Viver em Dafodil era em si uma dor de cabeça que não passava: demônios por todos os lados, gangues, grupos e facções de tudo que é tipo brigando entre si, insegurança de uma terra sem lei... Os habitantes aprendiam a não pensar muito nestas coisas, mas quando alguém parava pra pensar, era sempre uma dor de cabeça.
Tudo ficara pior há cerca de duas semanas, num fatídico dia em que Ka, acreditando de daria sorte vasculhando uma formação antiga em busca de gemas, foi atingido por uma estranha tempestade. Os raios surgiram do nada, sem nuvens, sem trovões, eram simplesmente uma coisa inexplicável (pelo menos para ele). Tudo que sabe é que acordou depois de sabe-se-lá quanto tempo com uma terrível dor de cabeça. Voltou às duras penas para a cidade, e ao passar pelo portão norte ainda viu demônios de Ades lutando e matando demônios de Piro, e destruindo as trancas dos portões.
Ele nunca se importou com estas disputas entre demônios que seguiam um ou outro deus, para ele quanto mais demônios se matassem, menos demônios haveria para se preocupar no mundo, independente de quem ganhasse. Mas aquilo poderia ser sinal de mais problemas para a cidade (como se já não houvessem problemas o bastante em Dafodil nos dias "normais"), Ka vivia na metade da cidade controlada pelos demônios adeptos do deus do fogo Piro, enquanto a outra metade da cidade era comandada por demônios adeptos do deus da morte Ades. A sua metade da cidade era um pouco mais "evoluída" (digamos assim por falta de palavra mais clara) do que a outra metade, e se os demônios do outro lado estavam mantendo o portão aberto, é porque queriam atacar este lado da cidade.
E de fato, o ataque veio dois dias depois, quando Ka tinha finalmente se recuperado do choque da tempestade misteriosa. Dafodil não dava folga.
Não era o primeiro e nem seria o último ataque de um lado da cidade contra o outro que ele presenciara. As rivalidades eram antigas e as disputas frequentes. Mas o ataque foi realmente grande, uma verdadeira guerra.
Para ferreiros como ele, guerras simbolizavam bons lucros, e de fato tinha feito várias vendas e serviços no dia anterior. Mas para as forjas e ferrarias aquilo significava outra coisa: saques. E não deu outra, assim que a coisa estourou, pessoas correram à forja em busca de armas ou escudos, que queriam levar seja pagando, seja roubando, e Ka teve que defender seu espaço às marteladas.
Ele sempre fora determinado, mas naquele dia lutava como nunca. Talvez fossem nós os hormônios da tensão da batalha, mas Ka sentia-se mas forte e rápido aquele dia, porém não parou para pensar nisto.
Muitas casas vizinhas tinham caído ao ataque, os demônios de Ades ganhavam terreno, e por maior que estivesse sendo sua determinação, ele se viu encurralado por quatro demônios, e com mais outros vindo. Eles tinham entrado na forja e tinham matado um ajudante que trabalhava e lutava com Ka. Os dois tinham conseguido devolver alguns demônios para o inferno (três para ser mais exato) mas agora Ka ou se rendia, ou morreria (talvez ambos).
Ele segurava o martelo com força, mas estava cansado. Um demônio que mais parecia um lupino com asas pula contra Ka com garras e dentes preparados. Parecia o fim.
Mas algo no mínimo irônico acontece: No mesmo momento um histérico grito é ouvido ao lado deles, e uma outra demônio "cata" o outro demônio no ar e o joga longe. Era uma raça de súcubo enorme, devia ter uns 2,10 metros fora os chifres; os braços e pernas musculosos dariam inveja a muitos homens fortes. Ela pergunta:
- Você é adepto de Ades?
- Não! - Ka responde no instinto. Ele não sabia qual dos demônios ali lutava para qual lado, e sua resposta tinha 50% de chance de erro, embora ele nem tinha pensado nisto.
- Bom pra você! - Por sorte tinha sido uma resposta certa.
A demônio é atacada por outros três demônios, e simplesmente arrebenta com eles, partindo a coluna do último na joelhada e jogando-o longe como se não pesasse quase nada, depois ela simplesmente sai em busca de outros para matar, ignorando a presença de Ka.
A guerra na cidade dura mais algumas horas, mas nenhum outro demônio ataca onde Ka estava. Indiferente à esta e todas as outras guerras, Hélius Flava (o grande sol de Akaŝa) levanta no outro dia e aos trancos e barrancos as pessoas vão tentando retomar suas vidas. A batalha fora desproporcional: cerca de 2000 demônios de Ades contra pouco mais de 200 soldados de Piro, fora alguns civis como Ka que tiveram de lutar pela vida. Ainda assim os soldados de Piro tinham ganhado.
Muitas casas tinham sido destruídas ou queimadas, muita gente morreu, mas Dafodil não parava por causa de mortos, pelo contrário: muitos começaram a comemorar a vitória, e o caos reinava por mais dois dias.
Isto tudo aconteceu há duas semanas (talvez um pouco mais), e Ka tinha se recuperado, mas hoje a dor de cabeça voltava atacar, e ele se vê obrigado a não trabalhar neste dia.
O dia era uma Iniciadora (o primeiro dia da semana), portanto templos da Igreja Cisne Branco ou outros ligados à deusa do ar, Anĝelina, recebiam os seus fiéis. Para todos os demais que não eram devotos da deusa a cidade continuava como sempre foi.