- Sente-se, por favor - Aghna pede isso enquanto ela mesma se coloca de pé, juntando algumas coisas e as colocando ao lado do baú - O que você tomou foi um chá que abre os canais do corpo para energias externas, como magia, facilitando o ritual. Não tem nenhum outro efeito além disso, e se você escolhesse por partir sem ter o encantamento quebrado, o máximo que aconteceria era você se sentir mais emocional, pois captaria com mais facilidade os humores alheios.
Um livro antigo e grosso, com capa madeira revestida com couro marrom, foi colocado por último na mesa. Ele era quase tão alto quando o baú e com certeza era um pouco mais largo. A madeira cobria a frente e verso do livro, e a lombada era protegida apenas pelo couro mole. Uma corrente de metal esverdeado surgia na lombada, perto do topo do livro, contornava todo o volume e um anel de metal o prendia em si mesmo próximo ao centro da capa. As páginas eram amareladas, grossas para simples folhas de papel e tinham as bordas irregulares, como se tivessem sido comidas por algum inseto. Aghna rodou o anel para um lado e a corrente se soltou, apesar de Anahera não ter visto nenhuma abertura no metal do anel. Deòir abriu o livro com calma, apoiando-o no baú para que a ele não abrisse totalmente, e procurou pela página correta com calma. A feiticeira, versada na Arte, reconheceu de imediato os símbolos e escritos como fórmulas arcanas. Aghna parou de folhear o livro quando encontrou uma página aonde havia um desenho de uma espécie de raiz que nascia no topo e no final da folha e se entrelaçava no centro, de um lado da raiz havia uma espécie de casulo com uma esfera incrustada nela, alguns símbolos grandes e duas frases curtas escritas. Do outro lado das raízes havia um pequeno texto e logo abaixo um símbolo que se assemelhava a uma gota muito comprida e de sua base nascia uma espiral que a contornava por completo. Deòir suspirou e olhou para Anahera.
- O encantamento que eu coloquei em você é poderoso e, portanto, eu preciso de outro tão poderoso quando para desfazê-lo. Este que eu escolhi é ainda mais forte - A velha riu como uma criança prestes a fazer alguma travessura - Não podemos correr nenhum risco disto falhar. O processo será doloroso e violento, Anahera. Você será tomada por centenas de memórias de toda a sua vida ao mesmo tempo e você não terá como absorvê-las de uma vez. Não importa o quão capaz você seja, nossa mente tem um limite de informação que consegue receber e isso vai ultrapassar em muito este limite, e acho que você sabe o que acontece quando forçamos o limite de algo - O tom de Denòir era sério, mas sempre gentil - Acomode-se bem, cubra-se, sinta-se confortável. Você precisa estar relaxada para que isso funcione bem.
A velha espera que Anahera faça o que tenha vontade de fazer. Levantar e andar pela casa, beber mais chá, refletir sobre alguma coisa... Aghna não apressa a feiticeira, dando à garota o tempo que a garota precisa. A velha aproveita o tempo para acender alguns incensos e apagar algumas velas. Quando Anahera se sente pronta para o ritual, Aghna pede que a garota faça silêncio e dá início à magia. O cheiro de sândalo já dominava o ambiente, um cheiro suave mas marcante. A entonação das palavras mudava conforme Deòir avançava com os encantos, mas de alguma forma, mesmo quando a velha elevava a voz de uma maneira agressiva, a gentileza nunca se perdia.
- Koyaanisqatsi... Koyaanisqatsi... - Anahera ouvia as palavras, que ecoavam não apenas em sua mente, mas que parecia reverberar por todo o seu ser. Seu corpo, sua alma... A feiticeira sentia aquelas palavras alcançando lugares que Anahera não sabia sequer que existiam. Ou um dia a garota soube? - Koyaanisqatsi... Koyaanisqatsi...
O corpo de Anahera começou a ficar dormente, as pálpebras pesadas, o pulso era algo distante, quase imperceptível. Em contraste, a mente da feiticeira estava mais desperta neste momento do que estivera em toda a sua vida, e a garota contemplava coisas que existiam dentro de si que não conseguiam ser classificadas como nada além de fantástico, apesar de incompreensíveis. Anahera encostou sua cabeça na poltrona e abriu os olhos, que imediatamente focaram no fino fio espiralado de fumaça que nascia no incenso e morria poucos centímetros em um mar invisível de ar. O fio era quase que perfeitamente reto e logo dançava consigo mesmo, criando pequenos vórtices perfumados que se desprendiam e vagavam por toda a sala antes de desaparecerem. Anahera pensou nas próprias lembranças e em como aquela analogia era perfeita.
- Heddan Tantlar Draiter Nadyr...
As palavras do encantamento ficavam cada vez mais confusas, a voz de Aghna cada vez mais distante... A visão de Anahera foi se turvando, cada vez mais perdendo o foco até que a feiticeira caiu na completa escuridão.
O silêncio reinou absoluto por um tempo que Anahera não soube definir quanto durou mas, abruptamente, um clarão afastou a escuridão e milhares de sons diferente sobrepujaram o silêncio. O piar de pássaros, dezenas deles, folhas dançando sob o vento, risadas, gritos de medo, de dor, de paixão, homens e mulheres falando sobre os mais diversos assuntos, crianças chorando, velhos contando histórias, o barulho constante de um rio percorrendo seu curso, palavras arcanas de poder, sussurros de estudo, o ranger de rodas, o ranger de dezenas de rodas diferentes, cada uma delas guiada por uma pessoa diferente e todas diziam algo diferente ao mesmo tempo. Centenas de lugares diferente surgiam e desapareciam com a velocidade de um piscar de olhos, mas todos eles carregavam uma sensação diferente para cada um dos cinco sentidos. O rosto de um rapaz surgiu e junto dele uma sensação de calor, assim como quando uma mulher caminhou da escuridão e resplandeceu por breves instantes. Dores, angústias, medos, ansiedades, preocupações, prazer, ódio... Tudo inundava Anahera ao mesmo tempo, que sentia seu corpo ser esticado em todas as direções, a carne se soltando os ossos, que resistiam bravamente no lugar. A dor era imensa, e em meio à ela a feiticeira se lembrou das palavras de Aghna. Aquilo que era esticado de forma impiedosa não era seu corpo, mas apenas uma forma como a mente da garota escolheu se representar. Anahera fechou os olhos em uma tentativa de diminuir a dor, mas foi inútil. Os músculos da feiticeira rasgavam, seu sangue escapava das veias e escorria pelas fendas na carna, seus ossos trincavam e as articulações se soltavam. Anahera urrava de dor, mas as imagens não cessavam.
Uma pequena garota surgiu, sentada debaixo de uma árvore enquanto chovia, a dor de um machucado, a fome, o medo de morrer, o medo de ficar pra sempre perdida e sozinha. Lembranças que fizeram Anahera chorar, pois ela sentiu toda aquela angústia novamente. Todo o sofrimento que a feiticeira sentiu durante dezessete anos a atingiram de uma vez e dor alguma no mundo poderá um dia se comparar aquilo, mas também haviam boas lembranças, momentos ternos e de certa forma felizes. Momentos simples surgiam, como uma menina comendo na companhia de outras crianças. Um velho, com uma longa barba e vestindo um robe vermelho com a pele de algum felino cobrindo-lhe os ombros, estava sentado ao lado de uma garota, que ria de alguma piada que o homem contará. Um chapéu da mesma cor da roupa e pontiagudo estava em uma das mãos do velho e na outra ele segurava um cajado de madeira com a ponta de cima revestida de metal. Uma esfera vermelha e translúcida estava presa no metal, assim como um cordão de onde pendiam penas de alguma ave de rapina. O homem se levantou, entregou um saco de comida para a menina e foi embora. Uma noite fria em uma casa familiar, dor e tensão, choro... Mas era um choro de felicidade e tristeza. Anahera sentia o prazer daquela mulher, mas também sua angústia, pois ela sabia que a criança à quem ela dava à luz teria que morrer. Uma mulher fazia o parto e um homem alto a auxiliava. O homem tinha os cabelos castanhos e o corpo bem constituído, mas havia um claro sinal de cansaço em seu rosto. Ele vestia roupas simples e de tom verde escuro e um cordão pendia de seu pescoço segurando um símbolo. A mulher tinha os cabelos completamente brancos e o corpo pequeno. As mãos eram finas mas firmes e o rosto era enrugado e... Era Aghna. Mais nova, sim, mas era ela. Tudo girou em um turbilhão de sentimentos e memórias e paredes de pedra surgiram no lugar das de madeira. Deòir segurava uma criança recém-nascida no colo, envolvida em peles e com um símbolo vermelho pintado na testa. O mesmo homem estava ao seu lado. Aghna dizia alguma coisa, mas Anahera não ouvia mais nada... A feiticeira tentou, mas não havia mais como aguentar. A imagem desvaneceu em espirais como a fumaça do incenso e tudo se transformou em escuridão novamente.
Anahera acordou com a boca seca e o estômago ansiando por comida. A feiticeira se sentia fraca e estava nua em um mar de peles e, olhando para os lados, viu que estava em uma cama. O quarto era pequeno, mas aconchegante e uma criança encarava a feiticeira. O menino pulou da cadeira e correu para a porta, gritando pela avó. Minutos depois, Aghna estava no quarto.
- Quem bom que você acordou - Deòir estava claramente aflita - Pensei que você ficaria presa neste sono por minha causa. Pietro, vá pegar um pouco de água, por favor, e um prato de comida. Anahera deve estar precisando muito dos dois.