Guará
Quando era pequeno, meu pai me contava a história do guará. "Aquele que devora", de acordo com os índios da região. Dizia que era melhor me comportar, senão atrairia o bicho. Conta a lenda que esses monstros quando aparecem, tentam tomar os pertences dos outros por quaisquer meios possam usar, com uma fome que não se sacia por nada nesse mundo. Tu não acreditas até que vejas com teus próprios olhos, a besta tomar o coração e a alma de sua presa e se saciar ali mesmo. Essa é a história do desgraçado, que matou meu pai e me deixou sem terra para chamar de minha.
O pai era um homem de sucesso, que me criou sozinho depois da morte precoce de minha mãe. Filho de um xiru velho da região, peleador de faca e bala, homem que era simples, mas um demônio quando o provocavam. O pai disse que o velho acabou morrendo de tristeza pelos pecados de sua vida, já nos seus 70 anos. Eu sei que não foi assim. Meu avô tinha muitas terras e bens e ficou bastante caridoso com eles quando chegou ao entardecer da vida. Tinha medo de ser punido por todas as vidas que tirou devido à ira da juventude e à ganância de sua trajetória. Não culpo o velho por tentar se salvar com bens materiais, apesar de parecer estúpido, não sei o que faria em seu lugar. Minha avó já havia deixado ele e este mundo, chamado o homem de monstro antes de tirar a própria vida. Sei que, como meu pai faria mais tarde, o avô maltratava sua família quando a fúria o afetava, e minha avó se livrou dele usando a própria arma do velho, um revólver bem bonito, com empunhadura vermelha e um calibre que nunca tinha visto. Aquilo deve ter pesado no velho. Ele amava a arma quase tanto quanto a mulher, independente das suas ações. Tinha até dado nome para ela, e teve de assistir a mãe dos seus filhos estourar os próprios miolos com ela.
Essa fúria é comum entre os homens, em especial na nossa família, e dizem que meu pai a usou para se livrar do seu. Ele me disse que foi um acaso o velho morrer, mas sei que estava prestes a doar tudo o que tinha para a igreja. Dizem as más línguas que ele e meus tios mataram o velho, mas só o que posso dizer é que dividiram a herança entre si, e que o pai estava contando o dinheiro no mesmo dia. Os três irmãos entraram em uma disputa de umas terras na região pouco tempo depois, que custou-lhes a relação fraterna. Um se foi para o horizonte e nunca mais o vimos, enquanto o pai tirou a vida do outro tio em um duelo, com a própria arma de meu avô. Na época não entendi muito bem o porquê daquela violência, mas quando a ganância toma conta, é como um trem sem freio. Acho que o erro do pai, depois de anos de luxo e vida mansa, foi considerar o guará um bicho desconhecido e misterioso. O guará conheço desde pequeno, e ele também, esteve sempre com a família. Quando atingi meus 20 anos comecei a me preocupar com meu futuro, do jeito que só minha família entenderia. Meu pai era já bem velho quando tivemos a discussão. Ele ia casar com uma interesseira e eu, com medo de perder a herança, acabei por apontar o revólver da família para o velho teimoso. Mandei-çhe escrever o testamento pelo menos, para me garantir o que merecia. De certa forma isso ele fez.
O desgraçado me deserdou ali mesmo, e eu, tomado de uma ira sem cabimento, tirei-lhe metade da cabeça sem nem pensar. É estranho uma coisa tão pequena fazer um estrago tão grande. Eu já tinha atirado antes, mas aquela arma do avô, como era barulhenta. Nem mesmo o grito da madrasta interrompeu o chiado no meu ouvido depois de estourar os miolos do velho. Devia ter atirado nela também, mas só conseguia pensar em correr. Hoje vivo na estrada, sem herança nem terra, e escravo do guará. Só desejo e tomo o que é dos outros, vivo em bando mas sozinho. Só eu e esse revólver. Só eu e o Wendigo. Até chegar a nossa hora.
- OFF:
- Um esboço que eu fiz de uma ideia que me surgiu enquanto lia umas mitologias por aí.