A silêncio não tinha fim.
Parecia à Nasri que já tinham se passado semanas que ela estava presa no interior daquela árvore. A humana estava fraca, mal sentia as pernas e já tinha se acostumado à dor nas costas. Os únicos sons que Nasri ouvia eram as vozes do Desertor das Árvores e de seus asseclas. A dor de cabeça que Nasri sentia ia e vinha constantemente, assim como as visões da massa disforme com dezenas de bocas. Apesar da dor vir a qualquer momento do dia, as visões acontecem apenas quando Nasri está dormindo, o que, na atual situação, não passa de poucas horas em que a humana consegue se desligar do mundo.
Inicialmente pareceu que o tempo em que Nasri passou dentro da árvore trouxe apenas dores e sofrimento, mas a humana, com o tempo que tinha todo para si, começou a notar que havia algo diferente dentro dela. O medo fez Nasri não notar isso antes, e desde que acordou com o rosto na neve até o momento em que tinha sido presa no carvalho, a mulher não tinha tido um momento para notar estas coisas. Nasri também percebeu que não sentia fome. Quando a seiva tinha ficado insuportável demais para se comer, Nasri tinha se entregado por completo mas, ao invés da fraqueza que imaginava lhe acometer, nada aconteceu. Nasri tinha a estranha sensação de que seu corpo estava sustentando a si mesmo.
Tudo pareceu muito estranho, mas Nasri se lembrou do que tinha acontecido quando os asseclas do Desertor tentaram prendê-la. Na hora em que aconteceu, Nasri não soube o que aconteceu, mas a mulher teve tempo para pensar sobre aquilo. Agora, Nasri tinha certeza de que a sua mente e a do homem, por aquele instante, estiveram conectadas. Talvez não da forma como quando um mago lê a mente de alguém, mas Nasri sabia que era isso o que tinha acontecido. E o mais assustador era que a força que derrubou o homem partiu de Nasri. A cabeça de Nasri começou a doer novamente. Mas a dor era cada vez menos intensa, mais curta... Algo estava mudado em Nasri, não havia como negar, e este processo ainda não tinha terminado.
Anahera acordou com a cabeça apoiada na janela da carroça. A feiticeira abriu e fechou a boca para afastar o gosto do sono, esfregou os olhos e esticou o corpo. O transporte em que a garota estava não era nem um pouco luxuoso, mas foi aquele que a carregou através do Anarouch, e por isso a falta de cortinas nas janelas ou por bancos almofadados passou desapercebida – na medida do possível, claro. Anahera viajou com um homem chamado Anuhl e sua família, a esposa Irri e um casal de filhos, Ezra e Adara. Irri e o marido eram pessoas amáveis, mas não conversavam muito, o rapaz ficou intimidado com a beleza de Anahera e mal falou com ela durante toda a viagem, mas a pequena Adara gostou das tatuagens da feiticeira e de sua roupa e a seguia sempre que Anuhl encontrava uma sombra para descansar e Anahera ia esticar as pernas, e isso fez com que a garota ficasse quase toda a viagem através do deserto sem dizer quase nada. Mas isso quase não era esforço, pois o calor sufocante do Anauroch tirava a vontade de falar de qualquer pessoa.
Agora, fora do deserto, Anahera sentiu falta do Anauroch, mesmo que por um breve momento. O frio era palpável, penetrando fundo nos ossos e fazendo o corpo todo da feiriceira tremer involuntáriamente. Uma manta escura de lã cobria o corpo de Anahera, mas aquilo não era suficiente para afastar o frio do Norte. Irri e seus filhos estavam melhor protegidos, com grossas roupas de lã e couro e Anahera teve certeza de que Anuhl estava com roupas ainda mais pesadas. Não era por acaso que eles estavam preparados para o frio. Desde que Obscura, uma a cidade do antigo reino de Netheril que se refugiou da destruição no Plano das Sombras voltou para Faerûn, Anarouch não era mais um lugar tão seguro para se viver. Não o era antes, mas as coisas tinham piorado muito com o surgimento da cidade, e Anuhl decidira vir com a família para as Fronteiras Prateadas. “Prefiro a guerra do que aquelas sombras”, o netherese disse numa das raras ocasiões em que conversou com Anahera, “Além disso, eu sempre ouvi que a Senhora Alustriel protege o seu povo dos orcs. No deserto nós não temos ninguém além de nós mesmos, e isso nem sempre é o suficiente”.
Anahera, ainda sonolenta, empurrou um pouco a madeira que cobria a janela e pode ver que eles já estavam em uma cidade e que ela estava coberta de neve, mas pela velocidade com que a carroça andava, as ruas eram pavimentadas e isso era uma boa notícia. Anahera olhou por mais algum tempo para fora e então soltou a madeira afim de bloquear o vento gelado que entrava pela janela. A garota olhou para Irri e seus filhos e achou curioso o fato de Adara estar ao lado de sua mãe, já que ela sempre se sentava ao lado da feiticeira. Anahera se arrumou no lugar, olhando para os três e notou uma expressão de dúvida em Ezra e sua mãe, e de divertida curiosidade em Adara. A feiticeira não entendeu o porque daquelas caras, e pensava nisso quando um ponto de luz desconhecido dentro da carroça lhe chamou a atenção. “Eles acenderam uma-”
Um globo de luz amarelado que flutuava no ar cortou os pensamentos de Anahera e fez a garota compreender as expressões de Irri e os dois pequenos. A esfera se moveu até ficar diante da feiticeira e sua luz ficou sensivelmente mais intensa, mas não mais forte que a luz de uma vela. Anahera reconheceu o pequeno globo de luz, era o mesmo que estivera em seu sonho. Isso levantou questões, mas a feiticeira não teve tempo de pensar nisso, pois Adara pulou de onde estava e se sentou ao lado de Anahera com os pequenos dedos gorduchos apontados para o globo de luz.
- Ele é seu amigo? - A pergunta estava tomada de excitação por parte da menina – Ele apareceu enquanto você dormia, do nada! Eu tava brincando de adivinhação com o Ezra e a bola apareceu em cima da minha cabeça!