A jovem maiko andava com cuidado pelas pedras arredondadas do riacho. Havia descalçado suas sandálias para que tivesse mais firmeza, mas as pedras estavam geladas. Ela deu pulinhos pra tirar rapidamente os pés da água gelada e riu de si mesma, brincando no córrego como uma criança.
Ajoelhou-se ao lado de um fino amontoado de pedras que delimitavam a sua pequena horta de ervas. Tivera sorte em encontrá-las quando chegara na montanha, e agora as cultivava com carinho. Elas eram importantes para os emplastros que a velha senhora havia lhe ensinado a fazer. Havia algumas ervas daninhas brotando entre as folhas verdes das ervas curativas, e Suzuka as removeu com vigor. Uma erva daninha em especial tinha uma bela flor roxa de aspecto aveludado, que fez a jovem moça sentir pena de arrancá-la. A pobre flor tentava apenas sobreviver em meio a natureza difícil, e talvez a sua beleza lhe servisse como ferramenta de sobrevivência. Comovendo jardineiras de coração mole para que não as arrancasse, por exemplo. Suzu riu um pouco mais de si mesma antes de puxar para fora da terra as raízes da bela erva daninha. Limpou-a, e decidiu honrar seu sacrifício usando-a em um ikebana² para enfeitar sua cabana. Tinha anos desde a ultima vez que praticara, mas talvez o espírito da planta ficasse feliz.
Lembrou-se de quando chegaram até a cabana. Ela e Gensai haviam deixado pra trás o caos do incêndio, misturando-se à multidão que se aglomerava para deter o incêndio e aproveitando o anonimato garantido pela aglomeração de pessoas para desaparecer sem serem notados.
Gensai tinha um cavalo a postos, próximo. Ajudou Suzuka a subir e montar o animal de forma confortável, sentando-se lateralmente sobre a sela. A Geisha corou quando Gensai montou o cavalo logo atrás dela, e sentiu o corpo do samurai próximo ao seu, e os braços fortes com os quais fantasiara ao seu redor, segurando as rédeas. O coração da moça estava acelerado, mas ela percebeu que Gensai estava ofegante. O suor dele estava gelado. A geisha interpelou o samurai, perguntando-se se tudo estava bem, e ele apenas sorriu e disse que tudo ficaria bem assim que saíssem da cidade.
Suzuka perdeu as contas de quantas horas cavalgaram. Saíram da cidade pela Nakasendo³, mas após pouco tempo saíram da estrada principal e cavalgaram por pequenas vias não pavimentadas, rumo as montanhas. As costas da moça estavam duras e suas pernas doíam, mas Gensai não permitiu que parassem até alcançarem um local seguro.
O céu já perdia sua matiz negra e se confundia com o azul escuro da aurora que viria em breve quando alcançaram a cabana na montanha. Era um local bastante bonito, embora simples e rústico. Ficava às margens de um córrego, cuja nascente ficava na parede rochosa da montanha à poucos metros da casa. Tinha o telhado espesso de palha de arroz, e as paredes e piso pareciam bastante sólidas. A cabana tinha formato retangular e possuía apenas um cômodo, que usavam pra tudo. Dormir, cozinhar e tomar banho. De certa forma, era até espaçoso, mesmo que fosse um cômodo único.
Quando alcançaram o lugar. O corpo de Gensai pesou sobre Suzuka. A moça sentiu o coração acelerar, acreditando que o samurai a havia abraçado, mas logo notou que o rapaz ardia em febre. Ele havia perdido a consciência assim que chegaram a um lugar seguro.
O som do shishi-odoshi chamou Suzuka de volta à realidade. Já haviam passado quatro dias desde que chegaram, e Gensai ainda não havia acordado. Estava deitado em seu futon, num canto da cabana. A febre estava sob controle, mas o Samurai parecia ter perdido sangue demais. Por sorte, não estavam distante de uma vila nas montanhas, onde a jovem maiko conseguiu ajuda dos aldeões. Tivera o cuidado de ocultar as armas de Gensai antes da velha curandeira o visitar. A velha senhora também ensinou Suzuka como limpar as feridas, trocar as bandagens e fazer os emplastros necessários para a recuperação do homem. Com o dinheiro que havia encontrado com Gensai, Suzula comprou mantimentos dos aldeões, que usou para manter os dois nos ultimos dias. Suzuka se preocupou com o que faria caso o dinheiro acabasse e Gensai ainda não tivesse despertado.
- Notas:
¹- Um mecanismo usado em jardins japoneses para afastar pássaros, javalis, cervos ou outros herbívoros que possam atacar a plantação. Consiste em um eixo de bambu colocado sob uma fonte de água. Com uma ponta cortada, de modo que a água possa entrar na câmara do bambu. Quando a água enche a câmara, a ponta fica pesada e desce, suspendendo a outra ponta do eixo de bambu. Quando ela desce, a água escorre pra fora da câmara por gravidade e a outra ponta cai, geralmente sobre pedra, produzindo um som oco que serve pra afastar animais. Mesmo mecanismo do Monjolo brasileiro, com a diferença que aqui era usado pra moer grãos.
²- Técnica de arranjo de flores
³- Uma das principais estradas de Kyoto, que ligava a capital imperial até a cidade de Edo, sede do Xogunato.