Desde muito jovem a morte está presente na vida de Eva. Ainda no útero de sua mãe, matou a irmã gêmea, em busca de espaço para crescer e se desenvolver de forma saudável. Matou, também, a mãe, que teve complicações por não descobrir a tempo que um dos bebês havia morrido e, em um momento de desespero, escolheu salvar a vida da filha, ao invés da sua. Matou o amor do pai, que perdeu a mulher que amava e ainda teve de cuidar da “assassina”.
Desde muito cedo, Eva sabia matar indiretamente, mas nunca foi em um enterro e nunca acabou com uma vida com as próprias mãos.
A morte deu à Eva uma infância feliz (a seu modo). Como ninguém brincava com ela, se imaginava em castelos voadores, brincando com princesas robôs e gatos falantes, como nos desenhos que via na televisão. Tinha muitas amigas: a boneca Sissi, feita de remendos que encontrara na sala de costura da madrastra; o namorado dela, Senhor Star, um all star velho e encardido, com dois olhos desenhados na ponteira amarelada e um cabelo de cadarços; e seu amigo favorito, o diário das mil e uma histórias, um livro de histórias de terror que ela encontrara no lixo da escola, com páginas faltando. Seu passatempo preferido era sentar debaixo da sua cama, enquanto suas meias-irmãs cantavam naquele karaokê irritante, e completar cada uma das histórias com um novo final (capacidade de concentração adquirida ainda criança).
Na pré-adolescência, decidiu que seria vegana. Não queria matar nenhum bichinho. Conseguiu se enturmar em um grupo no colégio, de jovens veganos e até resgatou um porco que estava sendo levado para o abate no matadouro perto da escola... Foi heroína por um dia... Até que todos do seu novo grupo descobriram que Eva havia levado o porco para um destino ainda pior: seu pai, que não conseguia por proteína de qualidade em casa há algum tempo, decidiu matar o porco enquanto ela dormia, de forma amadora e sem nenhum tipo de preocupação com o sofrimento do animal... E ainda colocou nas refeições por um longo tempo, dizendo que era uma jaca que havia encontrado. A menina foi chacota da família com aquilo e logo que contou para uma amiga, foi expulsa do grupo de veganos, sendo acusada de ser uma “comedora de carne”... Mais uma morte para a sua lista.
Após alguns anos, com o nascimento do novo filho do pai e da madrasta, a família resolveu que não havia mais espaço para Eva na casa. Ela foi morar com a sua tia por parte de mãe, na pequena cidade onde havia nascido e se mudado pouco após nascer. O pai detestava aquela cidadezinha de interior e, sem a mãe para o convencer, não quisera morar mais ali.
Na casa da tia, Eva teve sua inocência morta. O marido de Ivone era um homem nojento. Apesar de ter três filhas na idade de Eva, ele constantemente aliciava a menina, com olhares e passadas de mão. A jovem começou a ter pesadelos com aquilo, tentando ficar o máximo de tempo fora de casa. Ao mesmo tempo, começou a sair com Adam, que atualmente é o chefe de polícia da cidade.
Eva passava muito tempo com Adam, confiando nele para contar o que acontecia em casa. A jovem tinha vergonha de ir até a polícia e nunca deixou que o namorado contasse aquilo. O tio, vendo a jovem se desenvolver mais e mais e passar tanto tempo fora de casa, colocou horários para ela voltar, com apoio de Ivone. Ela, mesmo contrariada, acabou obedecendo.
Certa noite, enquanto escrevia um dos seus contos de terror, distraída em seu mundinho feliz no qual ela podia controlar as coisas feias que aconteciam, ela ouviu barulhos altos vindos do banheiro. Pareciam barulhos de tapas fortes. Preocupada, ela foi até lá e viu o tio transando de forma muito violenta com a tia... Ela tinha até marcas pelo corpo... E não pareciam marcas recentes. Se agachou pra observar pela fenda da porta aberta... Mas o tio a viu pelo espelho, dando um sorriso nojento. “Alguém está curiosa e quer brincar” ele disse e a puxou pra dentro do banheiro. A tia apenas observou as coisas terríveis que aconteceram ali, sem dizer uma palavra.
Episódios como aquele se tornaram frequentes. Eva se tornou uma jovem cada vez mais reclusa, brigando com o namorado sem motivos... Se irritando ainda mais quando ele perguntava se era por causa do tio. Nos momentos de maiores desespero, chegava até a se machucar, querendo sentir a dor... Era melhor do que sentir o que estava em sua mente.
Certa noite, ela fugiu de casa. Levou apenas uma mochila com algumas roupas, o dinheiro que roubou do cofre da família e o diário no qual escrevia seus contos. Em cima da cama, largou todas as porcarias que havia ganhado por ser uma “boa menina”... E no lixo do banheiro, um teste de gravidez com duas marquinhas cor de rosa.
[...]
Anos se passaram desde a fuga e Eva ainda imaginava como seria o rosto da filha que não conseguira matar. Apesar de ser de um homem que fez tanto mal a ela, aproveitou o dinheiro que havia roubado e levou a gravidez até o fim, trabalhando em lanchonetes, dormindo em abrigos... Fazendo coisas que não se orgulhava em becos escuros. Salvar aquela vida a motivara, e, após a colocar para a adoção, sem nem mesmo olhar o rosto dela, decidiu seguir sua vida sem olhar para trás.
Atualmente, Eva tem uma coleção de livros de horror e algumas obras de contos eróticos, publicadas sob o nome artístico de “Black pleasure”. Não achava que merecia o sucesso em seu nome real. Comprou uma Kombi e montou uma pequena casa dentro dela, viajando pelo país em busca de inspiração e diversão. Considera aquela vida feliz, sem conexão com as mortes de seu passado.
A única pessoa que mantinha o contato era Adam. Após uns anos da fuga, ela entrou em contato com ele e desde então se encontram esporadicamente, em algum motel pelas estradas. Talvez seja a única pessoa que ela confia de fato. Certa vez ele chegou a questionar se a criança não poderia ser dele... Talvez pudesse, mas Eva se recusava a pensar naquilo. Não queria ter vontade de procurar a filha, ela não merecia carregar o passado da mãe.
Eva doa boa parte do dinheiro que ganha para instituições que cuidam de mulheres e crianças, ficando apenas com o suficiente para sobreviver sem muito luxo. As festas que se metia, raramente tinha de pagar... Os seguranças se derretiam pela beleza incomum da jovem.
[...]
Essa noite, Eva recebeu um telefonema de Adam. Após mais de dez anos sem ver a família, talvez precisasse voltar para a casa. O tio havia sofrido um acidente e estava à beira da morte... A leitura do testamento só poderia ser feita com todos que seriam beneficiados presentes... Aparentemente, Eva havia sido agraciada com a “bondade” daquele merda.
“Você não precisa vir se não quiser... Aquela família que se foda” – a voz de Adam parecia revoltada no telefone. Ele se sentira na obrigação de avisar, mas não gostava da ideia.
“Eu vou. Quero ver ele morrer...” – Eva disse e desligou o telefone. Pela primeira vez desejando a morte de alguém. Ao desligar o telefone, percebeu que havia apertado tanto uma das mãos que as unhas haviam machucado a palma... E, ao invés de parar, fez aquilo novamente. Não se lembrava da última vez que algo assim havia acontecido.