Ato Vl: Fragmentados

O recepcionista do hotel não tinha cara de muitos amigos, mas pelo menos não ficou fazendo perguntas por nos ver encharcados e sujos. A lavanderia do hotel não estava funcionando naquele horário, então eu pedi umas toalhas extras. Improvisamos um varal para pôr as roupas para secar dentro do quarto, tomamos banho e depois ficamos enrolados em toalhas, já que a recepção não tinha roupões para fornecer.

Deixei as partes dos implantes cibernéticos em cima da penteadeira, mas não tive ânimo imediato para investigá-las. Eu estava cansado física e emocionalmente, então peguei um salgadinho e uma Coca-Cola no frigobar do quarto e me sentei na cama ao lado da cama de Akon. Disse, então:

- King, se você quiser investigar essa sucata agora, fique à vontade. Eu vou descansar um pouco antes de fazer isso eu mesmo.

Enquanto eu comia e bebia, olhei discretamente para Akon, que estava ferido e com uma expressão preocupada. Isso despertou em mim uma ponta de remorso por não ter me proposto a ajudá-lo a caminhar. O máximo que fiz foi manter o passo lento para ir ao lado dele e de King. Isso me lembrou das palavras de meu ex-Mentor: "Uma personalidade solitária tende a comungar mais facilmente com espíritos e com a natureza primordial, mas cuidado para não perder a empatia". Eu detestava quando era obrigado a admitir que Paul dizia algumas coisas sensatas sobre mim, mesmo sendo um Mentor exageradamente tradicionalista e também intolerante e preconceituoso, já que não aceitava bem minha ancestralidade feérica.

- Eu não conheço magias curativas, Akon, mas posso ir numa farmácia comprar algum remédio para você. O ideal seria irmos até um hospital, mas, não sei, talvez não seja bom nos expormos pelas ruas agora.

Eu disse essas palavras em tom casual, pois achei que estávamos todos tensos e não precisávamos de drama, e dei mais um gole na bebida. Se Akon não quisesse remédios, eu iria perguntar aos dois se devíamos encarar o Escorpião como um aliado que presta ajuda visando seus próprios interesses ou como um inimigo que nos manipula para conseguir o que quer.

Em um canto, Ronald ainda comendo seus amendoins e bebendo seu refrigerante sugeriu um aida ao hospital.

Akon sabia que havia certa sabedoria em meramente tentar descançar, os três estavam exaustos. Em conjunto eles experimentaram uma relação direta entre a mente de cada um dos mago, seu Avatar, seu subconsciente e a realidade.  E ele pretendia entender isso mais calmamente.

Já King retomava essa mesma ação enquanto acreditava ser piamente capaz, acima de qualquer um, de conseguir decifrar o trabalho da Tecnocracia e as razões pelas quais foram tão violentamente perseguidos e caçados naquela noite.

Muitas vezes, através de coincidências, visões, símbolos que surgem ao acaso, sonhos, “viagens astrais”, o Avatar procura testar a sabedoria do mago, colocando obstáculos que ele deve superar ou simplesmente destruir, quebra-cabeças que ele deve montar à perfeição para que possa seguir adiante em seu Caminho.

King expressava para seus aliados que mesmo crendo na importância do papel deles no mundo, ele entendia que magos são, antes de tudo, humanos. Então, em primeiro lugar, uma Busca pelo Tigre do Oeste serviria para leva-lo adiante, para superar sua falibilidade humana, tanto da mente quanto do espírito.

Naquele simples momento, em que todos recuperavam as forças como quaisquer pessoas fariam, se recoravam que eram Magos e que precisam passar por instantes de desafios, de alumbramentos, que esclarecem onde estão e quais são os obstáculos com os quais tem que lidar para ir mais além.

Além disso, o caminho para a Ascensão é frágil, cheio de armadilhas, perigos e enganações. Apenas uma mente e um espírito realmente sábios, trabalhando em conjunto, o torna capaz de desenvolver o discernimento adequado entre o que é real, o que é ilusório e o que é tanto real quanto ilusório, mas, ainda assim, necessário (e também tudo aquilo que deve ser jogado fora). Tais verdades, subjetivas, são únicas para cada indivíduo.

São as Buscas que, ao levar o mago adiante quando realizadas com sucesso, levam o mago a vencer preconceitos e seu paradigma restritivo, apreendendo mais da Tapeçaria Infinita que forma o Todo.

Como o ciclo profundo desenhando por objetos sagrandos, como o tradicional amuleto taoísta que Akon recebia.

O ato de recebimento por si só modificou as percepções locais.

Quando acordou e foi mexer nos equipamentos, foi que se lembrou que enquanto adormeceu sonhou com um homem com máscara de tigre branco.



Aquele lapso de qualquer recordação sobre a ansiedade que sentiu anteriormente passou lhe dando certo ânimo, em sentir como se aquele homem fosse ele mesmo. Os comonentes eletrônicos pareciam transitar em frequências de transmissão por dados via rádio bem estranhas, que rompiam com uma transmissão particular. Era dificil entender que tipo de receptor conseguia receber tais transmissões, mas eram perceptíveis misticamente que se conduziam por Forças além das quais os adormecidos saberiam que estavam ali.

Akon, em sua meditação sentia que os avatares de todos eles os tiraram de uma cituação drástica e que tudo foi orquestrado para que eles próprios fossem delapiados de suas próprias essências, mas isso parecia ser mais obra do Escorpião do que da própria Tecnocracia. Ao receber o amuleto de seu colega de cabala se recordou do velho conto do Escorpião e do Sapo...



...Uma fábula sobre um escorpião que pede a um sapo que o leve através de um rio. O sapo tem medo de ser picado durante a viagem, mas o escorpião argumenta que se picar o sapo, o sapo iria afundar e o escorpião iria se afogar. O sapo concorda e começa a carregar o escorpião, mas, no meio do caminho, o escorpião acaba por ferroar o sapo, condenando ambos à morte. Quando perguntado pelo sapo por que havia lhe picado, o escorpião responde que esta é a sua natureza e que nada poderia ser feito para mudar o destino.

Pois afinal, era da natureza dos tecnocratas atacarem, mas o próprio Escorpião parecia estar disposto a cair junto com a cabala apenas para descobrir o caminho que eles fecharam às pressas.

Naquela manhã em que se voltaram para mais atividades de investigação naquele quarto sobre as peças, especialmente King, o tempo passou razoavelmente rápido, até que os três ouviram batidas na porta de forma apressada.

—Abram, por favor. É a polícia.

Não disseram nome e não estavam sendo sutis, mas apesar da firmeza estavam tentando ser corteses.  

King respondeu que estava cansado quando eu sugeri que ele investigasse aqueles componentes e, depois, pôs-se a expressar suas dúvidas e preocupações sobre o Tigre do Oeste e sobre a maneira como sua facção hermética enxerga a hierarquia de deuses e espíritos. Eu ouvi com muito interesse, pois tudo o que diz respeito aos mundos espirituais e suas entidades me interessa, ainda mais quando se trata de espíritos pouco conhecidos pelos Oradores.

Depois, King foi se deitar no sofá, mas eu não me animei a investigar enquanto isso. Terminei de comer e, como Akon achou melhor recuperar-se meditando, me deitei para descansar. Não cheguei a dormir porque ficava pensando se tinha mesmo ouvido Nathicana quando visitei seu reino ou se tinha sido um pesadelo dentro de um sonho, como também pensava sobre a manifestação do Avatar de Akon, sobre a ameaça Tecnocrata e, acima de tudo, me perguntava como a Tecnocracia podia usar uma corrupção do seu paradigma científico (aparelhos eletrônicos usados como fetiches) para enfrentar Despertos como nós. E continuei nesse fluxo de dúvidas e reflexões mesmo quando King se levantou e decidiu examinar aquelas coisas. Ouvi os comentários negativos dele sobre tecnologia e Tecnocratas sem nada dizer, mantendo-me deitado.

Só mesmo a chegada da polícia para me tirar daquela letargia! Me sentei na cama sobressaltado, e olhei preocupado para os meus amigos. Mas as palavras do policial não soavam ameaçadoras.

- Só um minuto, por favor, já vou abrir!

As roupas não estavam 100% secas, mas já dava para usar. Enquanto eu me vestia, King teria tempo de esconder as coisas que estava investigando. Abri a porta e tentei fazer uma expressão blasé ao perguntar:

- Pois não…?

A voz do policial havia soado cordial, embora incisiva, então eu jamais poderia imaginar que, logo que abrisse a porta, iria me deparar com um cano de pistola sendo apontado na minha direção! O susto me fez recuar um passo instintivamente, mas as palavras de Akon me acalmaram.

- Meu amigo aqui tem razão, policiais. Não roubamos equipamento nenhum, nem sabemos de qualquer amigo nosso que pudesse ter a intenção ou os meios para cometer um crime desses. Se nos mostrarem um mandato, conforme manda a lei, teremos prazer em permitir que revistem o quarto.

Ao recuar, percebi que Akon gesticulava com uma das mãos para invocar algum tipo de magia. Uma Rotina de manipulação mental, talvez? De minha parte, tentei perscrutar as auras dos policiais para verificar se não havia alguma relação deles com magia, fosse algum efeito mágico que estivesse agindo sobre eles naquele momento fosse mais algum fetiche maligno…

De forma ainda por coincidência, a policial se volta gritando para Bullock ainda apontando a arma... Montoya começa a discutir falando que a ideia de fiscalizar o hotel era tolice e as armas, apesar da gritaria e da arma apontada, ele continua tomando tranquilamente seu café de forma completamente esquisita e vulgar diante daquela confusão.

Em meio a berros, alguma coisa sobre Tyler Durden é mencionada quando Ronald tenta dizer que não conhece ninguém que pudesse fazer isso, além de uma conversa sobre eles terem montado um "Clube da Luta" , mas falando diretamente para o impassível Bullock que meramente toma mais um pouco de café com a arma em sua cabeça.

Akon, enquanto através de seu Tai-Chi acessava os registros Akasha do estado mental da mente de Montoya notou por um instante que sente uma manipulação anterior a que ele esta fazendo, enquanto arranca de dentro da alma dela todos seus rancores contra Bullock.

A confusão é bem útil para que, lutando contra seus instintos mais agressivos contra os policiais, discreta e desespradamente King consiga sair com os equipamentos para o lado de fora, procurando um lugar onde descarta-los. Ele consegue chegar até o lado de fora do Hotel.

Nessa hora, por um acaso estranho é que as marcas da NikNak Computing e Sunburst Software são descaradamente seladas em peças dos componentes das próteses que recolheram. Ambas são empresas de video-game, concorrentes aliás...O que era bem estranho, por um breve momento o hermético é pego mergulhado em pensamentos sobre o quão sinistras eram as coisas que essas empresas estavam produzindo.

A agressividade exagerada daquela policial já tinha sido surpreendente, mas, quando ela apontou a arma para a cabeça do parceiro, e este reagiu com cara de paisagem, a situação me pareceu inusitada e completamente imprevisível!

Olhei para o Akon com expressão de espanto e me segurei para não perguntar se aquela reação da suposta policial era coisa dele. Já a falta de surpresa e a calma excessiva na reação do tal Detetive Bullock não deviam ser influência de magia akashica, embora também não parecessem nem um pouco naturais. Assim, depois que Akon perguntou em que mais nós podíamos ser úteis, decidi usar as palavras de modo a acalmar os ânimos da oficial esquentada e, ao mesmo tempo, tentar gerar um efeito coincidente de Primórdio para verificar se havia algum tipo de magia ou de influência sobrenatural agindo sobre o detetive impassível ou ainda se ele na verdade era um Desperto.

- Por favor, acalme-se, senhora. Espelhe-se em seu parceiro, que se põe diante de nós tal e qual descreve Wordsworth no poema "Character of the Happy Warrior":
And, through the heat of conflict, keeps the law
In calmness made, and sees what he foresaw

Sempre quando eu penso que os Tecnocratas já atingiram o fundo do poço, eles descem mais um pouco… Querem manter o mundo aprisionado num paradigma único e de regras rígidas (ou seja, matar os sonhos), mas não hesitam em usar meios estranhos a esse mesmo paradigma para perseguir quem os desafia. Aqueles pobres coitados estavam envoltos numa ressonância diferente de qualquer outra que eu já tinha visto, e aquela teia mágica que tornava seus estados emocionais imutáveis não poderia ser gerada por alguma máquina ou droga que produzisse tal efeito coerentemente com o paradigma científico.

Mas qual seria exatamente o objetivo daquela manipulação? Seria fazer com que os detetives agissem de forma mais eficiente na caça dos Despertos? Mas induzi-los a exagerar os estereótipos de uma encenação seria mais eficaz do que deixar que fizessem seu trabalho normalmente? Bem, a ressonância imprime as emoções do Mago ao efeito gerado pela magia. Será que algum Tecnocrata fez aquilo para experimentar suas habilidades no domínio da Mente ou talvez por um capricho, apenas para afirmar "fiz porque eu posso"?

Bem, fosse como fosse, o fato é que eu não tinha conhecimento algum da Esfera Mente, e meus conhecimentos de Primórdio não ajudariam a desfazer aquela teia que envolvia suas cabeças e as ligava uma à outra. Akon se dedica a lutar contra injustiças, então achei que ele talvez desejasse interferir. Se ele agisse e gerasse uma reação da policial cabeça quente, eu poderia usar meu Novo Escudo Medecolin para desviar balas... Esperei pelos próximos movimentos num silêncio tenso.