Incertezas Trazidas a Lume

Nada como uma noite estrelada, um momento de descanso em paz, uma refeição quente e bem temperada e um avanço na missão que fora designado. Vesith estava feliz naquele momento enquanto observava o fogo. Mas a mente às vezes nos maltrata, e naquele momento sua mente começou a levá-lo para longe daquele momento de breve paz; indo de volta para o pior momento de sua vida. De fato, aquele momento ficaria marcado para sempre em sua memória, muito provavelmente de forma traumática. Foi a partir dali que toda a sua vida mudou e agora estava longe do único lugar que conhecia como lar.

Correu os dedos indicador e médio da mão direita sobre a queixeira do elmo de forma pensativa. A mão esquerda estava em punho cerrado, não reparada quando começara a fazer aquilo, mas sentia um pouco de ira com a lembrança.

Se voltou para seu prisioneiro. Era uma situação complicada a qual ele não estava acostumado a lidar. Era um dos inimigos que mataram homens bons e inocentes. Mas os ensinamentos de Ilmater, seu deus, eram claros em oferecer uma segunda chance para esse tipo de criminoso. Porém, ele precisaria de recursos que não dispunha agora, como uma sela e pessoas para vigiarem o orc. Soltá-lo estava fora de cogitação, pois poderia voltar a ferir outras pessoas e ainda tinha que responder por seus crimes. A opção que lhe restava era levá-lo até alguma cidade mais próxima e entregá-lo à guarda ou milícia local. Mas se assim o fizesse, talvez perdesse um precioso tempo e os rastros de Zathir ficassem mais frios para serem seguidos.

O cheiro da comida forçou a interrupção de seus pensamentos.

- Primeiro os assuntos mais urgentes. - disse para si mesmo. A voz era grave e levemente rouca, dando o tom sombrio, porém brando às suas palavras.

Se inclinou para perto da fogueira e apanhou o graveto que improvisara como espeto para assar a carne. Colocou-a junto das batatas cozidas e pegou uma delas. Ergueu-se afetadamente. A armadura chiou no processo. Andou até perto do prisioneiro, olhando-o de cima. Já havia reparado que o elmo fechado confundia os inimigos por não entregar sua expressão facial. A mão direita desceu pesada até as costas do orc, fazendo-o arfar. Girou-o no chão, colocando-o de costas para baixo e puxou o tronco para cima, deixando o orc sentado.

- Coma. - e enfiou a batata na boca do orc, sem violência.

Voltou para perto da fogueira, ficando de lado para seu captor, de forma que conseguia observá-lo, mas ele não visse sua fronte. Retirou o elmo, colocando-o a seu lado. Por baixo do elmo havia uma balaclava cinza de pano grosso, com uma abertura larga para os olhos e uma menor para a boca. Ergueu a parte de baixo até a altura do nariz, deixando a boca livre para que pudesse comer sem sujar a balaclava e iniciou sua refeição. Estava maravilhosa. Sabia que aquilo seria cada vez mais raro dali para a frente, por isso aproveitou muito bem o momento, saboreando cada porção que levava à boca.

Quando terminou de comer, usou um pequeno graveto para palitar os dentes. Suas presas eram um pouco longas demais e levemente salientes, marcando os lábios para fora. Assim que terminou, tratou de abaixar a balaclava e vestir o elmo.

- Responda-me. Se estivesse em meu lugar, o que faria comigo?

Não fitou o prisioneiro durante a pergunta nem a possível resposta vindoura. Em vez disso começou a lavar os recipientes que usara no jantar com a água do rio e guardá-los em seu baú posicionado dentro de sua charrete. Depois voltou até onde o orc estava e arrastou-o até perto de sua charrete, amarrando-o a uma árvore ao lado da charrete, do lado oposto de onde estava amarrado o jumento.

- Sugiro que durma um pouco, vai andar muito amanhã.

Se sentou sobre o saco de dormir e apanhou a espada e o esmeril, começando a afiá-la como sempre fazia antes de dormir. Iria ficar um tempo de vigília, esperando para ver se o orc pegava no sono. Quando terminou de afiar o fio da espada, guardou-a na bainha e ficou observando as estrelas por um bom tempo. Por fim apagou a fogueira, posicionou o escudo e a bainha com a espada ao lado do saco de dormir e se deitou, mas não dormiu. Era perigoso demais não estar atento com aquele orc por perto. Ainda não sabia se haviam outros por ali, e não seria bom ser pego desprevenido. Sabia que o jumento o ajudaria a identificar algum tipo de perigo, agitando-se quando captasse algum som com seus ouvidos mais apurados que o do paladino. E assim ficou para passar a noite. Esperava não acabar pegando no sono.

Os dias de viagem no encalço dos inimigos cobraram seu preço. Vesith abriu os olhos por conta de um ruído. O corpo doía, e ele esperava que não passasse de um movimento qualquer que seu jumento estava fazendo. Mas a primeira coisa que viu ao acordar foi seu suposto prisioneiro que havia acabado de sacar a espada do paladino para fora da bainha.

O sangue gelou e o corpo se moveu instintivamente. Era um ato perigoso atacar com os punhos um inimigo armado, mas ele tomaria um golpe sem defesa fazendo ou não fazendo algo. E resolveu lutar pela própria vida. Maldito orc, não haveria segunda chance.

Vesith se precipitou na direção do oponente, visando atacar o orc da maneira que conseguisse com um poderoso soco. O intuito era feri-lo antes que ele conseguisse golpear. Era uma ação imprudente, mas era sua única alternativa. Sentiu o peso da armadura e o corpo cansado durante o ataque, seu equilíbrio estava prejudicado, pois nem ao menos levantara. Em sua mente, uma prece simples e silenciosa.

"Sê meu punho, Illmater."

Quando o revés sorri de forma sarcástica de forma a suprimir quase toda a esperança, o desespero vem à tona. Mas existem momentos em que o divino mostra sua face, às vezes de modo sutil, às vezes de forma clara. E esse fora um desses momentos, testificou Vesith. O orc que poderia ter sido seu algoz se encontrava prostrado em sua frente, desarmado e ferido.

- Minha fé é tão ínfima...

O paladino puxou a espada pelo cabo enquanto se erguia, se sentindo enorme. Ele sentia como se não estivesse sozinho,
mas o próprio Illmater parecia se levantar com ele. Deu um passo à frente, fitando o orc enquanto ele proferia sua ameaça.
Sem dizer nada, Vesith desferiu um golpe contra a cabeça do orc, usando as costas da mão.

- Se tentar fugir te matarei sem piedade.

Pegou a bainha, posicionando-a com sua alça atravessada no tronco, por cima da armadura, deixando ela voltada para trás.
Apanhou também o escudo, colocando sobre a charrete. Por fim foi olhar o que ocorrera com a corda que usara para amarrar o orc. Se houvesse o mínimo para amarrar seus punhos e pés já seria suficiente. E era isso o que faria, dessa vez empenhando todo o tempo necessário para obter um resultado satisfatório de seus nós, verificando duas vezes.

Recolheu o acampamento, organizando tudo em seus devidos lugares, como fazia comumente. Algumas coisas na mochila,
outras no baú, e outras consigo mesmo. Comeu o que restara da comida e bebeu o resto do vinho, como desjejum, mas não deu nada para o orc dessa vez.

Por fim, amarrou o orc à parte de trás da charrete, de forma que ele fosse obrigado a caminhar atrás da charrete, colocou o jumento no local apropriado, preso à charrete, e se colocou na condução da mesma.

Passaria o dia em viagem, contornando a área norte da Floresta Inundada, indo em direção a Vale do Rastelo. Teria que procurar uma ponte para atravessar o Rio Lis em segurança. Comeria de sua ração de viagem, sem parar para descansar, a menos que o orc caísse de exaustão.

Depois de passado o susto e todos os preparos feitos para seguir viagem, uma nova avaliação em seu humilde mapa mostrou que o itinerário de viagem poderia ser melhor se feito de outra forma. Avaliou as opções e decidiu por seguir a margem do Rio Duathamper. Seria mais seguro por conta da charrete e o prisioneiro.

Viajaram sem maiores problemas, o que deixou o paladino satisfeito, principalmente com a visão das árvores naquela época do ano, mesmo estando um pouco frio demais para seu gosto. Fazia preces silenciosas pelo caminho, pedindo proteção a Illmater, e também que lhe guiasse o caminho até onde Ele desejava que o paladino fosse. Ficou satisfeito também com a atitude de conformismo do orc. Finalmente parecia saber qual era seu devido lugar naquela situação. Ainda estava com raiva do orc, mas sabia que logo passaria. "Nós buscamos justiça, não vingança" diria Sir Orion nesse momento.

Depois de longas horas de viagem, encontraram um clareira onde havia um acampamento. O cheiro de comida logo chegou a suas narinas, fazendo o estômago se revirar. Ignorou o resmungo do orc e pôs-se a se aproximar do acampamento. Ergueu uma das mãos em cumprimento aos homens que pescavam. Chegando nos limites do acampamento, procurou alguém ali perto com quem pudesse falar, parando a charrete e descendo dela afetadamente. Faria uma reverência breve antes de se apresentar.

- Sou Vesith Theragon, da Ordem da Rosa Amarela. Estou levando esse bandido até o Vale do Rastelo.
Poderia me sentar com vocês para descansar e dar água a meu jumento, por gentileza?

A linguagem que usava era um pouco polida demais para certas pessoas, como já tinha ouvido certa vez no monastério como parte de troças lançadas a ele; principalmente com o contraste da voz grave, quase gutural, apesar de mansa. Mas não conseguia evitar, fora ensinado daquela forma, tanto pelo erudito clérigo Theor, quando pelo galante Sir Orion. Esperou a resposta para saber se poderia ficar ou se teria de continuar a viagem da mesma forma que viera.