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    Neve e Sangue

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    Mensagem por Mellorienna Ter Set 04, 2018 11:10 pm


    Trecho do background de Aurora Serena, sobre a Galliard e seus irmãos
    ----- para @DayenneValerie, entusiasta do amor fraternal <3


    ---------------------------------------------------------------------

    Sonhava com Gaherys de tempos em tempos, sonhos vívidos que atribuía ao fato de o irmão ser um Theurge. O treinamento dos Druidas contemplava mistérios além da compreensão da jovem ruiva, mas sentia-se sempre mais animada depois desses sonhos, em que tinha notícias de casa nas quais acreditava com fé reverente. “Bedwyr sente falta de suas Bênçãos de Fada, Gwenhwyfar Le Fey. Todos sentimos”, o irmão dizia com frequência. E ela caminhava até ele, no cenário onírico das florestas virgens das Terras Altas, e recitava as palavras da brincadeira de infância que tinham: “Que a Mãe e Dannu olhem por você do Outro Lado e o tartan dos Campbell guarde seu coração do mal”. Beijava Gaherys e toda vez era transportada para a mesma lembrança. “Você não teve culpa, fada minha. Quero outro beijo para saber que ficará em paz” – o irmão tinha um sorriso solar e ela quase podia acreditar nele. Quase.

    Era criança. Tinha cerca de nove anos. Não, tinha exatamente nove anos. Bedwyr vinha até ela na Umbra. O irmão era um jovem Ahroun formidável, a voz poderosa como o rugido das cachoeiras, límpida como o trovão que se desenrolava ao longe antes de uma grande tempestade. “Afaste-se da minha irmã, Sídhe – ela se lembrava de ouvi-lo dizer. Não sabia o que era um Sídhe. Mas tinha uma amiga ao seu lado, uma menina, e ela tinha dado uma romã para que comesse. Pegou um dos grãos vermelhos da fruta – vermelhos, translúcidos e brilhantes, como seus cabelos. Abriu a boca para provar. “Não coma isso, Gwenhwyfar. Entregue para mim.” – a voz de Gaherys a alcançou a meio caminho da boca e ela interrompeu o gesto, olhando o irmão por algum tempo antes de entender o que havia de errado. Eles estavam preocupados. Ela não entendia porquê.

    A menina insistia para que comesse. Estavam de mãos dadas, sentadas na beirada do promontório que dava vistas para o mar. Uma queda de dezenas de metros logo abaixo, onde seus pezinhos se balançavam, descalças as duas amigas sentadas na beira do abismo. A menina sorria um sorriso impossivelmente largo. A ruiva piscou algumas vezes e teve a sensação de que a imagem da amiga se transformava em uma grande figura humanoide magra e alta. Como um graveto esticado. Largou a romã.

    Quando a fruta tocou a grama ao seu lado, as folhas imediatamente se tornaram negras e podres, e a garotinha gritou de susto. O grito nem tinha morrido em seus lábios quando o graveto-esticado a levantou do chão pelo pescoço, com uma única mão enorme de garras de árvore, e rugiu em desafio para seus irmãos. “Por três vezes três ciclos das estações esperamos pela filha de Nynaeve. A criança retorna comigo...” – tudo que ela viu foi o chão desaparecer sob seus pés quando a criatura a pendurou do abismo umbral – “... ou morre!” – e ela chorou.

    Não conseguia se lembrar direito do que aconteceu na sequência. Bedwyr partiu para cima do Sídhe e Gaherys lançou-se para ela quando o Changeling arremessou seu corpo por sobre o penhasco. O irmão simplesmente jogou-se atrás dela, enquanto gritava desesperada, e a abraçou forte junto ao peito. Ele só tinha quatorze anos. Gwenhwyfar tinha certeza de que ambos iam morrer. Olhando por sobre o ombro do irmão, viu Bedwyr ser ferido na luta contra a criatura, metros acima de seus corpos que caíam. Um corte terrível, do ombro até o umbigo, que fez o irmão – na forma Crinos guerreira – uivar de dor. No mesmo instante ouviu Gaherys dizer palavras que desconhecia e sentiu um frio como uma névoa atravessar sua pele. Bedwyr e o Sídhe sumiram e o irmão girou no ar, fazendo-a perder-se do contato dele por segundos que pareceram uma eternidade, antes de assumir a forma Crinos e agarrar-se à pedra nua com as garras afiadas por Gaia enquanto segurava a pequena irmã pela mão.

    Sabia que tinha subido nas costas de Gaherys e entrelaçado os dedos em seus pelos macios enquanto o irmão escalava a encosta com dificuldade. O braço que usou para interromper a queda havia se quebrado em três lugares diferentes, mas ele se manteve calmo. Com o uivo, avisou do perigo que Bedwyr corria. Quando chegaram ao alto do penhasco, sua matilha já estava ali e Gwenhwyfar foi levada de volta ao caern enquanto um pequeno grupo, liderado por sua mãe, rasgava a Película para resgatar o irmão mais velho.

    Gaherys estava ferido. Bedwyr foi trazido de volta quase morto. E ela chorava com frequência ao lado do leito do irmão. “Quem vai protegê-la desse coração doce quando eu não estiver por perto, Gwenhwyfar Le Fey? – foram as primeiras palavras de Bedwyr ao acordar, com um sorriso charmoso no rosto. E ao despertar de cada sonho Aurora Serena se fazia a mesma pergunta.


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    Mensagem por Mellorienna Sex Set 14, 2018 11:41 pm



    Come touch me like I'm an ordinary man
    Have a look in my eyes
    Underneath my skin there is a violence
    It's got a gun in its hand

    --- Archive, Bullets



    A dor perfurou Bedwyr como a estrela da morte. A lança nas mãos experientes do Ahroun oscilou e então pendeu, caindo com um baque surdo contra a terra batida do campo de treinamento. A antiga cicatriz queimou um rio de ácido desde seu ombro até o umbigo e o poderoso righ dos Fianna curvou-se, indo de joelhos ao chão. Sentiu o gosto da própria bile misturado ao sabor do sangue dela subindo à sua boca e a Fúria agitou-se nele como tufões erguendo o Mar do Norte. Quando deu por si, uivava a plenos pulmões, a forma imponente de Crinos fazendo sombra contra seu parceiro de treino, que tremia com os olhos fixos nele, sem entender o que estava acontecendo.

    Era um Càirdeach – um Parente – e por isso não tinha sucumbido ao Delírio que teria assolado os humanos. Mas ainda assim encarava o gigantesco Ahroun com pavor tingindo a alma. O que o Fianna percebia com uma estranha sensação de distanciamento, como se aquilo estivesse acontecendo com outra pessoa. De modo vívido, doloroso e aterrorizante, os olhos de Bedwyr presenciavam outra cena.

    Quando a viu pela última vez, era uma adolescente sardenta de sorrisos meigos. Mas agora era uma mulher – ele a via distintamente, os cabelos-de-fogo agitando-se em ondas ao redor de sua figura feérica. Os olhos azuis oceânicos arregalados de pavor. O pequeno corpo feminino tombando lentamente em direção ao chão coberto de neve.

    O peito queimava e ele uivou enlouquecido pela dor mais uma vez, as garras raspando a terra a medida que lutava para agarrá-la, voltando à forma racial no processo.

    - Bedwyr.

    A voz do irmão o trouxe de volta, levando seus olhos para longe da Pequena Fada e de volta para o mundo tangível, onde o righ sentiu as lágrimas embargarem sua garganta, impedindo qualquer discurso longo. Engolindo em seco e encarando o Lua Crescente como se pudesse chegar-lhe ao espírito, o Ahroun disparou:

    - Neve. Sangue. Gwenhwyfar.

    As sobrancelhas de Gaherys ergueram-se de espanto. O que equivaleria a gritos e uivos vindo de qualquer outro homem da Tribo.

    - Bràthair, você tem cert---

    - Vá, Gaherys. AGORA.

    O Theurge apenas fechou os olhos, o corpo instantaneamente caindo de costas. Mas Bedwyr o amparou a tempo, evitando que o irmão batesse contra a terra ao projetar sua forma astral em busca de Gwenhwyfar. Ajoelhado no chão, com Gaherys nos braços, o Lua Cheia olhou para o Parente com quem treinava até então.

    - Encontre Niall e diga para trazer Nynaeve-bhanrigh aqui. Rápido. – o garoto, recuperando-se do susto, já tinha começado a correr quando o Ahroun completou – Bom trabalho, Allan. Você orgulha os Sinnsearan.

    O jovem assentiu e voltou à corrida, encontrando forças renovadas no pensamento de que seus Antepassados sorriam para ele. Enquanto isso o righ encarava o rosto do irmão, sentindo o estômago torcer-se a cada careta que Gaherys fazia, o coração batendo dolorido no peito.

    O tempo singrou a tarde e a noite nasceu quando Nynaeve pisou no campo de treinamento. O Lua Crescente permanecia deitado na poeira, uma camisa no tartan dos Campbell dobrada sob a cabeça à guisa de travesseiro. Bedwyr ajoelhado ao seu lado, os olhos cinzentos faiscando de Fúria aos primeiros raios de Luna.

    A Philodox nada disse, sentando-se no chão do outro lado do corpo adormecido do Theurge, tomando-lhe o pulso antes de dignar-se a encarar Bedwyr. Os cabelos ruivos de Nynaeve e os olhos verdes como grama do Verão tornavam muito fácil reconhecê-la como mãe de Gwenhwyfar, embora faltasse à Meia Lua a suavidade feérica da filha, a doçura do olhar e a inocência dos pensamentos.

    - Màthair.

    A Philodox torceu levemente o nariz diante do cumprimento antes de responder, a voz seca de trinado estridente e frio:

    - Bedwyr-righ.

    Existia um lago de tensões entre o Ahroun e a mãe. Muito havia sido falado, muito havia sido calado. E agora a barragem frágil que impedia a tragédia absoluta vergava-se sob o peso da preocupação por Gwenhwyfar. A bhanrigh havia mandado sua piuthar para longe contra a sua vontade e Bedwyr culpava a mãe por todos os infortúnios do destino da irmã. Estava prestes a dizer exatamente isso e reacender as chamas da guerra entre ele e Nynaeve...

    ... quando o Theurge abriu os olhos.

    - Gwenhwyfar vive.

    O peso que saiu dos ombros do Ahroun pareceu fazer morada no semblante da Juíza e ele a odiou de todo o coração. Ergueu-se de um salto, tomando a lança novamente nas mãos enquanto o irmão se sentava, balançando a cabeça de um lado para outro, visivelmente tonto. Os olhos inexpressivos da mãe acompanharam os movimentos do Lua Cheia e Luna cantou em seu sangue antes que pudesse temperá-lo com melhor juízo.

    - Você a mandou para a morte.

    Cada fibra de seu ser estava concentrada em não mudar para Crinos, mas sabia que rosnava para a mulher mesmo assim. A maldita mãe que Gaia havia dado a eles. Nynaeve desejava mesmo ver Gwenhwyfar morta? Bedwyr ergueu a lança na direção da Philodox, a lâmina reluzindo ao luar a centímetros da garganta delgada da Garou que sequer movia um músculo, mantendo a expressão inalterada de leve desgosto ao fitar o filho mais velho.

    - Assim que Gaherys estiver bem, saia das minhas terras. E mande um mensageiro à Tara na primeira luz da manhã. Gwenhwyfar volta pra casa, màthair, e viverá comigo. E você nunca mais vai mandá-la para onde eu não possa protegê-la.

    O Fianna girou a lança na mão e deu as costas a Nynaeve e Gaherys, tomando o rumo da Caverna. Antes que se afastasse três passos, ouviu a voz plácida do irmão anunciar:

    - Ela manda seu amor para você, Bedwyr.

    O Ahroun não se virou, nem respondeu. Ele sabia que sim. Apertou com força a lança, sentindo a arma vibrar com a pressão de seus dedos. Para a Caverna. E para o Inferno se necessário. Mas era dele a missão de proteger a Pequena Fada. E Bedwyr prometeu que não falharia outra vez.

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    Mensagem por Tellurian Ter Out 09, 2018 10:49 am

    Trecho do conto "Neve e Sangue" que conta a história do Andrei e de como ele conheceu a Gwen.
    -----------------------------------------------------------------------

    -“Porquê?”

    A neve estava vermelha com o seu sangue. Ele levou a mão ao ferimento no peito. Era profundo demais, ia levar muito tempo para regenerar. O ar frio que respirava fazia seus pulmões arruinados arderem. Não conseguia se levantar, nem se transformar. Sentia a pele adormecer conforme a neve que caía se acumulava sobre seu corpo moribundo. Ia morrer agora, ele sabia. Mas precisava entender.

    -“Você era meu irmão. Eu te amava.”- a voz saía pesada, sufocada pela emoção. Sentiu raiva a vida inteira. Conviveu com a Fúria desde muito pequeno. Mas agora, no fim de sua breve vida, ela parecia ter lhe abandonado. Só o que havia era amargura, angústia e tristeza. O sangue não parava de correr, e a vista já embaçava e escurecia. Estava tão Frio.

    Mas não houve resposta. Não havia mais sanidade nos olhos de Sasha. Ele apenas estava de pé ali, o encarando com as mãos sujas com suas vísceras. Sua forma Crinos era poderosa como sempre. Como se orgulhava da força do amigo! Mas aquela coisa na sua frente não era mais seu irmão. Não era mais o amigo querido que o acolheu após a Primeira Mudança, que o ensinou tudo sobre o mundo dos Garou, que o ensinou a lutar. Não era mais seu Herói. Não era mais seu Mentor. Era uma verdadeira cria da Wyrm.

    Andrei compreendeu o que devia fazer. Cada segundo que aquela coisa vivesse era uma desonra para Sasha. Um insulto à sua memória, aos seus feitos, à sua vida. A determinação encheu seu peito ferido e levou forças aos seus membros. Ele levantou com dificuldade. Porém, Sasha era temível. Avançou imediatamente após Andrei se levantar, sem dar tempo para a transformação.  Conseguiu se esquivar por muito pouco, rolando para o lado, onde jazia o corpo de Vanya, sua companheira morta de matilha.

    Ao cair, sentiu o toque estéril do metal escondido sob a neve. Sasha atacou de forma implacável. Porém, o ataque foi detido quando a lança de prata de Vanya atravessou a sua garganta. Andrei havia conseguido apanhar a arma que jazia sob o corpo da companheira e apontá-la na direção do antigo amigo. A própria violência do ataque de Sasha foi sua perdição.

    O corpo do amigo tombou pesadamente, sem vida, imóvel. Sasha, Vanya e Ivan estavam mortos. Seus irmãos, amigos de batalha, com quem riu e chorou, com que lutou e sangrou. Andrei chorou, amargurado.

    A neve caía, vermelha como sangue de seus irmãos.

    ***

    -“Vocês estavam investigando a possibilidade do nosso Caern ser atacado por Dançarinos da Espiral Negra, quando encontraram uma Colméia e foram atacados por ela. Confirma?”

    Andrei acenou com a cabeça. A história que contara aos Anciãos para explicar como sua matilha fora dizimada queimava em seu peito. Ele não conseguia levantar os olhos, mantendo-os fixos no chão. Com medo que sentissem, como se olhar para os homens a sua volta, que o interrogavam, entregasse sua mentira.

    -“Vocês lutaram valorosamente, até que Ivan e Vanya foram mortos. Ao ver a cena, você entrou em Frenesi Raposa e fugiu. Sasha lutou até o fim, garantindo a sua fuga ao custo da própria vida.”

    Andrei fechou os olhos. A vergonha era imensa, mas ainda maior era seu desejo de preservar a memória de Sasha. Se os Anciões soubessem a verdade, seu amigo seria proscrito. Seria taxado de traidor, ostracizado pelos companheiros, esquecido e desprezado. Por tudo o que Sasha fez, por tudo que ele sacrificou, por tudo que ele contribuiu, por quem ele era, ele não merecia isso.

    Ao mesmo tempo, se dissesse que lutou ao lado de Sasha até o final, ele seria o sobrevivente. Receberia os louros de uma vitória que não aconteceu, contra um inimigo que não existiu. Diminuiria o valor de Sasha e dos outros. E ele teria que conviver pra sempre com canções, brindes e tapinhas nas costas que sabia que não merecia. Ele matou Sasha. O grande Sasha. O temível Presas do Frio. O herói do Caern. Qualquer história onde Andrei sobrevivesse e Sasha não só podia ser mentira. Se fosse para viver assim, preferia receber o desprezo dado aos covardes que fogem. Além disso, havia a questão dos corpos dos inimigos. Porquê não havia nenhum, se Andrei estava vivo e vitorioso?

    Os anciãos se entreolharam. Um sacudiu a cabeça em reprovação. Seus olhos duros fitaram Andrei, que encarava o chão. Viraram suas costas para Andrei, em um repúdio ritualístico. Não era mais bem-vindo ao convívio de seus pares, e deveria partir ao exílio. Andrei acenou com a cabeça e se levantou. Caminhou até a porta. Ao abrir, viu a vastidão branca a sua frente. A tundra congelada e castigada pelo vento. As poucas centenas de cabanas de madeira se aglomeravam pra resistir ao inverno siberiano. Andrei pensou no dia em que fora recebido no Caern. Em como os Anciãos tinham sorrisos no rosto. Em como Sasha o esperava do lado de fora da cabana dizendo que ia ficar tudo bem. O sorriso de Vanya, como ela era linda! A carranca de Ivan franzindo o cenho para o novato verde como grama. Eles eram Garou exemplares. Quanto mais pensava sobre tudo, menos fazia sentido. Sentiu a Fúria agitar suas entranhas. A culpa do que acontecera era toda dos anciãos e sua hipocrisia.

    -“Sasha era melhor do que qualquer um de vocês.”.- e saiu.

    ***

    O trabalho no campo era duro, mesmo pra dois Garou tão grandes e fortes quanto Sasha e Andrei. Arar a terra para fazer o plantio era importante. A caça era escassa no inverno, e seria necessário estocar comida. Com um pouco de sorte, conseguiriam uma farta colheita com um ou dois meses de antecedência ao inverno, mas precisavam se apressar.

    A terra é congelada quase o ano inteiro na Sibéria. A agricultura é difícil, o permafrost só permite que se obtenha alguns vegetais em poucos momentos do ano, praticamente todo o resto da alimentação vem dos rebanhos de rena e cavalo. É preciso braços fortes e trabalho duro. As fazendas de trabalho forçado do Comunismo eram castigo para dissidentes do sistema, mas para os habitantes dos arredores de Oymyakon elas fazem parte do dia-a-dia.

    -“Um dia, Andrei, vamos pra Omsk. O trem sai da cidade, atravessa a Sibéria, é lindo. Vou te levar para assistir o balé no teatro.”- Andrei secava o suor que já congelava na testa enquanto golpeava o solo com sua enxada.

    -“Balé? Eis uma cena a se ver. Dois Ahroun de terno e gravata assistindo piruetas de afrescalhados”- Andrei ria alto, sua risada de trovão ecoando nos campos.

    -“Não apenas de batalha vive o guerreiro, Tovarisch. A alma precisa de alimento. Beleza e alegria. Eu tenho um amigo no teatro, ele pode nos arrumar ingressos. É sério, você vai gostar. Algo de bom vai acontecer quando você for lá.”- Sasha fazia uma pausa e falava arfando, com um sorriso no rosto. Tinham feito boa parte do trabalho, mas ainda faltava mais da metade. O solo estava duro feito o diabo.

    -“Chamem os anciões, erraram seu Augúrio. Temos um Theurge aqui.”- Os dois riram alto enquanto revezavam os seus ataques impiedosos ao solo - “Talvez ano que vem, no verão. Agora, Tovarich, nossa luta é com o solo congelado. Temos gente para alimentar.”- Andrei castigava o chão congelado com sua picareta e falava arfando com o amigo. O suor congelado na sua barba por fazer machucava a pele do rosto.

    Vanya chegou correndo. Ela sacudia o braço direito enquanto carregava uma pesada bolsa no ombro esquerdo. Trazia um sorriso iluminado no rosto. Os cabelos louros estavam soltos e balançavam ao vento como uma cascata dourada. Os olhos eram o verde que faltava na terra. A pele branca estava rosada pela agressão do frio. Andrei sentiu o cheiro da comida e se alegrou, dando tapinhas nas costas do amigo e apontando para a direção da companheira. Sasha abriu um largo sorriso ao ver Vanya. Bem largo, Andrei riu por dentro.

    Vanya havia trazido uma mesa dobrável com ela, e três banquinhos portáteis. Andrei e Sasha lavaram as mãos e o pescoço e se sentaram à mesa preparada pela companheira. A refeição era basicamente um ensopado bem quente de carne de cavalo. Um chá digestivo acompanhava a refeição. Um ou dois goles de vodka para esquentar. Uma senhora refeição, bem vinda para os braços cansados.

    Os companheiros riam e faziam piada de tudo. Mesmo depois de comer, passaram um tempo conversando. Andrei era jovem, tinha passado a pouco tempo por sua Primeira Mudança, e Sasha era o professor que lhe ensinava como o mundo era de verdade e a cultura dos Garou. Andrei ficou em silêncio um pouco, observando os amigos conversando. A forma como se olhavam era clara. Riu para si mesmo. Em pouco mais de uma hora, tinham acabado o horário de almoço e deveriam retornar ao trabalho. Vanya deu um beijo em cada um dos amigos e foi embora levando a mesa, os bancos e os pratos e talheres.

    -“Ela gosta de você, Tovarisch.”- Andrei deu tapinhas nas costas do amigo enquanto se virava com a picareta na mão para retornar aos campos de trabalho.

    -“Oquê?? Não diga isso nunca mais, Andrei! Me ouviu?”- Sasha se enfureceu, retirando o ombro do alcance do amigo e derrubando sua ferramenta no processo, mas Andrei apenas riu.

    -“Não seja tímido, Sasha. Eu vi como vocês se olham. Estou feliz por vocês. Me chamem pro casamento, sim?”- na ignorância de Andrei, era tudo brincadeira. Era um momento feliz. Mas a amargura no rosto de seu amigo derreteu o sorriso que havia no rosto de Andrei.

    -“Garou não podem acasalar entre si, Andrei. Nos é proibido pela Litania. Ainda não tive a oportunidade de lhe ensinar isso, mas nosso sangue não deve se misturar, ou nossos filhos nascem deformados e corrompidos.”- Sasha, Presas do Frio, tinha o semblante pesado e amargor na voz ao falar isso. Mas Andrei, Anoitecer Selvagem, não tinha idade para se importar com as tradições empoeiradas dos anciões, e não desistiu do amigo.

    -“Não tenham filhos então. Já ouviu falar de camisinha?”- e deu um soco no ombro do companheiro e saiu correndo. Sasha arregalou os olhos azuis como vidro e riu alto com seu riso que parece latido.

    -“Ora, miserável... volte aqui!”- e correu atrás do amigo que ria dele, com um sorriso no rosto e o espírito mais leve.

    ***

    O vento soprava pela planície congelada pelo permafrost, onde os amigos riram e brincaram juntos anos atrás, lutando contra o solo congelado para alimentar seu povo.

    A lança de prata estava cravada no solo da floresta de pinheiros, onde as cinzas dos seus amigos foram espalhadas. Andrei olhou para a lança. Antes era um símbolo da altivez e da glória de Vanya, mas agora lhe trazia lembranças terríveis. Ainda tinha a sensação dela em sua mão, perfurando a garganta de Sasha, o sangue de seu amigo respingando em seu rosto.

    Fechou os olhos. Não. Não se lembraria assim deles. Lembraria dos bons momentos. Das alegrias. Das belezas. Pôs as mãos no bolso do casaco e retirou uma passagem do trem transiberiano, com destino a Omsk. Junto com a passagem, um ingresso para o teatro.

    -“Alimento para a alma, Tovarisch.”- Andrei permitiu que uma última lágrima escorresse pelo seu rosto enquanto olhava para a lança de prata que um dia foi o símbolo da sua amizade. Virou as costas, pegou a sua mala e caminhou para a estação.

    -“Duvido que aconteça algo de bom, meu amigo.”-

    ***
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    Mensagem por Mellorienna Ter Out 09, 2018 9:18 pm


    Trecho do conto "Neve e Sangue" - desta vez, escrito por mim :3
    Sobre a nevasca, Aurora Serena e Anoitecer Selvagem. Sobre o Tabu de Diarmuid.


    • Contém spoilers







    Ela tinha trançado Amor em suas mechas vermelhas. Parada diante da noite, com o vento frio sacudindo a neve ao seu redor como estrelas, Gwenhwyfar tremia enrolada no cobertor. E sorria. O ar gelado ardia seus pulmões e começava a deixar seus dedos dos pés insensíveis. A ruiva olhava a aurora boreal e riu baixinho, virando-se quando ouviu a voz atrás de si:

    - Você não devia estar de pé nessa nevasca, Koshechka.

    Ela adorava quando ele a chamava de gatinha. Ergueu o queixo para poder fitá-lo e viu o reflexo das luzes que dançavam no céu brilhar sobre Andrei. Em silêncio, estendeu os braços para o Ahroun, que a ergueu com ternura junto ao peito, carregando-a de volta para a cabana. Como uma noiva trêmula. A garota aninhou-se à curva do pescoço de Andrei e abraçou-o com força. Quando a porta se fechou atrás dos dois, ela sussurrou:

    - Não me coloque no chão ainda...

    Andrei sorriu e caminhou até uma cadeira próxima da lareira, sentando-se com Gwenhwyfar no colo. Ela estava ferida. Dois dias atrás tinha levado uma bala por ele. O Garou estreitou a ruiva nos braços, perdendo-se no cheiro feminino dela. A ideia de que a Galliard tinha arriscado a própria vida por ele ainda era recente, absurda e maravilhosa demais para que o Presas de Prata pudesse entender. Com suavidade, acariciou os cabelos-de-fogo da garota, encontrando as mechas que ela havia trançado. Dedilhou a trança intrincada e percebeu que Aurora Serena baixou os olhos, corando visivelmente.

    - O que quer dizer? – ele perguntou, lembrando-se de quando conversaram sobre os nós celtas e seus muitos significados.

    - Segredo. – o corpo dele se agitou com a proximidade dos lábios dela, aquela voz melodiosa e quente contrastando com a pele arrepiada. O cobertor que ela usava ao redor do corpo deslizou para o chão e Andrei lutou contra o desapontamento de perceber que a ruiva não estava nua.

    Aurora Serena usava uma das blusas de lã de Andrei. E sorria de um jeito entre sensual e inocente, traçando a linha do maxilar tenso do Ahroun com a pontinha dos dedos frios e passando os pezinhos descalços pela panturrilha do homem.

    - Você teve febre por dois dias. Não pode simplesmente sair pela nevasca para ver as luzes, Aurora Serena. É perigoso.

    - Perigoso. Belo. E Selvagem.

    Os olhos dos dois Garou se cruzaram e o silêncio cresceu entre eles, erguendo-se em sombras que se alongavam pela cabana isolada pela neve que devastava a tundra. Estavam sozinhos. Os dedos de Gwenhwyfar desceram pelo pescoço de Andrei até os ombros, e dali até o peito, onde o coração do guerreiro disparava. No mesmo ritmo descompassado e alucinado que o dela. Repousou a palma da mão inteira sobre o peitoral do Garou e olhou-o nos olhos. Aqueles olhos verdes, cinzentos e lindos, que queimavam com a luz do fogo da lareira. A mesma luz que refletia nos cabelos ruivos dela, lançando reflexos como labaredas ao redor dos dois.

    - Gwen...

    A garota se aninhou mais ao corpo másculo, provocando um estremecimento quando pressionou a curva do quadril contra o colo dele. Já tinha sentado nos joelhos dos irmãos por centenas de vezes, já tinha sido aninhada e embalada por Bedwyr e Gaherys em incontáveis oportunidades. Mas aquilo não era nada parecido. Deveria ser, é o que Litania dizia. Eram irmãos diante da Mãe e exatamente por isso eram proibidos de compartilhar intimidade que excedesse os carinhos fraternais. Porém, sozinhos na cabana em meio a um deserto de neve, Gwenhwyfar sentia profundamente que Andrei não era como seus irmãos. O Ahroun era um homem. O coração da Galliard perdeu-se no ritmo das batidas quando ele se inclinou sobre ela, farejando seu pescoço.

    Andrei percebia o suspirar escondido na respiração da ruiva e deslizou as mãos pelas pernas arrepiadas da Garou, fascinado pela sensualidade que emanava dela. Por trás do perfume de camomila nos cabelos de Gwenhwyfar, por baixo da fragrância de shampoo e sabonete, o corpo da garota escondia um cheiro enlouquecedor. Um cheiro de desejo. Um cheiro de femme. Avassalador e letal, singrando os sentidos do Presas de Prata como garras afiadas que prendiam-se firmemente ao coração de Andrei. Ele tinha visto a tragédia abater-se sobre sua matilha por um sentimento como aquele. Tinha visto a Wyrm ganhar espaço na alma do melhor dos Garou por um amor como aquele. Contudo, estava completamente perdido de paixão pela Fianna. Sentiu o corpo feminino estremecer com a proximidade de sua respiração junto à curva do pescoço delicado e sorriu como um predador, movendo uma das mãos pela parte interna das coxas da ruiva, próximo aos joelhos.

    - Eu deveria me afastar de você... Anoitecer Selvagem...

    - Deveria, Aurora Serena.

    Mas ela não se afastou e ele a puxou pra mais perto, provocando um gemidinho da garota, que não esperava o gesto brusco e passional dele. A Fianna moveu-se como se fosse ficar de pé, porém sem se erguer de verdade, o que apenas causou um esfregar de corpos que beirava os limites do perigo. Andrei fechou os olhos, respirando fundo. Por Gaia, ele perderia o controle! Alheia a isso, Gwenhwyfar entrelaçou os braços ao redor do pescoço do Garou e sussurrou ao ouvido do Ahroun com aquela voz deliciosa:

    - Andrei, me leva pra cama?

    Por um segundo, o homem flutuou num mar de hormônios que o deixou cego para todo o resto. Ergueu-se de um salto com a Galliard nos braços e teria sucumbido a qualquer nível de Corrupção pela oportunidade de realizar-se nela... Mas a ruiva completou:

    - Eu deveria mesmo ficar sob as cobertas. O ferimento voltou a doer, depois de toda essa aventura imprudente pela neve.

    A Fianna sorriu e o Guerreiro de Gaia, confuso e frustrado, desviou os olhos dela, encarando o espaço vazio da cabana simples. Deitou a moça com extrema gentileza na cama, cobrindo-a de maneira metódica. Não voltou a olhar em seus olhos azuis, porque não sabia como reagiria à beleza que via neles. Tinha Luna cantando no sangue e queria desesperadamente beija-la, nua e quente, até que fossem um só. Relanceou os olhos para a garota e percebeu a expressão nublada que turvava o semblante bonito da Galliard. Sentiu o coração pesar até os pés por coloca-la em tal situação, fragilizada como estava, e virou-se para a porta, para sair, para afastar-se de Gwenhwyfar até que pudesse pensar com clareza novamente.

    - Não me deixe, Andrei. Por favor.

    O Ahroun se virou para fita-la e a garota sentiu o coração disparar no peito como uma alcateia pronta para a caçada. Por Gaia, ele era lindo. O peso do Tabu de Diarmuid ameaçou massacrar a ruiva, que percebeu lágrimas virem aos olhos. Disfarçou-as com um sorriso, usando de toda sua improvisação artística para que ele não notasse o quanto estava abalada. Puxou as cobertas mais para cima, até de baixo do queixo, e continuou:

    - Quem vai me proteger do meu coração doce quando você não estiver por perto?

    Era uma frase de Bedwyr. Andrei suavizou a postura, mas ainda a contemplava à distância, como se não pudesse decidir entre sair e ficar. Longos instantes se passaram e os raios de sol da manhã deslizaram entre os cabelos loiros do Garou, fazendo a boca da Fianna entreabrir-se levemente diante da figura poderosamente máscula do russo. Gwenhwyfar o desejava. Não como se deseja um belo Parente depois de algumas doses de scotch. Aquele era um desejo muito mais intenso, apaixonado e visceral. Uma vontade avassaladora de tornar concreto o amor que crescia dentro dela. O crime contra Gaia que crescia em seu coração e se enraizava em sua alma.

    - Eu sou a Herdeira de Diarmuid Ua Duibhne. Você sabe o que isso quer dizer?

    O Presas de Prata oscilou, trocando o peso de uma perna para a outra. Flexionou os ombros e caminhou em direção à mesa, onde se serviu de uma dose generosa de vodca em uma caneca.

    - Não. Mas provavelmente você é alguma espécie de princesa do seu povo. Perdida na neve com um vira-lata.

    - Isso quer dizer que carrego uma maldição ancestral das Fadas que pesa sobre minha linhagem desde a Era das Lendas.

    O tom duro da Galliard fez com que o homem se virasse para olha-la, imediatamente desviando os olhos para a caneca de bebida de novo. Ela tinha mesmo um jeito de fada, não tinha? Uma suavidade de movimentos, uma doçura na voz, algo de feérico nos traços delicados do rostinho bonito.

    - Diarmuid foi o maior de todos os generais de Fionn Mac Cumhaill, o Grande-Rei dos Fianna. Um lanceiro temível, de coração honrado e conduta justa. Conta a lenda que, em certa noite de chuva, Dannu, a Rainha das Fadas, dirigiu-se ao caern de Fionn disfarçada como uma anciã maltrapilha. Ela teria pedido abrigo contra a tempestade, e todos os presentes a teriam recusado, porém Diarmuid ofereceu sua própria comida e seu cobertor junto ao fogo para a senhora enlameada. Durante a madrugada, impressionada com a atitude e a beleza de Diarmuid, Dannu revelou-se a ele. E os dois fizeram amor à luz da lareira de Fionn.

    Os olhos de Gwenhwyfar desviaram-se para a lareira da cabana, onde a lenha ardia em estalos alegres.

    - Antes de partir, Dannu impôs sobre Diarmuid um geas. Seu rosto seria encantador e o tornaria irresistível para as mulheres, ao mesmo tempo em que inspiraria a confiança nos homens. E a boa-sorte e a fortuna o seguiriam, desde que ele se mantivesse fiel à promessa de não revelar que a senhora maltrapilha que abrigaram no caern naquela noite era Dannu, Rainha das Fadas. E, assim como ele não poderia revelar sua verdadeira forma, jamais deveria tornar pública a forma de seu amor verdadeiro. Ou a perdição o alcançaria.

    Os olhos azuis da ruiva buscaram por Andrei e deram com o Ahroun encarando-a, parado de pé com a caneca de vodca nas mãos. A tensão no maxilar denunciava que, de alguma forma, ele começava a ligar os pontos.

    - Diarmuid era o mais honrado e admirado dos homens de Fionn e por isso foi escolhido para buscar nas Terras Altas da Escócia a noiva do Ard Righ, Grainné, princesa entre os Parentes. Porém, na viagem de volta à Irlanda, os dois se apaixonaram. Verdadeira e perdidamente. E, apesar de Fionn ser o Grande Rei, e de ser um homem de beleza e qualidades, Grainné não suportava a ideia de casar-se com ele. E por três dias após chegar ao caern implorou para que Diarmuid a levasse embora. No primeiro dia, ele negou. No segundo dia, ele negou. Mas, na aurora do terceiro dia, Diarmuid fugiu da Irlanda com Grainné, rompendo o Voto imposto por Dannu e atraindo a força do Tabu que ceifaria sua vida.

    A Galliard olhou para as próprias mãos, torcendo-as nervosamente, como se contasse algo terrível a alguém com poderes para puni-la. E talvez fosse o caso, afinal.

    - Diarmuid e Grainné tiveram cinco filhos na Escócia, fundando o Clã Campbell. Meu clã. Fionn mandou hordas contra ele, mas Diarmuid foi o maior lanceiro que os Fianna já viram, em todas as eras. As lendas dizem que matou mais de três mil homens em um único dia. Eu, particularmente, acho que é um exagero. Mas Bedwyr, meu irmão mais velho, vive e morre pela verdade dessas palavras.

    Gwenhwyfar deu de ombros, com uma doçura atravessando os olhos ao mencionar o irmão. Andrei já tinha percebido, naqueles anos de convívio, que a ruiva era extremamente afeiçoada aos irmãos. E que os três pareciam se unir contra o frio temperamento tirânico da mãe.

    - Em certo momento, os homens de Fionn o convenceram a perdoar Diarmuid. E uma caçada foi organizada para selar a paz entre os righs. Porém, a quebra de um Tabu das Fadas sempre cobra seu preço. Diarmuid foi atingido pelas presas de um javali e caiu, mortalmente ferido. Por três vezes os Garou imploraram que Fionn curasse Diarmuid. E por três vezes ele negou. E assim Diarmuid morreu.

    Uma sombra obscureceu o semblante da Galliard e fez tremer a mão de Andrei, que largou a caneca de vodca sobre a mesa e caminhou, relutante, até o leito da Garou. Os olhos dela acompanharam o Ahroun, que sentou-se ao lado da Fianna na cama, tomando a mão dela entre as suas, com a preocupação estampada no rosto.

    - Você sabe qual é a probabilidade de nascerem três Garou de uma mesma mãe? É ínfima. Minha mãe é a terceira filha de uma ninhada de Fianna. Um milagre de Gaia. E pesou sobre ela a maldição de nossa linhagem, ao dar à luz à terceira filha de uma terceira filha. Destinada a carregar o Tabu de Diarmuid. Uma O’Dyna no Clã Campbell. Marcada com o geas das Fadas. Para nunca amar.

    Andrei apertou carinhosamente a mão dela entre as dele. Ela tinha uma mãozinha delicada e macia, enquanto as mãos dele eram calejadas e rústicas. Mas a ruiva sorriu para ele com meiguice e o Guerreiro soube que ela queria seu toque, queria ser abraçada por ele, queria a segurança de seus braços.

    - Isso não é justo, Gwen.

    - Não. Mas as coisas são como são. Melhor um vira-lata livre que uma princesa amaldiçoada, uh?

    A Fianna usava um tom brincalhão, mas ele estava próximo o suficiente para ver as lágrimas escondidas nos olhos dela. Sentiu o sangue se inflamar e uma determinação heroica percorrer cada fibra de seu ser.

    - Eu vou proteger você, Koshechka.

    A ruiva sorriu e aninhou-se contra Andrei, que a abraçou forte. A nevasca rugia do lado de fora, porém estavam seguros ali. Mas não sozinhos. O pecado contra Gaia poderia ser escondido, perdoado, relevado. Andrei poderia brigar por ela, guerrear contra seitas inteiras, partir a Litania em pedaços e honrar Aurora Serena com seu amor, entregando a ela sua vida. Mas não poderia arriscar a vida dela. Estreitou a garota com ternura junto ao peito e beijou seus cabelos vermelhos, notando o tremor que indicava que a Fianna chorava em seus braços.

    Encontraria um modo de livrar Gwenhwyfar do Tabu de Diarmuid. Nem que precisasse matar Dannu para isso.

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    Neve e Sangue Empty Re: Neve e Sangue

    Mensagem por Tellurian Seg Out 29, 2018 12:32 pm

    Trechos extraídos do conto "Neve e Sangue", esses, escritos por mim :3

    ==========================

    A lua cheia brilhava intensa no céu. A jovem moça tremia de desejo nos braços do forte e belo rapaz. Beijavam-se com lascívia, protegidos de olhos curiosos pelos troncos dos abetos. O outono russo não deve ser subestimado, mesmo no sul. Então, a quantidade de roupas representava um desafio ao casal. Mas um desafio que eles aparentemente estavam dispostos a enfrentar e superar.

    Os gemidos e sussurros da moça enchiam o silêncio do bosque iluminado apenas pela lua, conforme as mãos habilidosas do rapaz encontravam as brechas em suas roupas e lhe tocavam em zonas sensíveis ao prazer. Mas quando os lábios do rapaz alcançaram o pescoço da moça, ela experimentou o verdadeiro êxtase. Tão entretida que nem ao menos ouviu o uivo cortante de um lobo para a lua cheia. Mas o rapaz ouviu.

    Assustado, ele largou a moça, que zonza pelo prazer, se perguntava, confusa, o que estava acontecendo enquanto puxava o rapaz de volta para si, querendo retornar ao mundo de êxtase. O rapaz se sacudiu, se desvencilhando da faminta donzela enquanto olhava em volta assustado. –“Temos que ir embora”, ele disparou para a garota desapontada, que protestou e ofereceu recompensas de desejo para o rapaz mudar de idéia. –“agora!, ele gritou. Mas era tarde demais.

    O imenso lobo branco saiu de trás das árvores e ficou em pé sobre duas patas. Um monstro gigantesco uivou para a lua cheia e o olhou nos olhos. E ele viu a Fúria nos olhos da besta. A garota gritou de horror, esquecendo todo o êxtase que vivera antes conforme sua mente se esvaziava em Delírio. Ela e o rapaz começaram a correr em pânico para dentro do bosque, uma vez que a trilha para fora estava bloqueada pelo monstro branco.

    O rapaz era muito rápido. Deixou para trás em instantes a garota aterrorizada que corria desvairadamente. Ele correu o quanto suas pernas lhe permitiam, indo longe dentro do bosque sem saber que isso o condenava cada vez mais. Ele desviava de árvores e tropeçava em raízes. O chão fofo não era um bom lugar para suas habilidades de corrida. Ele decidiu se esconder. Encontrou um tronco caído cercado por um arbusto de espinhos e pulou atrás dele. Ficou em silêncio, e aguçou os ouvidos. Esperou, imóvel e silencioso, por quase vinte minutos. Não poderia ficar ali a noite inteira, precisava retornar a trilha e encontrar seu caminho para fora do bosque imediatamente. Ficou de pé e aguardou alguns segundos, olhando em volta. Nenhum som. Virou-se e começaria a correr em direção à trilha, mas foi atingido no nariz por um punho maciço que mais parecida feito de aço. Ouviu o próprio nariz quebrar quando se desequilibrou e caiu no chão. Socos nunca tinham grande efeito sobre ele, mas a força daquele punho era ridícula.

    -“Ora, vejam só o que temos aqui... Não sei se te parabenizo pela ousadia ou se te condeno pela burrice, cadáver.”- Dizia Andrei Ivanov, agora em sua forma natural. Os músculos retesavam pela exposição ao frio do Outono, mas Andrei já suportara pior no norte da Sibéria. Apenas a calça surrada lhe era “dedicada” e suportava as mudanças de forma. A lua cheia iluminou o corpo maciço do Garou, seminu e exposto ao vento noturno. Os cabelos castanhos curtos e desgrenhados pareciam negros à luz da lua e a barba por fazer falhava onde haviam as cicatrizes que todo guerreiro carrega. Sua respiração se condensava no frio e formava uma névoa espessa. Estava escuro, mas seus olhos verde-acinzentados faiscavam com a Fúria dos Ahroun.

    -“N... não me machuque! Eu... eu não sei do que você está falando!”- O rapaz se arrastou até alcançar o tronco de uma árvore, onde se virou e tentava se proteger inutilmente, segurando um graveto que apanhara no chão.

    -“Seria mais convincente se não fosse esse seu fedor de Wyrm, morto-vivo. Você vai me contar quantos vocês são e onde estão os outros.”- Andrei andava lentamente em direção ao adversário, que se arrastava para trás o quanto podia, tentando debilmente se afastar do Garou. –“Eu vou começar a arrancar pedaços, e quando você achar que eu devo parar, pode começar a falar.”- Andrei tinha o rosto impassível e os olhos ferozes. E quando voltou para a forma Crinos, o vampiro revelou suas presas e tentou fugir em vão, antes que Anoitecer Selvagem lhe arrancasse uma perna com sua poderosa mordida. O grito do vampiro preencheu a noite, mas ninguém lhe ouviria. Apenas as árvores e a Lua seriam testemunhas da sua agonia, no bosque que os moradores do vilarejo já haviam começado a chamar de assombrado.


    ***

    -“Você é um idiota, Andrei.”- a ruiva podia ter as feições frágeis e delicadas de uma bailarina, mas a Fúria que enchia aqueles olhos de safira não ficava atrás de nenhum grande guerreiro Garou.

    -“Ei, ei...”- Um aborrecido Andrei, sentado em uma cadeira na sua cabana como uma criança de castigo no primário, tentava se defender erguendo as mãos em pedido de paz inutilmente diante da bronca de uma raivosa Gwen.

    Aurora não estava mais tão Serena. Ela havia chegado há alguns dias para visitar o amigo, e o repreendia pela forma como lidara com o vampiro na noite anterior. Coubera à Gwen a tarefa de encontrar e acalmar a moça desesperada, que corria insana pelo bosque, perdida em Delírio e horror. Segundo o que a ruiva esbravejava na última meia hora, havia sido uma tarefa um tanto quanto complicada. Mas, a moça estava em casa agora, se recuperando do terrível trauma de ter sido atacada por um “urso”. Policiais estavam realizando buscas no bosque, tentando encontrar o corpo do namorado desaparecido. Gwen e os Fianna locais conseguiram que o grupo de busca consistisse de Parentes, para que estranhos não perambulassem pelas imediações do Caern local.

    -“A pobrezinha está aterrorizada! E por muito pouco não tivemos o Caern invadido por dezenas de policiais armados procurando o corpo do vampiro que você estraçalhou e espalhou pelo nosso bosque sagrado! Quem diabos você acha que arruma a bagunça que você apronta? Seu idiota! Imbecil sem consideração!”- Gwen poderia estar socando Andrei. O sangue escocês grita alto quando a temperança falha. Ela pontuava as frases em russo com uma série de palavras em um idioma que Andrei nem suspeitava qual era, mas que provavelmente eram insultos.

    -“Eu salvei a vida dela, sabe? Aquele sanguessuga estava com as presas cravadas na jugular da garota”- Andrei coçava a nuca, chateado. Que situação. Ele achava que seria elogiado, e não massacrado por uma anã de jardim enfurecida.

    -“Vampiros não costumam matar suas vítimas, seu burro! Será que você não sabe de nada?”- Gwen bateu com o pé no chão de forma adorável enquanto gritava com Andrei –“Ela ficaria bem depois de alguns dias. O que você deveria ter feito era observar em silêncio, e depois seguido o vampiro até o ninho! Agora eles vão se esconder e será bem mais difícil encontrá-los!”- Ela estava dolorosamente certa. Andrei resmungava cabisbaixo enquanto a ruiva lhe continuava o sermão. –“Estamos tentando construir uma imagem positiva do bosque para os moradores da região, para poder engajar a população a salvá-lo. Mas, graças às suas ações inconsequentes, os locais estão chamando o lugar de amaldiçoado! O que diabos é você? Algum lobisomem de filme de terror de terceira?”- Gwen parecia lutar contra a vontade de sacudir Andrei pela gola da camisa, e agitava o dedo acusador em riste para a face de um Andrei que encarava o chão.

    -“Sinto muito, Kocheshka. Não vai acontecer de novo.”- A voz de Andrei estava triste. E Gwen sempre respondia a isso com ternura. A ira desapareceu da face da ruiva, e deu lugar à preocupação. Ela cruzou os braços, e sua voz mudou do formato “irada” para o formato “conselheira”.

    -“Você precisa pensar mais antes de agir, Andrei. Você poderia ter caído em uma emboscada. O que eu faria se chegasse aqui e soubesse que você se machucou? Ou pior?”- ela puxou uma cadeira e sentou de frente para Andrei, baixando a cabeça para tentar olhar nos olhos do amigo.

    Andrei não respondeu. Ele não tinha a menor preocupação consigo mesmo. A perspectiva de que alguém talvez sentisse sua falta lhe era algo novo, e ele não sabia como reagir a isso. Ele apenas deu de ombros. Gwen pegou sua mão e chegou a abrir a boca pra falar algo, mas foi interrompida pelo sinal de emergência do rádio. Anunciavam para o próximo dia uma forte nevasca, possivelmente a maior dos últimos anos. As autoridades pediam que os moradores permanecessem calmos em suas casas, e que mantivessem um estoque de comida, lenha e água para alguns dias.

    -“Essa vai ser das grandes. Você vai ficar bem sozinho aqui, Andrei? Talvez você possa ficar conosco, eu posso pedir aos anciões.”- Serena estava olhando o rádio enquanto falava, mas ainda mantinha sua mão sobre a de Andrei, que lhe ofereceu um sorriso.

    -“Sou de Oymyakon, moça. Essa nevasca vai ser só um ventinho refrescante pra mim. Na verdade, eu tenho alguns planos.”- Disse, com voz de galhofeiro, fazendo seu melhor para impressionar a amiga. Porém, Gwen soltou sua mão e cruzou novamente os braços.

    -“Já vai fazer besteira de novo, não é? Eu vou te dedurar”.

    Andrei levou a mão até a face. Lá vamos nós de novo...

    ***
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