Como anjo dum céu remasterizado, aquela beleza singular atravessou a porta automática do escritório e pousou, silenciosa qual pena, à ultima cadeira vazia.
Movia-se de forma gentil e delicada, quase como uma antiga gueixa. Maneiras tão contidas que, afora ser um magneto ao olhar, poderia ter passado sem alarme.
Com o resto do grupo, formando um trio de desconhecidos, chegara lá numa embarcação menor, mais ágil. Agradecera não ter precisado dizer palavra alguma, apenas emudecendo frente à rara paisagem. Nico nunca vira Hyperhub daquele ângulo. Poucos o fizeram.
De fato, aquela era apenas uma das muitas coisas que não conhecia. Sair era um privilégio e um risco pelo qual a maioria da população não passava, vivendo apenas no interior do enorme cercado.
Dali, das salgadas águas oceânicas, as altíssimas muralhas circundantes que haviam deixado para trás pareciam ainda mais irreais, assomando austeras naquele horizonte fabricado. Poderiam ser vistas do espaço?
Também chamada de Nodel-Axis, tratava-se da megalópole-estado mais importante daquele lado do Atlântico-Sul. Cercá-la fora uma tarefa tão temerária quanto necessária. A Selva Exterior era alien demais, hostil demais. Tempestades EMP, plantas modificadas expelindo esporos de tecnovírus metalcorrosivo, nuvens invisíveis de radiação etc. Isso afora as coisas que caçava intencionalmente sob as sombras. Uma natureza que só podia ser descrita como “maquinofóbica”, retomando à força a Terra pós-apocalipse.
Mas lá estava, para além da gigantesca barreira, cortando as ondas como a lâmina dum samurai urbano. Não que os mares fossem mais seguros para eles ou para os habitats aquáticos que sustentavam algumas esparsas agrupações menores. Não era, entretanto, para nenhuma delas que a lancha se dirigira.
O curioso iate-ilha à silhueta duma grande arraia branca, no qual se encontrava agora, era o ponto de encontro para reunião misteriosa que fora convocada por agentes noturnos. Num canto, um som neotribal era tocado ao vivo com maestria num instrumento personalizado. O vintage era sempre bem-vindo, lembrança de uma suposta unidade humana de um mundo de pré-fragmentação.
À mesa, um oloide simples, de discreta elegância, descansava estático acima dalguns papéis. Apesar de reconhecido como símbolo místico daqueles tempos, era tão “clean” em suas curvas negras que parecia o oposto de qualquer tradição “primitiva e irracional”.
Afora os outros convidados – dois rapazes que receberam a mesma proposta para “tratar de negócios importantes” –, havia um secretário, ou fosse lá o que fosse. Aguardava, igualmente, o término duma ligação da “patroa”. Usava uma máscara que lembrava uma caveira estilizada.
Não precisaram esperar muito até que um “perdão pela demora” viesse por detrás da grande poltrona cujo batente encobria a mulher que lá sentava. Ao virar-se, fitara demoradamente, com olhos vidrados, as figuras presentes. Havia algo de “dramático” naquele encarar, talvez por tratar-se de um arrojadíssimo terno encimado por um crânio negro. Não um que, como o outro, parecia saído dum escritório de design. Aquele lembrava algo arrancado dum ritual de magia.
- Perdoem-me por não estar presente – complementara confirmando o óbvio de tratar-se de um Avatar. Mas de quem?
Victoriana Absalonio era CEO da Proxima Nexus, do mercado de inovação tecnológica. Ou ao menos assim apresentara-se. O fato de ser uma Ghoul dizia muito dela. Ghouls estavam lá há mais de duzentos anos. Ghouls eram estéreis e nenhum novo era criado, fadados ao desaparecimento. Ghouls lideraram a reconstrução da sociedade. Ghouls tinham riqueza e vivência, estando para além da estupidez doutros gananciosos. Ghouls eram vistos com receio, pelas faces derretidas ou pelas maquinações que faziam.
- Espero que não se incomodem com minha aparência. A maioria acha Ghouls repulsivos, mas temos orgulho de quem somos. Nesse corpo substituto eu poderia ter uma face com essa, não? – dissera apontando para aquele rosto exoticamente invejável à frente – Mas não. Não estou aqui para agradar. Prefiro manter o coeficiente de horror.
O corpo-casulo da empresária ausente inclinou-se para frente, tocando o estranho enfeite de mesa, fazendo-o rolar pela superfície plana.
- O oloide balanceado desloca-se seamlessly, em transições suaves. Um fora do prumo cambaleia pelo caminho.
Queria ela dizer algo com aquilo? A frase tanto caberia na boca de gurus de autoajuda quanto de chefes da máfia. Fosse como fosse, passara a mirar o jovem programador, a ele dirigindo-se:
- Não sei se gosta de refletir sobre essas coisas, mas há uma sutileza na arte da programação da qual gosto muito. Imagine um programa desenhado, por exemplo, para melhorar a economia. Como beneficia e pune a todos sem distinção, é considerado neutro. Porém imagine que se desenvolva outro motor que leve em conta, não sei, a desigualdade. Pode-se continuar dizendo que o original era neutro, mas essa oposição pode ressaltar que ele é, na verdade, “anti-igualdade”, que, no fim, pune mais os pobres – e então riu, ou ao menos assim indicava o som vindo daquela boca de lábios ausentes – Não, não se preocupe. Não estou nem um pouco interessada em distribuição de renda. Queria apenas expor meu ponto. De que nenhuma tecnologia é inerentemente boa ou má. Muito menos neutra. Ela vai sempre reproduzir o mundo de quem a desenvolveu. Se você faz uma máquina para alongar a vida das pessoas você diz, numa voz silenciosa, que é melhor viver mais que menos. Eu mesma tenho minhas dúvidas quanto a isso... .
Com aquilo, levantou-se. Novamente dava as costas aos presentes, olhava pela janela envidraçada que servia-lhe de quadro.
Do cerco cinzento que envelopava os prédios a distância, separando-os das altas árvores dos ermos, destacava-se uma faixa mais clara: Edenloft, única abertura da cidade voltada para o oceano. Era um setor fechado, contando com uma praia particular, frequentado apenas pelas elites – de lá elas pouco saíam, como se num paraíso secreto apartado da ralé.
- Já me perguntaram se, alguma vez, coloquei algum código ou porta secretos que me permitissem posteriormente manipular algum programa que fiz. Disse que não... apesar de ser impossível a qualquer pessoa saber se digo ou não a verdade. Mas, se posso assim dizer, tenho mais interesse nesse delicado ofício de projetar o mundo no qual acredito através da minha produção. E, até que alguém apresente uma alternativa, tudo o que eu faço é “neutro” – novamente, era perceptível, ou teria sido só a impressão de, uma risada.
Do que exatamente falava era difícil discernir, mas talvez fosse apenas uma forma de quebrar o gelo inicial. Não que precisasse. Não estava lá pra fazer amizades.
- Bem, mas não foi para “filosofia de bar” que convidei pessoas com as capacidades de vocês. Podemos falar de negócios? Esse é Sétimo Otherjack, um dos meus advogados. É um prazer ter aqui Zipper Barlight, K. Peta e Nico Maverickson
- Prefiro Nico d'AIM, manifestara-se finalmente, num claro incômodo que contrastava com a face sem expressão.