A fome devia ser enorme pra justificar aquele cachorro coberto de sarna lambendo o sangue do chão, ignorando o estrondo do tiro, os gemidos de agonia vindos do rapaz esquelético e os berros do senhor em frente ao carro com a porta da frente aberta: “... pra aprender a respeitar os outros, vagabundo!”. Uma música sobre “dinheiro” e “piranhas” escapava o veículo, trilha sonora ao vivo.
Os pneus carecas da moto mal tinham parado de girar quando os primeiros celulares apareceram no cruzamento, aparentemente mais interessados em registrar a situação do que em ligar para uma ambulância ou qualquer outra autoridade.
Por trás do capacete de tubarão, o garoto chorava e dizia coisas sem sentido, gritando pela mãe. O segundo disparo, finalmente, afugentou o cão de focinho empapado daquele mel avermelhado.
Projéteis cortavam o nevoeiro das bombas de gás quando, completado o prazo judicial para o fim da greve, a Guarda Nacional entrava em conflito com a PM na tentativa de refrear o movimento iniciado após as polêmicas declarações do governador sobre “vagabundos que só querem saber de dinheiro”. O exército também movia-se nas ruas nessas 44h de paralização, mas, sem surpresa, as prioridades eram a Ilha e a Zona Norte. Uma policial guiava um colega de farda que tinha o rosto ensanguentado e a mão em um dos olhos.
Na quadra universitária, uma briga era apartada com dificuldade. Eram 20h e alguns poucos grupos, ainda com mochilas a tiracolo, tentavam aproveitar o início da calourada. Apesar de a expectativa de público naquelas condições ser baixa, esperava-se que ao menos quem vivia nas proximidades começasse a chegar em uma, uma hora e meia. Ao menos “se” a festa continuasse: a confusão era justamente porque uma frente de estudantes gritava, com alguns documentos em mãos, que o Centro Acadêmico era um antro de drogas e exclusão. “Privilégio!?”, gritava o rapaz do abaixo-assinado, vestindo uma camisa da seleção e um boné com os dizeres “respeito” sobre a bandeira nacional.
Na TV, a âncora atualizava o status do conflito entre agentes da lei para, em seguida, entrarem imagens amadoras sobre consequências da falta de policiamento: de uma loja saqueada para uma briga num bar para um ônibus incendiado para um rapaz linchado na frente de um shopping. As matérias seguintes – a denúncia sobre o recebimento de uma bicicleta como propina que recaia em um senador de oposição e uma sequência de especialistas falando sobre as propriedades da banana – criavam uma narrativa aparentemente desconexa. “Tudo ladrão”, reclamava o vigia do museu.
- Mais alguém vem? – havia perguntado de subido à diretora do setor de documentação enquanto ela passava mais cedo, disfarçando algo no telefone.
- Não sei. – respondeu – Era pra todo mundo participar desse corujão, mas essa história de greve... .
- A população que leva a pior... – começou ele, mas a senhora apenas continuou o caminho, mais preocupada com o prazo para o envio das papeladas do que com a opinião política daquele “subalterno”.
Num cruzamento qualquer, após um assassinato qualquer, alguém tocava o rastro do ferimento, difícil distinguir se do corpo levado ou do que parecia um animal, agora esbagaçado pelo trânsito. Uma foto enviada. Passos que se distanciavam.
O vento agitava as árvores naquela noite, enquanto algumas nuvens, tapando a lua nova, jogavam um pano sobre a feiura daquela cidade.
***
NOTA IMPORTANTE: a aventura em questão foi iniciada em outro fórum, porém será continuada aqui. Para acompanhar o desdobramento até o momento, ver http://santadomina.forumeiros.com/t14-daniela-fernandes
Os pneus carecas da moto mal tinham parado de girar quando os primeiros celulares apareceram no cruzamento, aparentemente mais interessados em registrar a situação do que em ligar para uma ambulância ou qualquer outra autoridade.
Por trás do capacete de tubarão, o garoto chorava e dizia coisas sem sentido, gritando pela mãe. O segundo disparo, finalmente, afugentou o cão de focinho empapado daquele mel avermelhado.
Projéteis cortavam o nevoeiro das bombas de gás quando, completado o prazo judicial para o fim da greve, a Guarda Nacional entrava em conflito com a PM na tentativa de refrear o movimento iniciado após as polêmicas declarações do governador sobre “vagabundos que só querem saber de dinheiro”. O exército também movia-se nas ruas nessas 44h de paralização, mas, sem surpresa, as prioridades eram a Ilha e a Zona Norte. Uma policial guiava um colega de farda que tinha o rosto ensanguentado e a mão em um dos olhos.
Na quadra universitária, uma briga era apartada com dificuldade. Eram 20h e alguns poucos grupos, ainda com mochilas a tiracolo, tentavam aproveitar o início da calourada. Apesar de a expectativa de público naquelas condições ser baixa, esperava-se que ao menos quem vivia nas proximidades começasse a chegar em uma, uma hora e meia. Ao menos “se” a festa continuasse: a confusão era justamente porque uma frente de estudantes gritava, com alguns documentos em mãos, que o Centro Acadêmico era um antro de drogas e exclusão. “Privilégio!?”, gritava o rapaz do abaixo-assinado, vestindo uma camisa da seleção e um boné com os dizeres “respeito” sobre a bandeira nacional.
Na TV, a âncora atualizava o status do conflito entre agentes da lei para, em seguida, entrarem imagens amadoras sobre consequências da falta de policiamento: de uma loja saqueada para uma briga num bar para um ônibus incendiado para um rapaz linchado na frente de um shopping. As matérias seguintes – a denúncia sobre o recebimento de uma bicicleta como propina que recaia em um senador de oposição e uma sequência de especialistas falando sobre as propriedades da banana – criavam uma narrativa aparentemente desconexa. “Tudo ladrão”, reclamava o vigia do museu.
- Mais alguém vem? – havia perguntado de subido à diretora do setor de documentação enquanto ela passava mais cedo, disfarçando algo no telefone.
- Não sei. – respondeu – Era pra todo mundo participar desse corujão, mas essa história de greve... .
- A população que leva a pior... – começou ele, mas a senhora apenas continuou o caminho, mais preocupada com o prazo para o envio das papeladas do que com a opinião política daquele “subalterno”.
Num cruzamento qualquer, após um assassinato qualquer, alguém tocava o rastro do ferimento, difícil distinguir se do corpo levado ou do que parecia um animal, agora esbagaçado pelo trânsito. Uma foto enviada. Passos que se distanciavam.
O vento agitava as árvores naquela noite, enquanto algumas nuvens, tapando a lua nova, jogavam um pano sobre a feiura daquela cidade.
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NOTA IMPORTANTE: a aventura em questão foi iniciada em outro fórum, porém será continuada aqui. Para acompanhar o desdobramento até o momento, ver http://santadomina.forumeiros.com/t14-daniela-fernandes