Santa Dômina. 2019 – ou “quase 2020” nalgumas mentes mais dinâmicas.
O futuro era já.
3,5 milhões de almas num assentamento denso, superpopuloso e dividido entre um universo paralelo artisticamente desenhado, uma dimensão descolada da maioria dos problemas comuns – invadida apenas pela violência fora de controle –, tendo como chave única dos próprios portais o dinheiro. E o resto.
O que sobrava, apartado disso, o “mundo real”: favelas verticais e horizontais – se é que pode se considerar os blocos de precários conjuntos habitacionais como algo “deitado” – nos quais a disputa tanto pelo espaço individual quanto pela proximidade dos empregos sempre cobra um caro preço.
Quanto mais oferta, menos o valor da vida no mercado.
A transição entre as margens urgindo como um sonho comum para muita gente, um pesadelo de luta diária para boa parte, ou simplesmente um desejo abandonado para outro quinhão, “o inalcançável” para quem assim o conseguia ver. E a terrível obsessão para quem se deixa cegar pela sedução de um brilho mortal.
Bairro das Luzes. A “Meca Fashion” cuja avenida principal acumulava grifes internacionais de haute couture, salões com filas de espera de meses e as clínicas das celebridades, além de seletas agências de modelo das quais, prometia-se, os próximos grandes nomes da semana surgiriam. Um paraíso para se passear, almejar ou – apenas para um pequeno grupo – realmente consumir.
O Sol já havia se escondido, mas aquela era justamente a hora favorita, quando a iluminação artificial tornava o lugar simplesmente mágico.
Sob a arquitetura vanguardista da fachada de um centro de convenções, atendentes distribuíam amostras de champanhe – obviamente legitima – a quem tivesse ingresso para os desfiles da noite, uma verdadeira parada de ideias impressionantes na estranheza e ousadia.
Enquanto jornalistas, especialistas, estudantes, artistas, gente do meio ou simplesmente curiosa juntava-se à porta, seja para entrar, seja para observar aquele inusitado movimento, uma recepcionista cansada segurava o segurar o choro ao sentir o salto destruindo dela os pés e a coluna. Já estava de pé e sorrindo fazia mais de 10 horas.
Não que o retorno financeiro realmente tanto a pena.
Garoava leve naquela noite.
Nos bastidores daquele templo de Vênus, estresse e egos desenhavam uma batalha épica onde beleza equilibrava a sujeira em pesos igualmente proporcionais. “Que DROGA de cabelo é esse?”, gritava um estilista diante do que não parecia ser problema algum. Na falta de ajustes finais enquanto o horário de entrada na passarela se aproximava, berros eram a comunicação mais corriqueira.
Fora dali, no canto de uma popular megastore de k-beauty – uma nada barata, mas definitivamente mais acessível que o resto –, uma gerente discursava a um grupo de trainees sobre a fama de aquele ser “o” lugar onde se vai para encontrar todas as melhores novidades do mercado.
- Nossa biblioteca é enorme e, caso não encontrem algo no nosso sistema, insistam que vão falar com o setor de encomendas para ver a viabilidade de uma solicitação. O trabalho de vocês não é vender, é fazer com que ninguém saia daqui reclamando.
Ela parecia dura e decidida. E provavelmente não admitiria que a meta daquele turno não fosse batida.
Virando a esquina, entretanto, já era possível perceber a mudança de clima. Em estabelecimentos menores, casas ultraespecializadas dominavam com produtos para todos os gostos e preços. Um grupo de adolescentes harajuku observava acessórios inspirados numa famosa franquia de animes que misturava robôs gigantes e problemas de saúde mental. Faziam barulho e chamavam a atenção de turistas visitando a localidade.
Aquele lugar era uma espécie de Disneylândia onde fantasias loucas pareciam possíveis de serem realizadas, onde se podia parecer e ser o que se quisesse.
Por baixo de toda aquela maquiagem, entretanto, o perigo rondava risonho, escolhendo a dedo a próxima vítima.