renovado, inspirado pela cena de combate que se desenrolava.
Aparei mais dois golpes de meus oponentes e, encontrando finalmente uma brecha em um deles, estoquei em direção a garganta. Houve uma tentativa de grito, barrada pelo golpe certeiro da lâmina que lhe atravessou completamente. O sangue escorreu conforme meu primeiro adversário caía no chão, inerte. Percebi uma hesitação em seu companheiro, o que me deu tempo de retirar a espada e retomar a posição em tempo de aparar seu golpe.
Luz se tornou fogo nas mãos de Elisa. Dois movimentos elegantes e velozes, como uma dançarina, e um de seus adversários entrou em combustão. Os gritos preencheram o todo o aposento, assim como cheiro de carne queimada que por alguns minutos ficou mais forte do que o cheiro de esgoto. Não pude deixar de pensar que, para uma bibliotecária, Elisa demonstrava ser uma pessoa muito perigosa no campo de batalha.
Esquivei de mais uma tentativa de meu adversário restante, girando minha lâmina em seguida e investindo para um contra-ataque. Ele foi mais rápido por pouco e conseguiu um bloqueio desajeitado. Era o suficiente para mim. Visualizei uma brecha e investi novamente, provocando um belo ferimento em seu ombro. Houve uma tentativa de recuo e um contra-ataque desajeitado mas era tarde demais para ele. Meu próximo golpe perfurou seu peito. Ele ainda teve forças para agarrar a deixar sua espada cair e agarrar a minha pela lâmina, ainda cravada profundamente a centímetros do coração, antes de cair morto no chão.
Me virei para Elisa no momento em que seu segundo adversário sofria o mesmo destino do companheiro, queimando até a morte. Voltamos a encarar o estranho encapuzado no altar.
⎼ Acabou.
Ignorando novamente minhas palavras ele puxou algo de dentro das vestes encardidas. Um medalhão que brilhava como prata. Sua voz, aguda e rasgada, começou a recitar palavras em uma língua que me era completamente estranha, mas fez com que eu sentisse um arrepio na espinha.
⎼ Espere um minuto, aquilo é…não pode ser! ⎼ Elisa começou e havia perigo em suas palavras.
Quando o homem no altar terminou, o ar à nossa volta parecia pesado. Era algo pior do que o cheiro de esgoto do lugar. Não, um tipo de energia sinistra fez-se convidada, impregnando todo o aposento como uma praga mortal.
⎼ Elisa, o que é isso?
⎼ Essa energia...é energia de morte. Magia de morte.
Eu entendi o que Elisa quis dizer da pior forma possível quando, no altar, o corpo da jovem morta começou a se mexer. Lentamente, de forma rígida e desajeitada, como alguém que estava acordando de um sono terrível, preenchido pelo pior e mais exaustivo pesadelo de sua vida. O sangue causado pela faca cerimonial responsável pelo golpe mortal ainda escorria do ferimento da ferida aberta. Ainda sentada no altar, ela se voltou para Elisa e eu pude ver em seus olhos que não havia qualquer resquício de vida lá dentro. Com um puxão, ela rompeu as cordas que a prendiam e gemeu, um lamento frio, atormentado e raivoso que me fez recuar alguns passos.
Aquela coisa não deveria existir. Mas ainda sim estava lá, nem viva, nem morta, levantando-se do altar e vindo em nossa direção. E ainda não havia terminado. Da mesma forma que a jovem no altar, os corpos de nossos adversários também se ergueram. Queimados, perfurados, ainda sangrando. Todos eles voltaram a se levantar, com o mesmo lamento alto, frio e atormentado.
O homem mascarado no altar, o responsável por aquelas profanações, começou a gargalhar.
CONTINUA...