Desde o estranho acontecimento no deserto, que além da tristeza de ter perdido o pai, Tirel vem tendo dores de cabeças frequentes. O dia de hoje não estava ajudando. Era começo de primavera, mês de Sereia, isto significava noites bem mais escuras até que Hélius Blua (segunda estrela de Akaŝa) voltasse a brilhar no verão; Psikê, a lua vermelha, tinha sofrido um eclipse* e deixado tudo ainda mais escuro; para piorar, ainda tinha caído uma rápida, mas incômoda, chuva de gelo. Com tudo isto, as ruas ficavam quase vazias.
*obs.: Akaŝa tem duas luas e duas estrelas principais, portanto eventos de eclipse são um pouco mais frequentes, uma vez a cada dois meses, aproximadamente, ocorre algum tipo, total ou parcial, solar ou lunar.
Ela estava sentada, na sua frente um baú grande onde deixavam alguns de seus produtos, e em cima da tampa dele, uma adaga flamígea que Tirel observava com fixação. Ela podia jurar que já viu os sulcos das linhas-guias da arma ficarem vermelhos uma vez, quando se aproximara.
- Vamos! Muda de cor! Brilha para mim! O que aconteceu com você?
Ela aproximava e afastava a mão, olhava de perto, de longe, tentava pensar como fazer a adaga reagir. Vez ou outra olhava para fora da tenda, para ver se havia algum movimento, mas naquele frio poucos eram os malucos que saiam de casa. Ela mesma começava bater os dentes, apesar de estar de casaco e com uma grossa manta de couro nas pernas.
- As facas não querem obedecer?
- AAAAHHHHHHHH
A voz bem ao seu lado, onde não deveria ter ninguém, faz Tirel pular, com a mão em cima do coração. Ela olha para o lado quase em choque. COMO aquela figura tinha se materializado do seu lado, sem fazer um único barulho e sem que ela tivesse visto entrando na tenda?
Tirel analisa a sujeita: com certeza tinha sangue demoníaco, pois a pele cinza e o rabo não deixavam dúvidas. Se tivesse asas poderia ser uma súcubo, pois era bastante atraente, mas não tinha, portanto deveria ser uma híbrida, como Miela. Mas a namoradinha do irmão era uma meia-diaba (por sinal nem era tão bonita), já aquela na sua frente devia ser no mínimo uma meia-súcubo.
Os olhos de Tirel correm pelo corpo dela, mas especialmente pelas armas, e não gosta disto:
Na cintura duas armas bem diferentes: um say e um kratak. (Kratak é uma espada de lâmina curta, reta e fina, parece quase um estilete grande. As lâminas originais, e aquela parecia uma, eram feitas com o lendário aço-16, um aço muuuuito especial, e tinham a fama de cortar absolutamente tudo, até rochas ou outras espadas).
Se fossem as únicas, Tirel poderia imaginar que era alguém da Escola Izete, já que são armas símbolos de Jara e Piro, e poucas pessoas usariam armas tão diferentes com destreza. Mas ainda tinha outras:
Ela tinha um cinto atravessado na cintura com duas facas típicas dos melhores trilheiros de Gaja (uma de caça, outra de arremesso), que eram o único tipo de faca, ou melhor o único tipo de armas de Gaja que podia rivalizar com as armas de Akvlando. Na coxa, uma tira de couro prendia também mais uma faca e nas costas ela tinha uma katana e um bastão em forma de gancho. Uma mistura de armas realmente estranha.
Usava uma armadura feita para mostrar mais do que proteger (provavelmente algo feito para seguidoras de Piro) e nos pés uma bota de couro certamente bem macio, próprio para quem quer andar sem fazer barulho.
- Mm, minha irmã também gosta de falar com as armas dela.
- O que? Quem? Como? Por quê? - Mesmo depois da rápida análise, Tirel ainda estava assustada. A demônio estava sorrindo, e isto também era assustador. Ela parece não dar a mínima para a estupefação da humana:
- Parece uma boa adaga. É uma das que fizeram?
- Si-sim!
Ela coloca um papiro em cima do baú, era um panfleto que Tirel e seu irmão deixavam em alguns lugares da cidade.
- Então vocês trabalham com Armas Esmeralda?
- Esmeradas! - Já um pouco menos assustada.
A demônio dá mais uma olhada no papiro. - Ahn, é, tá... - Ela pega uma pequena e longa caixa que também tinha amarrado nas costas, e põe em cima do baú, dentro da caixa havia uma espada, cuja lâmina quebrara em quatro. A lâmina era verde e muito bem trabalhada, além de algumas linhas-guia, tinha ornamentos ao longo dela e parecia muito bem afiada. Se não tivesse quebrada, seria uma obra de arte.
- Esta é a Suspiro. Será que você pode consertar?
Consertar uma espada era algo muito, mas muito mais complicado do que forjar uma espada. Ela teria de ser aquecida até quase o ponto de fusão para ficar próximo do metal que faria o remendo, e isto era o menor dos problemas. Tirel não sabia exatamente o que colocaram naquele metal para ter uma cor verde tão marcante, e a chance de que um emendo, mesmo trabalhado para não ficar aparecendo, conseguisse manter a resistência original da arma era extremamente baixa. O que a demônio pedia era quase impossível, ainda que era parecesse uma cliente de posses que seria muito interessante agradá-la.