"E de qualquer forma Faramir nos disse que não bebêssemos água nenhuma em Morgul.
- Nenhuma água que venha de Imlad Morgul, foram suas palavras - disse Frodo. - Não estamos naquele vale agora, e, se encontrássemos uma nascente, ela estaria correndo para ele, e não dele.
- Eu não confiaria nisso - Disse Sam -, não até estar morrendo de sede. Há uma sensação maligna neste lugar. - Sam farejou. - E um cheiro, eu acho. O senhor está percebendo? Um tipo estranho de cheiro, abafado. Não gosto dele.
- Não gosto de nada por aqui - disse Frodo -, pedra ou poço, água ou osso. Terra, ar e água, tudo parece amaldiçoado. Mas nessa direção vai nossa trilha." (Tolkien, O Senhor dos Anéis)
Ignastácia retirara a lâmina cravada no lombo do monstro com um gesto vigoroso, traçando no chão uma mancha em forma de linha. Limpara-a ali mesmo, usando aqueles pelos desgrenhados como pano, livrando-se dos restos de sangue maldito.
A ferida era uma flor que vomitava em vermelho, visco reluzindo sob a chama.
Alcançaram uma vitória, mesmo que momentânea. O cerco de três atacantes provara ser demais para aquela criatura, subjugada sem maiores dificuldades: não só caíra, mas nem ao menos chegara a ferir ou causar dano.
- Ainda bem que não vieram de uma vez, ou que nenhum de nós teve de encara-las só. Matei vários desses no caminho, mas não devemos bobear.
Retornara a espada à bainha, sinalizando que queria que o escudo fosse devolvido. “Mantenha a espada, por enquanto”, resmungara em complemento. “E você, fez bom uso do arco flanqueando esses bichos. Melhor manter a guarda até chegarmos no acampamento”. Não havia empolgação no tom dela, mas poderiam reconhecer como uma espécie de elogio. Ou ao menos um reconhecimento de que os julgara úteis. As flechas tinham sido decisivas, quase sozinhas matando dois adversários.
Entretanto, não se pôs em trote, dando seguimento à caminhada. Ao invés, agachou-se e, retirando o facão de caça, partiu a retalhar o lobo, sem deixar de imediato claro a que aquilo serviria.
De forma grosseira, separou carne de pele, atirando tiras para os acompanhantes.
- Deem um jeito de enrolar os pés. Sem tratar não vão ser muito duráveis, mas devem servir de sapatos provisórios – então, como se atingida por um fedor semelhante a enxofre, completou – o cheiro não é bom, mas ao menos não tem sangue pra atrair mais problemas.
Algo no humor dela parecia ter sido amaciado pelo fim do combate. Ao menos era o que parecia, uma vez que podia ter sugerido isso antes, no vale do despertar. Mas só agora demonstrara alguma preocupação com as condições deles.
Aquilo não fora nem de longe o mais inusitado.
Sem cerimônia, retirou o pesado capacete, depositando-o no solo. A ausência da máscara revelava uma mulher mais velha, inclusive mais madura que os dois viajantes do passado. Tinha o pescoço grosso, indicando que a corpulência não vinha apenas da armadura. Não parecia se importar em exibir certa parcela de cicatrizes e de cabelos brancos misturados a fios avermelhados, adereços a um rosto sisudo que indubitavelmente pertencia a alguém veterano de guerras. A pele era morena e, mesmo que algo curtida, parecia ser mais sua tonalidade natural que algum efeito do sol extinto. Mesmo sob aquela chama luz bruxuleante, era possível notar tristeza e amargura.
Mas o que lembrariam era o que viria em seguida.
Como um espírito selvagem, colocou um naco de carne crua na boca e, mal mastigando, engoliu-o. Lançara então um olhar enviesado a Arthur e Bergil. “É horrível, mas... . Não podemos nos dar ao luxo de prepara isso no fogo, mas garanto que o gosto não melhora. Ao menos vai nos sustentar até chegarmos”.
Era uma fibra dura e de aspecto pouco convidativo, numa cor não uniforme, um quase marrom com manchas esbranquiçadas. O aroma não ajudava nem um pouco. Era quase – quase – tão grotesco quanto ingerir carne humana, à diferença de que o problema era pertencer a uma fera amaldiçoada. “Os parasitas não costumam chegar nessa parte”, dissera como uma forma de alerta, mas, dada a situação, talvez melhor se tivesse se mantido calada.
- Uma pena não levarmos o resto, mas seria um peso a mais e o vento nos denunciaria facilmente.
Ofereceu da água do próprio cantil.