Prólogo - Um novo dia

Um novo dia

Pela primeira vez, naquela manhã, Jay estava consciente que aquilo poderia ser um sonho. Apesar de estar angustiado, aquela consciência lhe trazia um certo poder. Na pior das hipóteses, acordaria novamente... E tudo se repetiria.

Como sair daquele loop bizarro?

A primeira resposta para essa pergunta, que veio na cabeça do menino, foi o remédio.  Ele tacou o frasco longe, ao invés de tomá-lo.  Era reconfortante poder descontar a raiva em algo... Mas seu corpinho, viciado na sensação que o remédio trazia, dizia que aquilo era errado. Jay QUERIA ir até o chão e catar as pequenas pílulas que tinham se espalhado por todo o chão. Parecia que ele podia sentir o cheiro delicioso e docinho que vinha delas.

Quando estava quase se levantando pra catar o remédio, um barulho fez o menino se assustar. Passos. Não passos de salto alto, da sua mãe, nem dos sapatos sociais do pai... Passos descalços, de pés pequenininhos que pareciam mancar de leve. Quando ele olhasse na direção da porta entreaberta, veria uma sombra baixinha correndo na direção do primeiro andar. Poderia ouvir até os calcanhares da criatura batendo nos degraus da escada.

Não era como o menino do espelho ou a assombração em seu banheiro... Era como se a criatura fugisse, se escondesse do jovem.

O celular vibrou loucamente, quando ele decidiu o ignorar. A mensagem queria ser lida... Precisava ser lida. O celular se esguelava na cama, enquanto Jay se arrumava e descia, sem banho. O cheiro vindo da cozinha parecia ainda mais delicioso. Os pais riam e falavam coisas carinhosas entre si. Na mesa, uma pilha de panquecas e uma jarra de suco que parecia ter sido feito das laranjas mais frescas e aromáticas.

Bom dia, querido! Dormiu bem? Preparei essas coisinhas que sei que você adora...

Quando ele olhasse em direção à mesa, qualquer coisa que desejasse comer, apareceria lá, mesmo sendo impossível a mãe ter feito algo muito específico naquela cozinha. O pai lia o jornal, abrindo um sorriso ao ver o filho chegando.

Pronto pro primeiro dia de aula, Campeão? Vem tomar café com o pai, depois te levo pro colégio... Não tem problema se atrasar um pouco... Ninguém liga de perder uma aulinha só, né? Matemática é um saco

A mãe os olhava e apenas assentia, como se apreciasse aquele momento em família.

Atrás da cadeira do pai, Jay veria um corpo cinza escuro, que não devia ser mais alto do que o encosto da cadeira. Não dava pra ver muita coisa, mas umas fumaças cinzas pareciam voar perto do corpo baixinho e parrudo. As únicas coisas que o menino conseguia distinguir, eram as garras daquele corpo... enormes, segurando os ombros do pai. Se ele olhasse debaixo da mesa, veria pés meio animais, meio tortos, com garras tão afiadas quanto as mãos.

Ao ver o filho parado, Lilian dizia:

Não gostou, querido? Posso te preparar um sorvete!

Era estranho... Apesar da boca da mãe mexer, era como se a voz dela não viesse da direção do fogão... A voz dos dois adultos vinha de trás do pai, daquele corpo esquisito que ele não conseguia identificar.

Um novo dia

Pela primeira vez, no meio daqueles pesadelos, Jay se sentiu motivado a enfrentar seus medos. Talvez fosse por conta da música que ecoava por toda a casa... Ou por não ter tomado os remédios.  Não tinha como saber naquele momento.  O que ele sabia era que tinha alguma coisa correndo pela sua casa... E que aquilo era bastante amedrontador.

Apesar de temer que aquilo fosse a personificação do seu maior medo, Jayson desceu as escadas e foi em direção à cozinha. Ele encontrou uma cena bastante atípica, mesmo fora de seus sonhos... E reparou, logo atrás do pai, uma figura bastante da esquisita.

Era claro pra ele que era aquela criatura que estava controlando as partes mais bizarras de seu sonho. Muito claro, na verdade... Como ele não vira isso anteriormente?

Quando Jay pareceu tomar coragem para enfrentar aquilo, a luz começou a piscar.  O clima ficou muito frio e seu pai, que estava logo a sua frente, se levantou, bem maior que o de costume, e começou a se contorcer, o rosto aos poucos tomando a forma daquele rato horroroso que o assustou da primeira vez que ele acordou.


A mãe, começava a guinchar atrás dele, se transformando num ratinho branco pequenininho, que começava a lhe subir as pernas. Tudo em volta parecia meio borrado e distorcido, como se a convicção do menino afetasse a veracidade daquela ilusão.

O pai/rato começou a andar na direção do menino, com aquela baba de raiva lhe descendo pela bocarra e ergueu uma pata para tentar atingir o menino.

Spoiler:

Enquanto resolvia a situação de seu pai/rato, veria, finalmente, a criatura. Ainda se escondia atrás da cadeira, aproveitando você se distraindo pra sair correndo em direção à porta que dava pra sala de estar.

Spoiler:

Era cinza, a pele parecia levemente molhada, tipo de um réptil... Mas, de alguma forma, era translúcida em algumas partes. Por todo o corpo uma fumaça preta podia ser vista. Os pés mancavam devido ao tamanho das garras e os dentes da boca eram pequenos, mas pareciam afiados.

Ele correu pra subir as escadas, como se temesse a atitude do menino em confrontá-lo.

Jay ouviria barulhos do andar de cima, ele abrindo a porta do banheiro, a porta do quarto dos pais, a porta do quarto de Jay... E, por fim, se jogou contra a porta trancada, que fez um barulhão e abriu.
Depois de lidar com a criatura em sua frente (ou fugir dela) e a ratinha mamãe que corria em seu corpo, Jay teria de enfrentar o dilema entre subir e enfrentar o desconhecido... Ou se acovardar novamente... E correr o risco de acordar em um outro sonho.

Spoiler:

Um novo dia

Quando Jay deu um empurrão no grande rato que seu pai se tornou, o bicho cambaleou como se Jay fosse muito mais forte que ele, e bateu com as costas no armário. No mesmo momento da pancada, o animal se dissipou em uma fumaça preta, que seguiu o bicho feioso que começava a correr pela casa do menino.

A ratinha teve o mesmo fim. Tentou se agarrar na pele do menino, arranhando a perna dele, mas a cada pulinho que Jay dava, mais ela caía e logo caiu direto no chão, se dissipando após o impacto.

A cozinha estava ainda mais distorcida, as coisas começando a ficar translúcidas... Evaporando em fumaça preta. A única coisa que não sumiu foi a mesa, com as maçãs. Jay queria aquelas frutas... E sua convicção as manteve ali, como uma arma potente contra seu inimigo.

O rastro do monstro era claro por toda casa. A cada passo que o adolescente dava, as coisas atrás de si começavam a sumir. Ele precisou correr para não ser pego pela escuridão total. Subiu as escadas e elas começaram a virar fumaça. Quando parou no corredor, em frente à porta que estava trancada, podia ver as tábuas do chão começarem a se soltar, rasgando o carpete e começando a virar escuridão...

A escuridão chegava perto e o único lugar que parecia seguro era o quarto.

Ele enfim teve coragem de olhar dentro, xingando o monstro. Exigiu que aquela coisa deixasse ele em paz e pôde ouvir uma risada e um guincho vindo do quarto. Sentiu que precisava entrar... Ou ia ser pego pela escuridão do corredor. Ao dar o primeiro passo pra dentro, a escuridão sugou até a porta, o deixando preso dentro do cômodo misterioso.

Ali não parecia mais a sua casa. Não era tudo de madeira e antigo... Era tudo branco e muito claro, feito um hospital. Na verdade, parecia mais uma cela... Pois era bem pequena. Na sua frente, o monstro parecia ainda maior. Ele começava a se transformar no maior medo do menino... Um grande rato que poderia engolir Jay só com um movimento de boca.

Enquanto se transformava, Jay poderia reparar, no chão da cela, encolhido, aquele mesmo menino do banheiro. O menino que era igual ele, assustado, os pontos de sua boca sangrando, como se ele tivesse tentado gritar. Na parede ao lado dele, algo escrito com sangue “HELP”... O sangue pingava também em sua roupa, manchando a plaquinha com seu nome, escrito como um prisioneiro: Jaden. Ao lado do nome, a logo que ele tanto conhecia, do laboratório que fabricava o seu remédio.

Jay precisava fazer algo. Ele sabia que estava sonhando... E o monstro na sua frente, parecia saber exatamente como transformar o sonho em um pesadelo terrível. Será que aquela criatura que estava tecendo os sonhos terríveis dentro de sua cabeça?

Uma frase de sua mãe lhe veio a cabeça “Pra acordar de um sonho, é só você se beliscar”.... Será que aquilo era possível?

Mas se o sonho não era dele... Como ele iria acordar?

O monstro terminou de se metamorfosear em uma ratazana muito grande, que começou a correr na direção de Jay, pronta pra mordê-lo. Nesse mesmo momento, todas as luzes se apagaram... E o som de vários ratos começou a ecoar pelas paredes.

Todos os medos que assombravam o menino estavam sendo usados contra ele.

Spoiler:

Um novo dia

Quando as luzes se apagaram, Jay percebeu duas coisas muito importantes: a primeira foi que ali, naquela sala, a própria vontade dele não era tão forte quanto fora na cozinha.  Talvez por estar em um cômodo completamente desconhecido, enfrentando dois dos seus maiores medos, o poder de Jay sobre o sonho que vivia não era tão forte.

A segunda era que, quando atingido, o monstro parecia se tornar mais “sólido” aos olhos do garoto. Antes, ele tinha forma, tinha corpo, mas muita fumaça em volta daquele bicho confundia o que era “carne” do que não era.  Então, mesmo ele criando aqueles sonhos horrorosos na mente inconsciente de Jay, ele ainda podia ser atingido e tocado  dentro do sonho.

Mesmo na escuridão, o jovem conseguia ver o monstro se movendo e guinchando quando era atingido.  Sua forma horrorosa fazia Jay ter bastante medo, mas, ao se beliscar, a dor o fez se concentrar e manter o foco... Mas não fez o jovem acordar.  Não era ele que estava criando o sonho, afinal...

O grande rato estava mancando de uma perna, após ser atingido pela maçã, apesar disso não parou. Começou a correr em direção a Jay, que não tinha a porta por onde voltar. O menino pensou que seria atingido em cheio, quando ouviu um guincho forte e viu o rato começando a se contorcer, indo pra lá e pra cá, como se tentasse derrubar algo que estava sobre si.

O outro menino, Jaden, tava escalando o animal monstruoso, dando socos nele e, por fim, se agarrando ao grande pescoço do bicho. Era tão grande que precisou dos dois braços pra se manter ali e tentar enforcá-lo. Aquele movimento ofensivo fez o monstro ficar completamente sólido novamente.

Jay precisava pensar rápido. Em pouco tempo, o menino seria derrubado e a vantagem criada não ia ser mais efetiva.

Um novo dia

O monstro parecia implacável, se debatendo feito um touro, quando sentiu os dois corpos em cima de si. Era realmente muito difícil se manterem cima dele, mas ambos os meninos pareciam determinados a derrotar a criatura que lhes perturbava os sonhos.

Jaden sorriu, ao ver o outro garoto, tentando enforcar ainda mais o bicho. Ali de perto, Jay podia perceber o quanto eram parecidos... Principalmente os olhos e os cabelos,  que o jovem sabia ter herdado da mãe. Jaden segurou no braço de Jayson,  e usou a outra mão pra pegar na dele, como se formassem um cordão  com os quatro braços.

Ambos os meninos se sentiram conectados ao se tocarem daquela forma... Como se um soubesse o que o outro estava pensando. Mesmo com os lábios costurados, Jaden conseguiu falar com Jay, em sua mente.  

Jaden:  Vou  contar até três, no três a gente aperta com força! 1....2....3!

Era estranho ter alguém em sua mente, mas ele não parecia um invasor. No três, ele fez como o combinado e vocês apertaram mais e mais forte. O animal parecia diminuir, com vocês trabalhando juntos, como se a força de vontade de vocês estivesse o enfraquecendo.

Apesar disso, ainda era grande o suficiente para se chacoalhar, dando um guincho muito alto, e derrubando vocês.

O animal se virou para Jaden, pisando com as patinhas nojentas no peito dele e o imobilizando no chão, usando o próprio peso para tentar esmagar o menino.

Jay precisava pensar rápido, ou, em breve, Jaden estaria sem ar e com as costelas quebradas... E Jay, sozinho com aquele monstro.

Um novo dia

Jay usou sua imaginação para vencer o animal.  Imaginou como poderia vencer o próprio medo e encontrou uma saída na raiva. Seus olhos estavam cheio de fúria e sua cabeça trabalhando em um plano para salvar Jaden e acabar com aquilo tudo de vez.

Em um instante, estava na cama e, em seguida, estava sobre o rato, enfiando a manivela repetidas vezes, vendo o pano ficar manchado de um líquido tão escuro quanto piche. Seu rosto também ficou lambuzado do sangue do animal, assim como seu pijama.  

A fúria das estocadas da manivela fazia o animal ir diminuindo sob o corpo de Jay. Aos poucos, ele não era mais um animal enorme... Foi se tornando do tamanho de um cachorro... Em seguida de um gato... De um coelho... E, por fim, de um rato, que foi completamente esmagado pelo cabo da manivela de Jay.

Os dois meninos estavam sujos do sangue... As luzes começaram a se acender e eles poderiam ver as paredes brancas do lugar sujas também. Jay tinha feito uma bagunça ali. O rato esmagado no chão ia, bem lentamente, se desfazendo, se transformando em fumaça... E eles veriam que o sangue também, de forma bem lenta e um tanto nojenta.

O cheiro do lugar ia ficando menos fétidos... E os meninos finalmente podiam respirar com calma. Provavelmente, Jay estava cheio de perguntas.

Jaden se levantou, arrumando o uniforme de hospital mais ou menos sujo e tirou o cabelo suado dos olhos. Ele foi até o menino, o olhando de frente, como se visse em um espelho.

Tentou falar, mas os pontos na boca impediram. Ele ergueu a mão, para o menino tocar, como tinham feito em cima do rato nojento.


Quando as mãos se tocaram, o som do exterior pareceu se abafar, como quando colocamos um fone de ouvido com isolamento acústico. Tudo o que vocês podiam ouvir era o som da respiração e dos corações de vocês.


Logo, você ouviu a voz dele em sua cabeça.

Jaden:  Agora esse sonho é novamente nosso... E eu preciso que você acorde, pra me ajudar...

E, sem te dar chances de responder ou perguntar algo, a mão de Jaden escapata da de Jay e os dedos apertam a pele do menino, em um beliscão forte e dolorido.

Tudo ao redor do menino começou a se dissipar... As paredes e os móveis virando fumaça preta... O corpo de Jaden ficando translúcido e sumindo... Até que Jay estava na escuridão novamente...

E abriu os olhos em seu quarto, com sua música (não tão mais) preferida tocando há alguns minutos.
Estava perdendo a hora.