por Count Zero Sex Jun 19, 2020 4:39 pm
– Bom trabalho, doutor – falou o sargento. – Foda, viu. Os três eram funcionários da escola. Um segurança, um funcionário da cantina e um professor. Nenhum aluno, pelo menos não ainda. Os dois meliantes vão ter enterro com caixão lacrado, certeza. O caveira estava com a mira em dia.
Hugo prestava atenção no policial enquanto analisava o corpo. Não se incomodava com o que ouvia. Na verdade, era muito melhor ouvir o sargento do que as futilidades do Celso sobre o time do coração dele. Aquilo era mais nauseante que defunto despedaçado.
– Tudo bem, sargento – interrompeu Celso. – Agora nos deixe trabalhar. Nossa sorte é que a Letícia não está por aqui.
– Até mais, sargento. A gente se vê – falou Hugo, com um aceno.
Celso tinha sido um pouco rude, mas ele tinha certeza quanto a Letícia. Ninguém ia aguentar outro discursinho patético dela sobre sua causa. Tinha sido mesmo uma boa sorte ela não estar lá.
– Hugo, meu horário de almoço começa agora – visou Celso. – A gente se vê daqui a pouco.
– Beleza, cara. Vai lá. Eu cuido daqui.
“Assim você fica com a porra da boca calada.”
Hugo sabia que não ia conseguir apreciar o silêncio por muito tempo. Ele sabia o que acontecia quando ficava sozinho no necrotério com aqueles cadáveres.
– E aí, moleque – cumprimentou. – Curtiu meu novo visual?
“Exatamente isso.”
Lá estava um dos atiradores, sentado na maca e sorrindo para Hugo, com o olho direito estourado pelo projétil. Era como um túnel. O disparo à curta distância havia causado um estrago e tanto, permitindo Hugo analisar cada detalhe daquela carniça ao redor do cérebro e do pescoço.
– Ponta oca, hein? – falou Hugo calmamente, passando o dedo ao redor do rombo que o projétil havia deixado. – O que você quer que eu diga, cara? Você mereceu…
O morto continuou, simplesmente ignorando o que Hugo havia dito.
– Porra, cara, eu não esperava topar com um filho da puta daqueles – disse o rapaz. – Minha mãe vai ficar fula da vida quando souber. Atirar é mais difícil do que parece, sabia? Os moleques de Columbine fizeram parecer fácil.
“É inútil falar com eles. Não sei por que eu ainda tento…”
Hugo se impressionou como aquele pé rapado conseguiu pronunciar Columbine certo, e então fechou a gaveta, mas ele não se calou.
– Tu gosta de uma conversa, né doutor? – indagou o defunto. Não dava para saber sua expressão. – Eu sei que tu não tá vendo minha cara direito, mas eu estou sorrindo.
Hugo tentou ignorar, mas ele não parava de falar. Era difícil não retrucar as babaquices de um bandido idiota que teve o que mereceu e ainda chora como se fosse a vítima.
– Porra, doutor, o polícia acabou com a minha graça – contou. – Três tiros, mano. Olha só como as balas ficaram agrupadas. O bicho tem a mão firme. Os tiros entraram com tudo aqui, pouco abaixo do meu olho esquerdo. Quebraram toda a metade esquerda do meu crânio. Uma delas destruiu meu nariz e o meu céu da boca. A outra varou minha bochecha, arrebentou minha língua e saiu do outro lado. A última pegou aqui no maxilar. Olha como a minha boca está pendendo. Não consigo ficar de boca fechada, caralho. Minha mandíbula está quase caindo, e isso não vai ser bonito de ver. Caveira filho da puta. Estragou meu funeral.
– Eu sei. Eu sou legista. Eu vi o que os tiros fizeram com você. E acho que você não vai ficar tão animado para conversar quando cruzar. Duvido muito que o diabo goste de rap, meu caro…
A ameaça do inferno pareceu causar efeito naquele meliante, pois ele se calou, mas os outros não. Todos eles se levantaram, começaram a falar e a encarar Hugo – de novo, como sempre acontecia.
– Eles nos mataram, doutor – disse um deles, uma senhora de uns quarenta anos. – Acabou pra nós. Pelo menos eles foram junto.
– Eu sinto muito – disse Hugo, beijando a testa da senhora bem no buraco do tiro, sentindo gosto de sangue e pólvora. – Eu gostaria de poder fazer algo, mas nessas circunstâncias não há mais nada do que eu possa fazer – disse, enquanto limpava o sangue da boca. – Foi como você disse: pelo menos eles estão indo junto.
“E isso é o bastante?”