Ele não trazia tão somente um rosto em meio àquela estranha solidão de gentes e informações. Sempre que vinha, trazia uma bolsa de sangue hospitalar e instruções para que aguardassem.
Ao menos descobriram que, caso quisessem, poderiam passar o resto dos dias alimentando-se daquela forma, sem precisar se envolver em nenhum tipo de violência e invasão contra alma alguma.
Isso é, se assim preferissem.
Mas então finalmente alguma mudança chegara. Um bater diferente na porta, apenas anúncio da voz bela e harmônica que se seguiria.
Para Ezra e Hugo, aquela era uma face nova e algo indefinível. Andrógina. Para Letícia, bastente mais familiar. “Olá”, dissera sempre que uma das portas das suítes individuais era aberta.
- Prazer. Pode me chamar de Radiance – complementara àqueles que não conhecera anteriormente.
“Ah, minha querida", dissera quando encontrara a jovem vampira. "Há tanto a ser dito... mas teremos muito tempo para conversar. Enviaram-me para que levasse vocês a um passeio. Vamos, vamos. Não se acanhem. Se tudo sair como o previsto, teremos ainda várias paradas”. E, com aquele convite – na verdade uma ordem polida – , deixaram o hotel numa limousine.
Um rapaz abrira a porta do veículo e era ele quem agora dirigia com o grupo, cortando Santa Dômina - apesar de estar vestindo de forma tão luxuosa que mal era possível entender como podia se mover.
Pelos vidros das janelas, as ruas pareciam o grande aquário de um restaurante, peixes ainda vivos esperando apenas que fosse indicado qual deveria ser servido.
Ou uma “televisão de cachorros”, com frangos girando apetitosamente.
Pensamentos desumanizantes.
A primeira parada fora próxima às margens do rio de Abril, numa curva após o Parque Central, no sentido de quem vai ao Centro Antigo, mas pela margem da Ilha do Mirante.
Bem próximo dali estava a beira-mar, onde Letícia havia deixado alguém importante à espera dela.
Alguém que, a aquela altura, provavelmente nem lembrava dela, vítima de uma “lavagem cerebral” feita pelo agora parceiro, Ezra.
Era um prédio simples, em frente a uma praça de bairro, com estilo passadista, de pilastras expostas. A parte de baixo era ocupada por um conjunto de lojas que, àquela hora, não reunia movimento alguém, já todas fechadas. Uma linha de janelas acima das portas parecia ser um andar em si, mas a companhia explicara que eram apenas a parte de cima dos estabelecimentos, “mezaninos”. Acima daquilo, apenas mais um andar, preenchido por escritórios igualmente fora do horário de funcionamento. Seriam provavelmente os únicos a circular no edifício.
Havia uma recepção no hall de entrada, mas já não havia mais ninguém ali. Curiosamente, nem vigia via-se por lá. Ao abrir a vidraça protegida por uma grade de correr, Radiance falara do sistema de alarmes, passando a senha.
A segurança lá era toda automatizada, sem a necessidade de pessoas bisbilhotando.
O único inconveniente eram as câmeras, mas... de qualquer forma, era interessante não atrair atenção ao próprio lar, fazendo coisas como arrastar um corpo ou coisa parecida.
Não havia elevador, apenas dois lances de escadas. A porta que procuravam ficava a um canto, primeira do corredor: 101.
O interior não era o que estavam esperando. Ao invés de uma sala comercial, o lugar havia sido convertido num apartamento.
- Espero que tenham gostado da decoração. Uma estagiária do nosso escritório que fez. Ela tem... bem... senso de humor.
O chão era de mármore preto e o concreto das paredes fora revestido de madeira decorativa escura. A iluminação era “direcional”, criando áreas bem iluminadas e outras de certa penumbra – sombras mais aconchegantes que agourentas.
Em realidade, a responsável parecera tentar “revisitar” a ideia de um “covil sinistro”: era na verdade bastante “chique” e o tom fechado dava mais um sentido de elegância e modernidade às madeiras que qualquer outra coisa. Havia ainda quadros bastante “urbanos”, complementando o estranhamento. “Também compramos a sala ao lado, mas ainda não foi decidido o que será feito dela”.
Era um espaço simples e amplo, daqueles sem paredes dividindo as áreas: uma pequena entrada, a cozinha, uma sala de TV, uma “de estar” e uma “de jantar”.
- Ao fundo, à esquerda, fica o banheiro e uma pequena biblioteca. Vão notar que ela veio equipada com um computador, mas jamais pesquisem nada sobre vampiros. E jamais toquem nesse assunto ao telefone. Protocolo de segurança.
Foi então que finalmente expusera o sentido de tudo aquilo. O conselho havia decidido que, daquele momento em diante, aquela seria a base do grupo. Deveriam a partir de agora dividir o mesmo espaço. “Ah! Não posso me esquecer da parte mais importante”.
O lugar não possuía quartos, uma vez que a estrutura original não fora tão modificada assim. Ao menos até certo ponto. Na biblioteca, havia uma estante falsa. Abrindo-a, puderam encarar uma grade de ferro, quase como uma cela.
No interior, embutidos nas paredes, uma fileira de grandes prateleiras.
- Caixões. Vejam bem, é mais uma questão de segurança mesmo. Uma cama é algo vulnerável. E esses possuem tranca por dentro.