― Aldous Huxley, Brave New World
Mesmo do outro lado do mundo, existem coisas que não mudam.
O som da multidão no mercado podia ser ensurdecedor. Mercadores gritavam de suas barracas, tentando atrair a freguesia anunciando seus produtos. O jovem caminhava com sua caderneta aberta, tomando notas das curiosidades que observava com os olhos muito azuis. O significado daquelas palavras e letras ainda era muito estranho aos ouvidos de Clement. Os ouvidos treinados do músico e sua mente sagaz haviam aprendido a discernir algumas palavras e variações, mas a estrutura daquele idioma ainda lhe era um delicioso mistério a ser desvendado. A população da ilha de Dejima era a mais cosmopolita da distante, obscura e fechada nação Japonesa. As pessoas da ilha estavam acostumadas à presença de Europeus, que viviam na ilha há séculos, desde a chegada dos Portugueses em 1641.
A Ilha era um símbolo do tratamento dado aos estrangeiros. Praticamente um zoológico para animais exóticos. Quando os europeus chegaram, séculos atrás, o Xogum da época ordenou a construção de uma ilha artificial para abrigar os estrangeiros, e proibiu a circulação deles em qualquer outra parte do território japonês. Poucos comerciantes japoneses recebiam a autorização xogunal para realizar comércio com os europeus residentes em Dejima, e todos recebiam instruções bem estritas de como se comunicar e se portar diante dos Gaijin, seja lá o que quer que isso significasse. Após o Tratado de Kanagawa, feito pelos americanos em 1854, os estrangeiros obtiveram permissão para trafegar por outras áreas do território Japonês. Porém, haviam rumores sobre coisas terríveis que aconteciam com os Gaijin que se aventuravam muito para o interior das ilhas japonesas.
Clement havia ouvido rumores de coisas maravilhosas em cidades como Kyoto, Nagasaki ou Edo. Castelos monumentais, com uma arquitetura única, diferente de tudo o que já fora visto. Templos magníficos em honra a raposas, guaxinins e outros espíritos naturais, estátuas de ouro que retratavam deuses estranhos de rostos enfurecidos, lutas cerimonais impressionantes entre homens enormes... e a música. A lindíssima música oriental, que empregava instrumentos únicos, tocando notas desnaturadas em escalas estranhas e belas, com uma harmonia que os treinados ouvidos de Clement jamais haviam ouvido antes.
Contudo, histórias sobre mortes horrendas feitas por retalhadores e outros radicais xenófobos, sacrifícios rituais, desmembramentos, mutilações, linchamentos... histórias de terror macabras, contadas pelos marujos entediados em botequins à beira do cais. O jovem inglês tinha dúvidas se deveria levar a sério os exageros mórbidos dos velhos lobos do mar, mas ao menos sabia que tais rumores eram mais do que suficiente para evitar que o desejo de se aventurar nas proibidas terras ambientais se enraizasse na alma de seu enfezado capitão e da tripulação, inclusive da comitiva que o acompanhava.
O músico pousou a sua xícara no pires e suspirou com certa frustração. Após pouco mais de uma hora de caminhada, já havia percorrido toda a extensão da ilha, e sentara-se em um botequim a beira do cais para uma breve xícara de chá. A brisa do mar agitou seus cabelos loiros despenteados ao mesmo tempo em que fez ranger as embarcações de madeira ancoradas no cais. Ele observou o movimento dos estivadores que carregavam e descarregavam as mais variadas mercadorias dos navios com tédio. Havia, nas casas de chá, apresentações de música e dança oriental, executadas por moças muito maquiadas vestidas em quimonos de cores extravagantes, mas tudo lhe parecia artificial.
Fora para isso que suportara tal odisseia? Municiara-se de todo o espírito aventureiro que pudera reunir, cruzando o mundo a bordo de um navio apenas para ficar trancafiado em uma minúscula ilha, ouvindo apenas histórias das maravilhas –e horrores- que haviam do outro lado do estreito canal? Podia até mesmo observar as casas e o cais que haviam do outro lado do canal. Por deus, estava em um maldito botequim português. Para isso não precisaria ter suportado meses de viagem através de águas tão perigosas.
-“A cadeira está ocupada?”- perguntou-lhe a conhecida voz rouca de Richard, o imediato do navio. Richard era um homem de meia-idade, com cabelos e barba negra que começavam a ganhar tonalidades cada vez mais vívidas de cinza. Tinha os longos cabelos presos em um rabo-de-cavalo muito comum entre oficiais da marinha britânica. O rosto muito quadrado, com o estranhíssimo nariz partido tornavam-no um homem notoriamente feio, mas a camaradagem e o conhecido gosto do velho lobo do mar o faziam muito querido por toda a tripulação.
-“Você parece entediado, Clement.”- disse-lhe com a voz que parecia rasgar-lhe a garganta, enquanto pedia ao garçom que lhe servissem uma garrafa de aguardente.