“Gaviões de lixo”, exclamou o stalker em algum ponto daquela inesperada disparada, sem ao menos deter-se para verificar se o escutavam ou não, focando em salvar a própria pele. Forçou aquele passo decidido por um longo tempo ainda, o que só não foi mais dificultoso por estarem numa descida. Ao menos inicialmente, considerando que no momento já haviam passado daquela fase e encontravam-se novamente em terrenos mais elevados... e penosos.
Infelizmente, nenhuma elevação grande o suficiente que permitisse outra visão panorâmica podia ser encontrada nos arredores.
Aqui e ali deparavam-se com paisagens de beleza rara em comparação ao lugar de onde vinham, aglomerados de grama alta balançando aos sabores da brisa. Para pessoas de outros eras aquilo não pareceria muito, ou até mesmo vulgar, mas para quem nunca havia saído da Arca... . Mas, contrariando a “delicadeza” daquela descoberta, Rudaho foi extremamente taxativo sobre o assunto. “Não se aproximem dessa porcaria de forma alguma! Essa vegetação é carnívora. E ácida. Vai prender e começar a derreter vocês aos poucos, até ficar só o osso”. A natureza não parecia nada, nada indefesa naquela região perdida.
Apesar de estar evitando Mutt, Montoya também insistira naquela dúvida, ao que achou ser interessante que o resto do grupo tivesse uma melhor consciência de possíveis perigos. “
Ghouls”, falou ele. “Os nômades da Zona. Bem, pode ter sido qualquer um, quem sabe uma
outra arca, não? Mas todo stalker sabe dos perigos de se deparar com ghouls. São... bem, é difícil dizer o que são, pois andam sempre cobertos dos pés à cabeça e
não saem durante o dia. Dizem que até lembram pessoas, mas não são como nós. Não tem... ‘dons’ e são pouco inteligentes, meio animalescos, compensando na agressividade”. Conforme colocara, aquela era uma informação “do mundo velho”. Era de se esperar que também existissem aquele tipo de criaturas “do outro lado do mundo”, mas nada garantia que não seriam
piores que os já conhecidos. Uma ótima perspectiva.
Demorou muito até que o guia finalmente parasse, inicialmente como que dando tempo para que todos o alcançassem e recuperassem o fôlego por efêmeros instantes antes de seguirem viagem. Porém logo percebeu-se que ele estava de fato procurando por algo no chão, entre as pedras.
- Aha!!! – Soltou de súbito, seguindo-se de um suspiro de surpresa tamanha que era quase possível adivinhar a cara dele por sob a máscara velha.
Heckyl e Montoya estavam um tanto afastados – o capanga havia deixado a arma cair, forçando ele e o chefe a ficarem um bom pedaço para trás –, sendo que apenas Izu, Mutt e Priscila acompanharam aquela atrapalhada experiência. “Mas que negócio é esse?!?!”.
Era um objeto tão “alienígena” que era complicado mesmo de ser descrito. Podia ser
qualquer coisa, de algo a se tacar na cabeça de alguém a um peso de papel, tendo um formato levemente cilíndrico e possuindo vidros em ambas as pontas do “cano” e um “apêndice”. Por instinto – e talvez de maneira pouco prudente –, Rudaho levou-o próximo ao rosto, tentando olhar através dele, apertando por diversas vezes um botão e girando um “anel” no gargalo. Aquilo parecia extremamente sem sentido, mas o escoteiro parecia convencido de aquilo para olhar, permanecendo naquela análise atrapalhada, com a “plateia” ao redor, por vários minutos.
Voltou a suspirar, mas agora prestes a concluir frustrado que aquilo não prestava, não sendo possível enxergar nada... se é que era mesmo a função daquilo. Foi então que... . “Hummm...”, e assim deixou os outros ansiosos por entenderem. “Isso... será que... Talvez...”.
- Sim... só pode ser. Estava achando que era uma coisa pra ver de longe... ou ver coisas pequenas, mas não é isso. Já ouvi falar de umas coisas pra
ver no escuro. Ver o
calor. Não funciona porque é de dia... acho. Parece que tem que apertar aqui assim e ajustar aqui assim e... prestem atenção: estou ensinando mas, até voltarmos na Arca,
isso é meu. Posso emprestar pra quem ficar de guarda, mas nada de gracinhas – e a fala parecia direcionada a Mutt, como um dedo invisível apontado para ele –. Se tivéssemos alguém bom nisso, acho até que dava pra adaptar numa arma, mas... .
Se estivesse certo, seria algo de grande utilidade. Mas havia o mistério de como algo tão estranho havia parado ali e, principalmente, quem o teria feito?
Quando a dupla dispersa os alcançou, olhando desconfiada para o aparato, Rudaho tratou de guarda-lo, parecendo temer que tentassem roubá-lo – uma ideia um tanto absurda dada a situação, mas ainda assim cruzando a cabeça dele. Ao contrário do raquítico gatuno, aqueles dois dariam bastante trabalho se tentasse algo.
- Vamos, vamos. Temos pressa – E assim seguiram até o sol começar a baixar, levando as cores da paisagem pouco a pouco.
Estavam num campo com mais daquele mato suspeito, até que o guia voltou a parar. “Aqui”, disse, apesar de ser uma área até certo ponto aberta. Por sorte, ao menos havia a claridade da lua.
- Você está louco? Aqui é exposto demais. Não podemos dormir aqui – questionou Heckyl.
- Eu vou. Só precisa se preocupar com a frente e as costas. O mato dos lados vai servir de muro. Nada deve vir dessa direção – O plano parecia arriscado, mas tinha alguma lógica – Precisamos nos dividir em 3 turnos. Acho o suficiente. Concordam? Quem vai primeiro? Ah, é claro, depois de comermos... .
Aproveitando as últimas horas de claridade, virou-se para todos ao redor e fez algumas linhas horizontais e verticais na terra, formando uma “cerquilha”, um “jogo da velha” [ # ], tentando resumir o que havia encontrado. “Pronto, estávamos aqui”, disse, “viemos para cá”, prosseguiu, “depois aqui”, continuou, “e agora estamos aqui”, concluiu.
- ... Havia mais um cão pros lados de onde enfrentamos aqueles [K1] e ele... bem, provavelmente nos farejou. Não vou acusar ninguém de estar fedendo a sangue de cachorro, mas é isso. A essa altura deve ter perdido a gente, mas se voltarmos por lá, é bom termos cuidado. No caminho em frente [K2] vi reflexo de água, mas percebi ossos semi-consumidos nas proximidades. Meu primeiro chute seria mais grama ácida, mas não vi nenhuma... provável que sejam ratos da zona. Bem perigosos, mas dá desviar deles. E depois [K3] o caminho parece estar limpo. Podemos tentar ir pra lá quando terminarmos aqui... .
Então fez uma pausa, como se tentando não se apressar demais, deixando todo mundo perdido.
- Lá atrás [L1] vi alguma vegetação rasteira e apostaria que pode ter algum tipo de raiz “comestível”, mas é fora do nosso caminho, né? Aqui [L2] era o pico. Aqui e aqui [M1 e M2] é onde vi os pássaros, mas se eles não nos pegaram de dia, não vão fazer isso agora. Seja como for, evitaria ir para aqueles lados. Levariam com facilidade alguém leve como Izu... .
“Aqui é onde encontramos o visor [M3] e estamos exatamente no meio dessa parte [L3]. Amanhã temos que decidir por onde continuar...”.