Estas foram as últimas palavras de Helmont para seu filho, Ĝeko. Helmont estava o mais sereno possível, abraçado à sua amada Merašilla; embora fosse mais de um século mais velho que ela, Helmont ainda tinha aparência de um homem de no máximo 30 anos, enquanto Merašilla já tinha envelhecido.
Mas apesar de ter sido escravo, eu fora feliz, e usou suas últimas palavras para dizer isto a seu filho.
Ĝeko viu seus pais morrerem, foram decapitados os dois com um só golpe, morrendo juntos, como juntos estavam no último meio século. Por mais triste que fosse, não deixou de ser uma morte poética.
Então vieram os raios. Não haviam nuvens, mas eles surgiram do nada, caiando do céu ou mesmo brotando da terra. Ĝeko fora atingido, os guardas foram atingidos, até os corpos de Helmont e Merašilla foram atingidos e viraram cinzas na hora. Não havia tempo para sequer perguntar: "O que está acontecendo?"
E como vieram, depois de poucos segundos eles sumiram, como se nunca estivessem acontecidos. As únicas testemunhas eram cinzas e corpos. Então, o silêncio!
Ĝeko acordou depois de um tempo. Não sabe se uma hora ou um dia depois. Sua cabeça doía. Precisou respirar fundo várias vezes para recobrar os sentidos. Ninguém havia sobrevivido, exceto ele. Guardas e até os animais dos guardas estavam aos pedaços. Uns queimados, outros rasgados de fora a fora e alguns pareciam até liquefeitos, a cena era horrível. De seus pais, apenas cinzas e uma mancha de sangue no chão.
Ĝeko examina o próprio corpo, tinha uma marca como uma mancha mais branca na pele, abaixo do peito no lado esquerdo, mas esta era sua única cicatriz, além de alguns cabelos chamuscados. Ele fica um tempo sentado, pensando no que aconteceu, então ele se levanta, pega o que pode ser útil dos corpos no chão, "eles não precisarão mais disto", e parte.
Por 14 anos Ĝeko viveu na Necrópole, como era conhecida a parte oeste da cidade de Dafodil. Se pudesse atravessar o portão da Necrópole seria um homem livre, mas aquilo era arriscado agora. Ele então decide ir para o outro lado da cidade, a leste do Rio da Serpente. Ĝeko atravessa o cemitério (o cemitério era tão grande que ocupava metade da Necrópole, além de seus moradores naturais, os mortos, muitas pessoas literalmente viviam no cemitério) então pela primeira vez em sua vida atravessa a ponte sobre o Rio da Serpente.
Ele para pra observar as águas: Eram escuras e corriam com violência. O filho de Helmont pensa em pular. Ĝeko nunca havia nadado, mas tinha duas certezas, a primeira era que jamais se afogaria, a segunda era que, daqui há dez ou no máximo quinze anos pararia de envelhecer, vivendo dois ou três séculos no corpo de um homem jovem, como seu pai. Mas mesmo sem o perigo de afogar-se, a correnteza ainda o arrastaria sabe-se-lá para onde, então o jovem tritão resolve deixar para testar o rio outro dia, e continua atravessando para o lado da cidade que nunca viu.
Dafodil era uma cidade dividida, metade da cidade odiava a outra metade. A Necrópole ao oeste era comandada por demônios ligados ao deus Ades, ao leste a cidade era controlada por demônios ligados ao deus Piro. Uma metade vivia atacando a outra. Se Ĝeko se declarasse inimigo dos seguidores de Ades, que por tanto tempo o escravizaram, será que conseguiria abrigo com os seguidores de Piro? Ele não tinha nenhuma certeza, mas atravessa a ponte e caminha pelo outro lado da cidade.
Haviam alguns homens-livres na rua, e aquilo era bom. Haviam também alguns soldados, e instintivamente Ĝeko dá um jeito de se desviar deles, procurando ruas mais isoladas.
- O que vou fazer agora? - Pensava o sireno.
Ele acaba vencido pelo sono, ainda estava fraco, e com fome. Sem muitas opções acaba se escondendo num beco escuro e dorme ali mesmo.
Era ainda noite quando alguém lhe acorda.
- Ei, você, o que está fazendo aqui?
Ĝeko desperta, e não acredita no tamanho de seu azar, o homem vestia armadura pesada e estava armado, certamente um soldado, e não havia para onde correr.
- E-eu só estava com sono, não que-quero causar problemas, senhor!
O soldado o olha Ĝeko de cima abaixo, pensando no que fazer por um tempo.
- Tanto faz, mas vai procurar outro lugar pra ficar, não quero ninguém nesta parte da minha cidade.
Talvez não estivesse com tanto azar assim. Poderia ser pior. Ĝeko se levanta, pega as poucas coisas que tinha conseguido levar, incluindo uma espada curta, e por sorte o soldado não faz questão de levar nada e nem verificar as bolsas de couro que levava.
Outra figura entra no beco. Era uma demônio de aparência idosa. Infernos! Lá vinha o azar novamente!
Pelos traços, Ĝeko acredita que o demônio deveria ser de uma raça de diabos chamada vistani, não eram politicamente fortes (pelo menos na Necrópole) mas eram ligados a alguma seita mística que as pessoas evitavam.
- Quem são vocês?
O soldado fala:
- Sou Fausto, soldado da Cour* des Miracles. Ele é só um vagabundo que estava dormindo no beco. - *Pronuncia "Cu de mirracle", era provavelmente a "seita" que dominava a maior parte daquele lado da cidade, pelo que Ĝeko sabia.
- Eu cuido dele. - Era claramente uma ordem.
- Amm, senhora... - O soldado fica sem jeito.
- Sou Velora. Representante da Cour des Miracles.
- A anciã?
- O que você acha? - Ela diz sem paciência apontando o próprio rosto.
- Como queira! - Ele faz uma reverência, quase se ajoelhando. - Precisa de algo, minha dama?
"Minha dama" não era um cumprimento comum de se usar para uma demônio. Normalmente escravos falavam "minha senhora" ou dependendo da demônio ela exigia tratamentos como "suprema senhora", "poderosa dona", etc. Porém "minha dama" ainda demonstrava uma situação clara de poder.
- Não, vá.
Velora aproxima do tritão, o examinando.
- Você é um mago?
- Não! Minha senhora!
- Dê-me sua mão! - Novamente não era um pedido, e Ĝeko não vê como não obedecer.
Ao segurar a mão de Velora, ele sente um choque percorrer o braço, aparentemente ela sente algo também. Eles ficam cinco segundo se olhando sem dizer nada.
- Quem é você? E o que procura?