Trecho do conto
"Neve e Sangue" - desta vez, escrito por mim :3
Sobre a nevasca, Aurora Serena e Anoitecer Selvagem. Sobre o
Tabu de Diarmuid.
Ela tinha trançado Amor em suas mechas vermelhas. Parada diante da noite, com o vento frio sacudindo a neve ao seu redor como estrelas, Gwenhwyfar tremia enrolada no cobertor. E sorria. O ar gelado ardia seus pulmões e começava a deixar seus dedos dos pés insensíveis. A ruiva olhava a aurora boreal e riu baixinho, virando-se quando ouviu a voz atrás de si:
- Você não devia estar de pé nessa nevasca, Koshechka.
Ela adorava quando ele a chamava de gatinha. Ergueu o queixo para poder fitá-lo e viu o reflexo das luzes que dançavam no céu brilhar sobre Andrei. Em silêncio, estendeu os braços para o Ahroun, que a ergueu com ternura junto ao peito, carregando-a de volta para a cabana. Como uma noiva trêmula. A garota aninhou-se à curva do pescoço de Andrei e abraçou-o com força. Quando a porta se fechou atrás dos dois, ela sussurrou:
- Não me coloque no chão ainda...
Andrei sorriu e caminhou até uma cadeira próxima da lareira, sentando-se com Gwenhwyfar no colo. Ela estava ferida. Dois dias atrás tinha levado uma bala por ele. O Garou estreitou a ruiva nos braços, perdendo-se no cheiro feminino dela. A ideia de que a Galliard tinha arriscado a própria vida por ele ainda era recente, absurda e maravilhosa demais para que o Presas de Prata pudesse entender. Com suavidade, acariciou os cabelos-de-fogo da garota, encontrando as mechas que ela havia trançado. Dedilhou a trança intrincada e percebeu que Aurora Serena baixou os olhos, corando visivelmente.
- O que quer dizer? – ele perguntou, lembrando-se de quando conversaram sobre os nós celtas e seus muitos significados.
- Segredo. – o corpo dele se agitou com a proximidade dos lábios dela, aquela voz melodiosa e quente contrastando com a pele arrepiada. O cobertor que ela usava ao redor do corpo deslizou para o chão e Andrei lutou contra o desapontamento de perceber que a ruiva não estava nua.
Aurora Serena usava uma das blusas de lã de Andrei. E sorria de um jeito entre sensual e inocente, traçando a linha do maxilar tenso do Ahroun com a pontinha dos dedos frios e passando os pezinhos descalços pela panturrilha do homem.
- Você teve febre por dois dias. Não pode simplesmente sair pela nevasca para ver as luzes, Aurora Serena. É perigoso.
- Perigoso. Belo. E Selvagem.
Os olhos dos dois Garou se cruzaram e o silêncio cresceu entre eles, erguendo-se em sombras que se alongavam pela cabana isolada pela neve que devastava a tundra. Estavam sozinhos. Os dedos de Gwenhwyfar desceram pelo pescoço de Andrei até os ombros, e dali até o peito, onde o coração do guerreiro disparava. No mesmo ritmo descompassado e alucinado que o dela. Repousou a palma da mão inteira sobre o peitoral do Garou e olhou-o nos olhos. Aqueles olhos verdes, cinzentos e lindos, que queimavam com a luz do fogo da lareira. A mesma luz que refletia nos cabelos ruivos dela, lançando reflexos como labaredas ao redor dos dois.
- Gwen...
A garota se aninhou mais ao corpo másculo, provocando um estremecimento quando pressionou a curva do quadril contra o colo dele. Já tinha sentado nos joelhos dos irmãos por centenas de vezes, já tinha sido aninhada e embalada por Bedwyr e Gaherys em incontáveis oportunidades. Mas aquilo não era nada parecido. Deveria ser, é o que Litania dizia. Eram irmãos diante da Mãe e exatamente por isso eram proibidos de compartilhar intimidade que excedesse os carinhos fraternais. Porém, sozinhos na cabana em meio a um deserto de neve, Gwenhwyfar sentia profundamente que Andrei não era como seus irmãos. O Ahroun era um homem. O coração da Galliard perdeu-se no ritmo das batidas quando ele se inclinou sobre ela, farejando seu pescoço.
Andrei percebia o suspirar escondido na respiração da ruiva e deslizou as mãos pelas pernas arrepiadas da Garou, fascinado pela sensualidade que emanava dela. Por trás do perfume de camomila nos cabelos de Gwenhwyfar, por baixo da fragrância de shampoo e sabonete, o corpo da garota escondia um cheiro enlouquecedor. Um cheiro de desejo. Um cheiro de femme. Avassalador e letal, singrando os sentidos do Presas de Prata como garras afiadas que prendiam-se firmemente ao coração de Andrei. Ele tinha visto a tragédia abater-se sobre sua matilha por um sentimento como aquele. Tinha visto a Wyrm ganhar espaço na alma do melhor dos Garou por um amor como aquele. Contudo, estava completamente perdido de paixão pela Fianna. Sentiu o corpo feminino estremecer com a proximidade de sua respiração junto à curva do pescoço delicado e sorriu como um predador, movendo uma das mãos pela parte interna das coxas da ruiva, próximo aos joelhos.
- Eu deveria me afastar de você... Anoitecer Selvagem...
- Deveria, Aurora Serena.
Mas ela não se afastou e ele a puxou pra mais perto, provocando um gemidinho da garota, que não esperava o gesto brusco e passional dele. A Fianna moveu-se como se fosse ficar de pé, porém sem se erguer de verdade, o que apenas causou um esfregar de corpos que beirava os limites do perigo. Andrei fechou os olhos, respirando fundo. Por Gaia, ele perderia o controle! Alheia a isso, Gwenhwyfar entrelaçou os braços ao redor do pescoço do Garou e sussurrou ao ouvido do Ahroun com aquela voz deliciosa:
- Andrei, me leva pra cama?
Por um segundo, o homem flutuou num mar de hormônios que o deixou cego para todo o resto. Ergueu-se de um salto com a Galliard nos braços e teria sucumbido a qualquer nível de Corrupção pela oportunidade de realizar-se nela... Mas a ruiva completou:
- Eu deveria mesmo ficar sob as cobertas. O ferimento voltou a doer, depois de toda essa aventura imprudente pela neve.
A Fianna sorriu e o Guerreiro de Gaia, confuso e frustrado, desviou os olhos dela, encarando o espaço vazio da cabana simples. Deitou a moça com extrema gentileza na cama, cobrindo-a de maneira metódica. Não voltou a olhar em seus olhos azuis, porque não sabia como reagiria à beleza que via neles. Tinha Luna cantando no sangue e queria desesperadamente beija-la, nua e quente, até que fossem um só. Relanceou os olhos para a garota e percebeu a expressão nublada que turvava o semblante bonito da Galliard. Sentiu o coração pesar até os pés por coloca-la em tal situação, fragilizada como estava, e virou-se para a porta, para sair, para afastar-se de Gwenhwyfar até que pudesse pensar com clareza novamente.
- Não me deixe, Andrei. Por favor.
O Ahroun se virou para fita-la e a garota sentiu o coração disparar no peito como uma alcateia pronta para a caçada. Por Gaia, ele era lindo. O peso do Tabu de Diarmuid ameaçou massacrar a ruiva, que percebeu lágrimas virem aos olhos. Disfarçou-as com um sorriso, usando de toda sua improvisação artística para que ele não notasse o quanto estava abalada. Puxou as cobertas mais para cima, até de baixo do queixo, e continuou:
- Quem vai me proteger do meu coração doce quando você não estiver por perto?
Era uma frase de Bedwyr. Andrei suavizou a postura, mas ainda a contemplava à distância, como se não pudesse decidir entre sair e ficar. Longos instantes se passaram e os raios de sol da manhã deslizaram entre os cabelos loiros do Garou, fazendo a boca da Fianna entreabrir-se levemente diante da figura poderosamente máscula do russo. Gwenhwyfar o desejava. Não como se deseja um belo Parente depois de algumas doses de scotch. Aquele era um desejo muito mais intenso, apaixonado e visceral. Uma vontade avassaladora de tornar concreto o amor que crescia dentro dela. O crime contra Gaia que crescia em seu coração e se enraizava em sua alma.
- Eu sou a Herdeira de Diarmuid Ua Duibhne. Você sabe o que isso quer dizer?
O Presas de Prata oscilou, trocando o peso de uma perna para a outra. Flexionou os ombros e caminhou em direção à mesa, onde se serviu de uma dose generosa de vodca em uma caneca.
- Não. Mas provavelmente você é alguma espécie de princesa do seu povo. Perdida na neve com um vira-lata.
- Isso quer dizer que carrego uma maldição ancestral das Fadas que pesa sobre minha linhagem desde a Era das Lendas.
O tom duro da Galliard fez com que o homem se virasse para olha-la, imediatamente desviando os olhos para a caneca de bebida de novo. Ela tinha mesmo um jeito de fada, não tinha? Uma suavidade de movimentos, uma doçura na voz, algo de feérico nos traços delicados do rostinho bonito.
- Diarmuid foi o maior de todos os generais de Fionn Mac Cumhaill, o Grande-Rei dos Fianna. Um lanceiro temível, de coração honrado e conduta justa. Conta a lenda que, em certa noite de chuva, Dannu, a Rainha das Fadas, dirigiu-se ao caern de Fionn disfarçada como uma anciã maltrapilha. Ela teria pedido abrigo contra a tempestade, e todos os presentes a teriam recusado, porém Diarmuid ofereceu sua própria comida e seu cobertor junto ao fogo para a senhora enlameada. Durante a madrugada, impressionada com a atitude e a beleza de Diarmuid, Dannu revelou-se a ele. E os dois fizeram amor à luz da lareira de Fionn.
Os olhos de Gwenhwyfar desviaram-se para a lareira da cabana, onde a lenha ardia em estalos alegres.
- Antes de partir, Dannu impôs sobre Diarmuid um geas. Seu rosto seria encantador e o tornaria irresistível para as mulheres, ao mesmo tempo em que inspiraria a confiança nos homens. E a boa-sorte e a fortuna o seguiriam, desde que ele se mantivesse fiel à promessa de não revelar que a senhora maltrapilha que abrigaram no caern naquela noite era Dannu, Rainha das Fadas. E, assim como ele não poderia revelar sua verdadeira forma, jamais deveria tornar pública a forma de seu amor verdadeiro. Ou a perdição o alcançaria.
Os olhos azuis da ruiva buscaram por Andrei e deram com o Ahroun encarando-a, parado de pé com a caneca de vodca nas mãos. A tensão no maxilar denunciava que, de alguma forma, ele começava a ligar os pontos.
- Diarmuid era o mais honrado e admirado dos homens de Fionn e por isso foi escolhido para buscar nas Terras Altas da Escócia a noiva do Ard Righ, Grainné, princesa entre os Parentes. Porém, na viagem de volta à Irlanda, os dois se apaixonaram. Verdadeira e perdidamente. E, apesar de Fionn ser o Grande Rei, e de ser um homem de beleza e qualidades, Grainné não suportava a ideia de casar-se com ele. E por três dias após chegar ao caern implorou para que Diarmuid a levasse embora. No primeiro dia, ele negou. No segundo dia, ele negou. Mas, na aurora do terceiro dia, Diarmuid fugiu da Irlanda com Grainné, rompendo o Voto imposto por Dannu e atraindo a força do Tabu que ceifaria sua vida.
A Galliard olhou para as próprias mãos, torcendo-as nervosamente, como se contasse algo terrível a alguém com poderes para puni-la. E talvez fosse o caso, afinal.
- Diarmuid e Grainné tiveram cinco filhos na Escócia, fundando o Clã Campbell. Meu clã. Fionn mandou hordas contra ele, mas Diarmuid foi o maior lanceiro que os Fianna já viram, em todas as eras. As lendas dizem que matou mais de três mil homens em um único dia. Eu, particularmente, acho que é um exagero. Mas Bedwyr, meu irmão mais velho, vive e morre pela verdade dessas palavras.
Gwenhwyfar deu de ombros, com uma doçura atravessando os olhos ao mencionar o irmão. Andrei já tinha percebido, naqueles anos de convívio, que a ruiva era extremamente afeiçoada aos irmãos. E que os três pareciam se unir contra o frio temperamento tirânico da mãe.
- Em certo momento, os homens de Fionn o convenceram a perdoar Diarmuid. E uma caçada foi organizada para selar a paz entre os righs. Porém, a quebra de um Tabu das Fadas sempre cobra seu preço. Diarmuid foi atingido pelas presas de um javali e caiu, mortalmente ferido. Por três vezes os Garou imploraram que Fionn curasse Diarmuid. E por três vezes ele negou. E assim Diarmuid morreu.
Uma sombra obscureceu o semblante da Galliard e fez tremer a mão de Andrei, que largou a caneca de vodca sobre a mesa e caminhou, relutante, até o leito da Garou. Os olhos dela acompanharam o Ahroun, que sentou-se ao lado da Fianna na cama, tomando a mão dela entre as suas, com a preocupação estampada no rosto.
- Você sabe qual é a probabilidade de nascerem três Garou de uma mesma mãe? É ínfima. Minha mãe é a terceira filha de uma ninhada de Fianna. Um milagre de Gaia. E pesou sobre ela a maldição de nossa linhagem, ao dar à luz à terceira filha de uma terceira filha. Destinada a carregar o Tabu de Diarmuid. Uma O’Dyna no Clã Campbell. Marcada com o geas das Fadas. Para nunca amar.
Andrei apertou carinhosamente a mão dela entre as dele. Ela tinha uma mãozinha delicada e macia, enquanto as mãos dele eram calejadas e rústicas. Mas a ruiva sorriu para ele com meiguice e o Guerreiro soube que ela queria seu toque, queria ser abraçada por ele, queria a segurança de seus braços.
- Isso não é justo, Gwen.
- Não. Mas as coisas são como são. Melhor um vira-lata livre que uma princesa amaldiçoada, uh?
A Fianna usava um tom brincalhão, mas ele estava próximo o suficiente para ver as lágrimas escondidas nos olhos dela. Sentiu o sangue se inflamar e uma determinação heroica percorrer cada fibra de seu ser.
- Eu vou proteger você, Koshechka.
A ruiva sorriu e aninhou-se contra Andrei, que a abraçou forte. A nevasca rugia do lado de fora, porém estavam seguros ali. Mas não sozinhos. O pecado contra Gaia poderia ser escondido, perdoado, relevado. Andrei poderia brigar por ela, guerrear contra seitas inteiras, partir a Litania em pedaços e honrar Aurora Serena com seu amor, entregando a ela sua vida. Mas não poderia arriscar a vida dela. Estreitou a garota com ternura junto ao peito e beijou seus cabelos vermelhos, notando o tremor que indicava que a Fianna chorava em seus braços.
Encontraria um modo de livrar Gwenhwyfar do Tabu de Diarmuid. Nem que precisasse matar Dannu para isso.