Voavam a baixa altitude no interior esmerado do caro veículo conduzido por Raphaello, obediente lacaio de Radiance.
- Não sei o que faria sem meus carniçais... Há tanta atribulação nessa vida imortal que eu poderia morrer de trabalhar.
A “piada” era desimportante diante do termo que poucos conheciam, conceito bizarro ao qual logo foram introduzidos: havia pessoas mantidas num estado não completamente humano, mas ainda não vampírico, “meio-criaturas” deliberadamente alimentadas com sangue amaldiçoado. Por um lado, ganhavam deles certas habilidades e privilégios, mas em troca tornando-se escravos das vontades de monstruosos mestres.
Aquele era um estado reversível, ou algumas vezes a porta de entrada para a transformação total, mas era um primeiro indicativo de que havia mais coisas escondidas pela noite – ou pelo dia, uma vez que aqueles “ghouls”, como alguns preferiam chamar, eram capazes de andar livremente sob o sol, cães adestrados realizando tarefas aos “donos”.
Chegaram à entrada de um prédio abandonado, uma fábrica fechada e cercada por tapumes. A construção era antiga, apesar de algumas adições parecerem mais recentes, mesmo que já desgastadas.
- Vocês vão me desculpar, meus anjos, mas não tenho obrigação de entrar num lugar deplorável desses... – realmente, aquele gosto requintado, apesar de “alternativo”, cabia mais às passarelas de moda que a um velho depósito. – Devem estar esperando por vocês lá dentro.
E assim era. Tão logo entraram, perceberam uma sombra meio ocultada, difícil de percebê-la completamente. Parecia vestir uma máscara ou algo do tipo, ocultando-lhe a face.
- Venham – disse, sem se deter muito em apresentações ou formalidades do tipo.
Atravessaram uma porta de ferro e desceram alguns lances de escadas. Havia lá um odor bolorento de ar parado e úmido, terminando num largo túnel ladeado por luminárias industriais e cortado por um trilho que se perdia de vista.
- Não cacem aqui – declarou – Esse é território Nosferatu.
Aquele aviso não era novidade para algumas das partes ali, mas bastava escutá-lo uma única vez para saber como agir e o que não fazer. Ainda mais depois de toda a confusão na reunião sobre a vida de Letícia. Eram novatos, sendo imprescindível respeitarem regras.
Sobrava, entretanto, uma dúvida: onde era “aqui”? Não era necessária muita criatividade para deduzir que tratava-se do metrô.
Àquela altura, porém, o mais estranho vinha doutra parte. Fosse lá quem fosse aquela figura, às vezes era preciso se concentrar pra saber se ela estava à frente ou às costas do grupo, como se a imagem dela vacilasse aqui e ali, fugindo do campo de visão pelos cantos do olho. Impressão reforçada pela baixa luminosidade.
Finalmente, terminaram no que parecia uma estação abandonada e selada. Era o típico cenário de “lendas urbanas”, áreas da cidade faz muito tempo largadas de mão, substituídas por versões mais funcionais. Havia áreas lá alagadas e outras partes completamente cimentadas, como se para sustentar o teto contra possíveis desabamentos. Talvez estivessem próximos aos rios, o que explicaria o motivo da infiltração e desativação.
A decoração lembrava um cenário de terror duvidoso: objetos luxuosos, mas em condição de precariedade, misturados a vigas expostas e outros resquícios de uma “modernidade perdida”. Em meio àquilo, uma voz atraiu a atenção a um canto que parecera vazio até então.
- Sou Andros Valinos. Vocês trabalham para mim agora.