Ano Zero. Dia Um. Ou ao menos assim poderia ser contado sob a precariedade daquele teto, uma vez que o mundo tal qual o conheciam findara naquela exata data. Para o bem ou para o mal.
“Isso é loucura! A gente vai morrer!”, bradara um irmão mutante qualquer, cerrando o punho do último de quatro braço que lhe sobrara contra aquela ideia temerária. “A gente vai morrer aqui, idiota!”, obtivera como resposta cuspida por uma voz rouca mal terminara a frase.
Noutra ponta, uma nova discussão: “Tudo o que construímos a vida toda tá aqui, nossas casas e tudo o que a fizemos com o nosso suor”. Uma rápida olhada revelava que, afora curiosos “blocos”, a maioria das acomodações era de barracos insalubres, improvisados com restos de metais enferrujados, lonas plásticas e outros cacarecos - lares dignos apenas para quem nem ao menos conhecia outra opção.
- Coisas. São só coisas...
- Ah!, cala sua boca, imbecil... – e assim prosseguia intensa a assembleia de partida, parte da população relutando em sair, parte clamando por ação.
Tratava-se de um enorme galpão subterrâneo que abrigava mais de 200 “pessoas”, todas entre o fim da adolescência e o da juventude. Todas dependuradas umas sobre as outras. Fora, apenas um deserto de pedras e areias vermelhas, fervente durante o dia e gélido à noite.
Abutres disformes e cactos venenosos enfeitavam macabramente a paisagem pontuada por restos de civilização, iguais a placas sinalizando morte por toda a parte.
A vantagem daquele lar abaixo do solo era a temperatura tender a manter-se constante, não só pelo estado de sombra permanente, mas pelo resfriamento promovido pela rocha. O ar, entretanto, era apenas porcamente renovado por um sistema falho, havendo nele um “ranço” qualquer misturando cheiro de mofo, suor, podre e banheiro. Ainda assim, era preferível ao clima exterior.
Era também escuro, apesar das saídas superiores abertas durante o dia. Na verdade, as áreas onde incidia maior quantidade de luz eram reservadas a pequenas plantações, mas o resto dependia do resto de claridade e de fogo – o que gerava o incômodo da fumaça.
O maior bem coletivo que possuíam era um antigo sistema de filtragem atmosférica e reciclagem de água, capaz de tratar e separar até a parte líquida de detritos sólidos. Como se dizia, bebia-se mijo e o resto da bosta alimentava as colheitas que conseguiam cultivar. Até os mortos passavam por esse processo, profanados para garantir a vida dos que ficavam.
Não era o suficiente, mas era ao menos algo para complementar a ração, mistura seca e de gosto horrível que o povo do passado havia deixado para trás em grandes quantidades, ninguém sabe bem o motivo. Mas expedições para se encontrar mais eram cada vez mais arriscadas e distantes, quando não infrutíferas.
Não se podia esquecer da câmara de descontaminação, única forma de livrarem a si e àquilo que encontravam dos efeitos nocivos da radiação.
Havia, de todo o modo, um equilíbrio delicado em jogo. Todo mundo ia morrer. Todo mundo. Uma hora ou outra. O que era “normal”. Mas ninguém ali tinha a promessa de um envelhecer tranquilo. E alma alguma deixaria legado, sem crianças nascidas de úteros inférteis fazia muito, muito tempo.
Não tinham outros parâmetros, então não era realmente possível definir o quão ruim era a Arca, também conhecida como “HangadeTestes05”, apesar de pouca gente ali conseguir ler os vários brasões onde via-se tal símbolo. Porém sentiam inveja, e algumas acomodações pareciam melhores, mais protegidas e mais privadas. Igualmente, eram fustigados pela dor da fome e dos males não tratados. Sem falar daquela provocada por explosões de violência que colocavam vizinho contra vizinho, não raramente alguém que se amava anteriormente. Todos lá eram uma grande família e, como tal, a convivência muitas vezes levava a conflitos por coisas grandes e pequenas. Acima de tudo, era evidente que, quanto menos comida e água, mais as coisas ficavam difíceis. E tudo estava efetivamente piorando.
Aquela máquina diante da qual se reuniam agora – “O Projeto”, como chamavam – era uma esperança e uma miragem sedutora. Prometia ser capaz de arrastar atrás de si outras estruturas sobre rodas. Alguns achavam que as coisas eram mais suportáveis sem sonhar, sem desejar o impossível. Outros, ao contrário, que só se valia a pena continuar se houvesse algo no horizonte para além de definhar em sofrimento.
- Quebrem essa porcaria e acabemos com isso! – gritara alguém, e os ânimos ameaçaram fugir ao controle. Paus e pedras contra uma lataria facilmente encontrariam carne e osso de quem tentasse impedir aquilo. Um massacre podia eclodir a qualquer momento. Mas a Anciã interviu.
- Crianças da Arca, acalmem-se! Sei que o momento é difícil, mas a desunião só nos colocará num caminho ainda pior.
A velha parecia mais idosa que o de costume. Abatida, doente, fraca. E os urubus percebiam isso. Um murmúrio sobre quem assumiria o comando após a passagem dela era ruminado pelos cantos. Aquelas mudanças todas eram drásticas demais, com tudo se transformando numa velocidade assustadora. Alguns viam ali uma brecha para se impor e estabelecer novas regras e relações de poder. Mas, por enquanto, Artêmis ainda era a “líder”, ou melhor, a “conselheira”, uma vez que nem sempre era “obedecida” por filhas e filhos de criação.
“Escutem”, clamara, ao que começara uma longa rememoração sobre o como os Antigos haviam legado aquele lugar, os estoques de ração, o filtro e o descontaminador. Além, como haviam visto, “O Projeto” – uma estranha fornalha gigante sobre rodas – finalmente, após anos de tentativas, fora posto em funcionamento. Era chegada a hora de partirem. O Éden esperava.
- Sim, quando morrermos – resmungara alguém ao lado de Priscila, mastigando uma lasca de madeira.
Mesmo entre quem havia aceitado tentar a sorte, havia reclamação. Entre elas, a questão das acomodações: desde sempre existira a divisão entre quem vivia “casas de luxo” e nos “casebres”, havendo certo status em viver nas estruturas de ferro – vagões – estacionados lá dentro. Isso porque incluíam camas, armários embutidos e portas. Mas agora tudo virara de pernas para o ar, uma vez que os espaços teriam de ser divididos não só com outras pessoas, mas com qualquer coisa útil que se conseguisse carregar.
- E você? Consegue ver algum futuro para isso? – questionara alguém a Izu, esperando obter algum conforto naquele momento de dúvida.
Não muito distante, um dos membros da "microgangue" de Heckyl reclamava das acomodações conseguidas. "É um cubículo, de quê? Dois metros por um e meio? Pro três pessoas?!?". Aquela seria a realidade de quase - quase - o comboio inteiro. Como um trem de passageiros, os quartos ser resumiam a uma beliche embutida na parede de um lado, como uma cama e um armário, igualmente fixos, do outro. Isso é, afora as gavetas sob as camas inferiores.
Por sorte, conseguiram um cubículo ao lado do outro, o que seria o suficiente para todos os membros atuais.
Era justo atrás de um desses móveis que Mutt, noutra parte da estrutura, encontrara um canto para esconder as coisas dele. Se tivesse sorte, conseguiria que os atuais "colegas de quarto" aceitassem trocar de lugar com alguém que ele confiasse mais.
No total, encaixe pós encaixe, a lendária serpente metálica era composta por uma locomotiva e dez outros vagões, cada um com funções definidas que iam de galpões de carga a banheiros e dormitórios. A melhor parte é que não precisava de trilhos, contentando-se com terenos razoavelmente planos - rodas poderosas, entretanto, eram capazes de se arriscar até por áreas mais acidentadas, com tanto que largas o suficiente para a passagem daquele monstro.
A questão principal era: rumo a quê?