Não que existisse algum demérito noutro horário, mas gente como ele não passava a noite inteira no mesmo lugar e aquela boate – que vinha flutuando até a baía – era o destino de quem importava.
Mais cedo, coagira o piloto do helicóptero a deixa-lo no comando por alguns minutos, o que não afetara o leve voo entre a casa da ilha Elizabeta e o continente.
A irmã, no banco de carona, exibia às amigas a arma que ganhara, apesar de não lembrar a ocasião. Pedido de desculpas, lembrança de viagem ou mimo da avó? Fosse o que fosse, era uma arma pesada, o que estranhara as outras. “Prefiro assim. Se fosse só pra matar, mandava o guarda-costas fazer”.
Não que alguém ali soubesse o real peso de tirar uma vida.
Linha Azul do Metrô: era o mais longo dos trajetos, atravessando não só a zona Leste, mas também a Norte da cidade. Não era comum aquela quantidade de gente tão tarde, mas tal era justamente a proposta da “Incomum”, festa que, depois de ocupar túneis, galpões abandonados, praças e outros sítios “alternativos”, experimentava uma edição nos vagões finais do transporte subterrâneo.
Uma ou outra pessoa tentando voltar para casa parecia incomodada com a invasão. Uma ou outra pessoa em situação de rua, usando o veículo como local de descanso, parecia perturbada pela intromissão.
A falta de autorização de qualquer órgão responsável – ou mesmo da polícia – não parecia ser incômodo, uma vez que pretendiam simplesmente curtir até quando fosse possível, indo e voltando entre as pontas do túnel. “Cara, vai devagar que só tenho essa!”, disse um rapaz de skate a tiracolo, lidando com uma preocupação bastante prática, dada a falta de um “bar” disponível.
Após um “desculpem qualquer coisa”, a pequena banda convidada começava a improvisar uma apresentação naquelas condições precárias, animando uma das seções que sacudiam no balanço suave do trajeto; noutra, um grande som portátil, montado na garupa duma bicicleta customizada, era a voz à setlist de um DJ estiloso; havia ainda quem, de maneira mais espalhada, tocasse um ou outro instrumento, cantando qualquer canção famosa noutra parte do corpo da grande serpente.
A diversão juvenil era acompanhada uma drag queen em negro, maquiagem e barba escuras, bebendo e beijando do que lhe fosse oferecido. A postura dela encarnava o clima descompromissado do momento. Havia algo de profundamente hipnótico naquela criatura enigmática, algo punk, algo gótica.
Cidade Baixa: o GastrôBoteco era um ambiente cuidadosamente calculado para parecer uma espelunca de beira de esquina – tirando a parte do ar-condicionado e do sistema de som de alta qualidade.
No balcão, dois rapazes de barbas escovadas e blusas quadriculadas discutiam o aroma da straight lambic artesanal que tomavam. Havia dúvida se ela era a melhor harmonização com a linguiça especial apimentada, com recheio de queijo, que comiam num pratinho de papel reciclado.
Era a “RetroNight” e o primeiro cover dos anos 1980 tirava os equipamentos do palco para cedê-lo à próxima atração.
Após a liberação do uso recreativo de drogas, a procura por blends especiais pela classe média aumentara enormemente, de forma que provavelmente havia algum dinheiro que valesse a pena em caixa.
Ou assim pensavam os três assaltantes que aguardavam para iniciar uma ação lá.
Centro de Artes Angelique Signourete: Radiance era uma figura bela e ímpar. Hipnótica. Rosto andrógino e curvas fartas, era difícil definir se aqueles seios eram frutos de estrogênio do próprio corpo ou apenas acúmulo gorduroso. Executava uma performance simples, mas tocantemente eficiente – alinhando, num abraço, a própria respiração à de pessoas pegas aleatoriamente, conduzia-as a uma profusão de lágrimas catárticas.
Isto é, antes da vernissage.
Curadores, artistas, marchands e personalidades, visões tão exóticas e diversificadas quanto a vida num colorido coral, bebiam champagne verdadeiro de taças de cristal quanto comentavam as obras expostas – soubessem ou não do que falavam.
Num dos banheiros, um jovem garçom chorava compulsivamente após o tapa dum supervisor. Não que isso atrapalhasse a animada conversa entre dois distintos cavalheiros que usavam o mictório.
Centro Antigo: o “F1” era literalmente uma borracharia durante o dia. Findo o expediente, era utilizado para uma festa bastante underground. O ambiente pouco propício – peças de carro nas paredes e chão bastante sujo de graça – convidava à ocupação não só o interior do estabelecimento, mas da rua que dava para a parte inferior um viaduto.
No precário palco, alternava-se entre um sarau de poesias, música ao vivo e vídeo-projeções musicadas.
Já cheio, pretendia mais animação caso a nômade “Incomum” não durasse tanto. A bem dizer, como um point conhecido, não era de se espantar se artistas mais in chegassem lá após qualquer coisa que estivesse acontecendo no “Angelique” ou mesmo se a Cidade Baixa não estivesse boa para o GastrôBoteco. “Des-selecionado” era um adjetivo comum ao F1, misturando gente muito, muito – a maioria ali vestia-se para afrontar, sendo fácil achar alguém de maquiagem e produção pesadíssima ao lado de alguém literalmente de pijamas. Ou alguém de gosto bastante despudorado ao lado de uma vitrine coberta dalguma imitação arrojada de alta costura – ou mesmo alguém da alta costura sob disfarce, tomando notas para copiar a “moda da rua”.
Não era um lugar para pessoas fracas. Vizinhança perigosa, não era recomendado afastar-se da multidão. Ao menos se você não fosse “da área”.