A Galliard percebia o desgosto do irmão e, por um instante, teve medo. Gaherys, ao contrário de Bedwyr, era lento em irar-se, mas quando a Fúria cantava em seu sangue, nada poderia para-lo. Com os cabelos castanhos bem curtos, os nós de Bravura e Espiritualidade gravados no corte como intrincados desenhos nas laterais, Gaherys tinha o porte certo entre guerreiro e druida. Os olhos austeros, acinzentados e expressivos, e o Gamo-Rei destacado sobre o peito, isentavam de dúvidas: o Theurge fazia jus às lendas da sabedoria ancestral dos Fianna.
Gaherys escreveu:-"(...) Temo que minha irmã tenha tomado uma trilha perigosa. E que esteja fundo demais nessa trilha para que possa voltar a seguir por outro caminho. Gwen, há muito sofrimento pelo caminho que você deseja seguir.-"- E Gaherys se virou para ela, com um sorriso no rosto dessa vez, e Gwenhwyfar soube que seu irmão lhe havia compreendido. -"Mas eu sei o que é ser amaldiçoado pelo amor. E o seu é puro, Fada minha."
Aurora Serena corou violentamente.
Será que aquilo contava como "revelar a forma do amor verdadeiro"? Não, não era provável. Ela teria que falar, que dizer com todas as letras, e teria que ser algo público e notório. Como quando Diarmuid levou Grainné embora da Irlanda, às vésperas do casamento com Fionn.
Sentiu a intenção do toque espectral de Gaherys e ergueu para ele os olhos azuis, enquanto recebia o carinho do irmão - ainda que não pudesse verdadeiramente senti-lo.
Gaherys escreveu:-"As visões que os espíritos nos mostram podem ser... difíceis. Afasta tal dor de seu coração, Gwenhwyfar, pois os espíritos lhe enviaram a visão de dias vindouros. O Ahroun vive."- Gaherys então ficou de pé novamente, observando a minguante no céu.
O coração da Fianna acelerou no peito, rufando como tambores de guerra. Ela respirou, sentindo o ar passar quase dolorosamente até os pulmões, voltando a enche-la de vida. Acompanhou o irmão ficar de pé e dizer qualquer coisa sobre contar com a ajuda de sua matilha. Mas a mente de Aurora Serena estava galopando alucinadamente pelos prados da glória.
"O Ahroun vive". O semblante da Galliard iluminou-se como as estrelas e ela apertou uma mão contra a outra, sentindo o ardor da palma esquerda recentemente cortada.
"Os espíritos lhe enviaram a visão de dias vindouros". Gwenhwyfar sentiu o corpo inteiro tremer e percebeu que estava rindo e chorando ao mesmo tempo.
Gaherys escreveu:Gaherys caminhou até o espírito do totem e lhe acariciou a cabeça. E a Onça-Pintada ronronou em resposta. -"Cuide de minha tola irmã, sim?"- Ele sorriu ao totem, que o observava com olhos solenes.
-"Quem vai protegê-la de seu doce coração quando eu não estiver aqui? Adeus, Fada minha."
Aurora Serena sorriu e secou o rosto com as mãos o melhor que pôde.
- E quem diria que a frase mais profética entre nós seria sempre a de Bedwyr? - a ruiva afastou os cabelos para trás das orelhas antes de continuar -
Perdão por atraí-lo até aqui com meu pranto, meu irmão, mas muito obrigada. Abençoado seja o Senhor da Primavera, para ele eu canto a Prece do Amor. Deus Divino das Trevas, Deus Divino da Luz¹, leve meu amor com você, Gaherys. Entregue parte dele a Bedwyr, sim? E a màthair². E que queimem os fogos sagrados de Beltane e iluminem o caminho para o retorno do Sol¹. A forma espectral do irmão se desfez e Gwenhwyfar suspirou, sentindo-se
inteira outra vez.
Andrei estava vivo. A Fianna caminhou lentamente até o riacho, tomou água nas mãos e lavou o rosto, eliminando os vestígios de lágrimas e sangue. A Mãe tinha dado aos Garou corpos que se curavam muito mais rápido que o dos humanos, e o ferimento na mão esquerda já não sangrava, apesar de continuar ardendo. A Galliard fitou o totem e sorriu, o alívio sobrepujando qualquer outra sensação, em uma verdadeira descarga de hormônios de relaxamento. Por um breve instante, pensou em simplesmente se deitar na relva macia e dormir sob as estrelas.
Mas então Dayenne acorreu até a clareira em sua bela forma lupina, em trote rápido e elegante, seguida quase imediatamente pela chegada de Antonio, que - vindo da direção da casa - aproximava-se em glabro. A preocupação era evidente na expressão de ambos, mas a Galliard encontrava-se em um estado de espírito muito diferente daquele em que estava quando uivou em desafio para Luna. Aurora Serena estava -
@DayenneValerie e
@antonio xavier podiam ver -
absolutamente serena, de pé a beira do rio, com o vestido preto longo rasgado em muitas partes diferentes.
A Fianna deslizou os olhos azuis de um irmão-de-matilha para o outro enquanto dizia:
- Não sei como puderam me ouvir através da Película... Talvez por causa de Samhaim. Mas, irmãos... Eu recebi visões do Apocalipse que se aproxima.A brisa da Umbra agitou os cabelos-de-fogo de Gwenhwyfar e fez dançar ao seu redor os frangalhos da saia longa de tecido leve. A garota tomou o pingente de floco-de-neve na mão direita por um instante, e então - guardando a pequena joia que era
seu tesouro - passou a narrar para os companheiros de matilha:
- Eu vi um Dragão tentar devorar Luna. E a Fênix que fez sangrar o Dragão. Vi uma planície na tundra siberiana, e os poços de piche de onde a Corrupção brotava como crias das trevas. Vi uma matilha de Garou, a última resistência, lutar em honra da Mãe uma batalha perdida. Vi pássaros-de-fogo e seus ovos de morte, trazendo cogumelos enfeitiçados de chama viva, que calcinavam tudo e todos, obliterando o mundo em uma luz cegante. - a Galliard falava baixo e de forma pausada, criando o efeito de suspense a medida que descrevia as visões -
A Mãe me abençoou com o Dom de tocar outras mentes e tudo que vi posso mostrar em detalhes vívidos a vocês. Cada imagem. Cada memória da revelação. Mas não neste momento. A Umbra guarda perigos em cidades, perigos maiores em cidades como Bela Noite, e perigos descomunais em noites como Samhaim em cidades como Bela Noite. Devemos retornar? Ou algo os trouxe aqui, irmãos, além do meu desespero profético?A ruiva olhava de um para o outro, aguardando.
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¹ Parte dos cânticos tradicionais em honra a Cernunnos nos Ritos de Beltane.
²
Máthair: forma gaélica de "mãe".