Este conto em quatro partes é ambientado em Novera, cenário oficial do fórum. Conta a origem de um personagem baseado em D&D 5a edição.
PARTE I - Em busca do lobo perfeito
Eu sei, você acha que sou louco. Todo mundo acha. Vou te contar minha história; ou melhor, só o começo. Você vai continuar achando que sou louco, eu sei, mas vai ouvir do mesmo jeito! Você merece saber.
Ao nascer, recebi o nome de Arendyll Amastacia. Isso faz uns 100 anos… 106, pra ser exato. Vantagem de meio-elfo. Vocês humanos têm uma inveja danada das raças longevas, o que não deixa de ser engraçado. Afinal, pelos fantasmas em ruínas de castelos, vocês sabem que existe vida depois da morte. Por que tanto medo de mais uma mudança? Mas nem comecei e já estou divagando, ha ha ha…
Minha infância foi muito feliz! Meu pai era um ranger humano, igual a você, e minha mãe uma druida que adorava o deus da natureza e seus espíritos. Nasci e vivi numa pequena aldeia élfica chamada Niri, quase totalmente isolada na floresta mais setentrional de Elendi. Aprendi com meus pais a amar a natureza. Ele protegia a floresta contra os raros intrusos vindos do norte, nada além de um ou outro monstro desgarrado ou um caçador ocasional. Seu trabalho mais rotineiro era recolher animais doentes ou órfãos para serem cuidados por minha mãe, antes de voltarem ao ambiente natural.
Sempre tinha muitos bichinhos e plantas em nossa casa ensolarada, construída na copa de uma árvore imensa. De todos que foram cuidados, só um acabou virando nosso mascote, aquele que eu mais amei: Nairun, um lobo branco muito especial. A pelagem de tom prateado, olhos cor de safira, o porte garboso, davam a ele uma beleza hipnótica. E, mesmo sendo um lobo grande e forte, era mais manso e obediente que qualquer cão. Comentavam que ele devia ser uma dádiva do deus da natureza ou um espírito nascido do deus para manifestar materialmente a essência dos lobos, o lobo por excelência, o lobo perfeito. Minha mãe não se opunha aos comentários.
Numa manhã de primavera com muito sol, pouco depois de eu fazer 11 anos, desci a árvore para brincar com o Nairun, mas ele estava diferente. Não saía de dentro da casinha de jeito nenhum, por mais que eu chamasse. Levei comida, levei água, ele não queria nem saber. Minha mãe passou aquele dia muito atarefada com os preparativos para uma cerimônia religiosa que a aldeia fazia todos os anos naquela estação, mas prometeu que iria examinar o Nairun no final da tarde ou começo da noite. Passei o resto do dia observando os ninhos de pássaros em nossa árvore, estudando, desenhando… Às vezes, ia ver meu lobo, mas continuava na mesma.
No comecinho da noite, meu pai chegou em casa com uma expressão preocupada, perguntando pela minha mãe, mas ela ainda não tinha voltado do templo da aldeia. Ele perguntou sobre o meu dia e, quando eu descrevi como o Nairun andava esquisito, ele ficou sobressaltado. Não quis dizer o motivo, mas desceu comigo para ver o lobo. Só que o Nairun tinha fugido!
Ele ia sozinho para a floresta raras vezes, e só quando ouvia os uivos de outros lobos, mas não era o caso daquela vez. Eu quis ir procurar na mesma hora, mas meu pai disse que precisávamos esperar minha mãe, pois ela seria necessária. Para sorte dos meus nervos, ela chegou logo em seguida. Meu pai me mandou esperar um pouco porque precisava conversar com minha mãe, mas eu não resisti a ouvir atrás da porta do quarto. Meu pai contou sobre relatos de animais que estavam morrendo de uma doença cruel, que os fazia ficar sem comer, nem beber. Tinha ido até a floresta investigar e achou uma raposa morta bem na beira do rio, mas com sinais de desidratação e desnutrição.
Nem ouvi o final da conversa, de tão assustado e preocupado que fiquei! Desci até o pé da árvore, ansioso para que viessem logo. Partimos os três para a floresta sem dizer nada um ao outro, e eu gritava por Nairun. Elfos e meio-elfos enxergam bem à noite, mas levamos tochas para ajudar meu pai a encontrar os rastros. A escuridão atrasava o rastreamento, mas ele era bom no que fazia. Seguimos as pegadas até o vau do rio, e só paramos ao ver que havia um animal enorme deitado na margem, quase bloqueando o caminho pelo vau. Podia ser um urso pardo muito grande ou talvez um owlbear (não dava para ver a cabeça de onde estávamos). Chegamos perto com muito cuidado, o suficiente para minha mãe lançar uma magia druídica de apaziguamento de feras.
O bicho permaneceu inerte, apesar da respiração muito rápida e resfolegante, e nós o contornamos para passar. Era um owlbear mesmo. Talvez por achar aquela respiração anormal, minha mãe se deteve para observar um pouco mais. Ele estava com os olhos fechados e o bico aberto, babando horrores. Por um segundo, não mais que isso, as luzes de nossas tochas iluminaram aquela cabeça enorme. Foi o que bastou para a criatura maldita arregalar os olhos, dar um guincho estranho e, tão rápido que eu mal pude ver, rasgar a barriga da minha mãe com uma patada poderosa!
O sangue espirrou na minha cara! Larguei a tocha, levei as mãos à cabeça e gritei aterrorizado, gritei como nunca antes e nem depois. Meu pai já estava com a espada em punho quando o ataque aconteceu, mas dois passos adiante de nós, de costas, pois não esperava que o bicho fosse atacar depois da magia. Reagiu rápido o bastante para dar uma estocada na lateral da fera antes que ela me atacasse, e mais uma vez o sangue jorrou naquela noite de lua cheia. Meu pai já tinha vencido criaturas mais perigosas antes, mas o owlbear investiu contra ele como um touro enlouquecido, sem lhe dar tempo nem para um segundo ataque, nem de recuar para ganhar espaço.
Ah, até hoje me sinto mal quando lembro daquela noite! Meu pai recuou alguns passos para tentar manter distância e acabou entrando dentro do rio, que era bem raso ali por causa do vau. A besta entrou na água, meu pai largou a tocha e, com as duas mãos na espada, conseguiu cravar a lâmina bem fundo na garganta. O animal ainda deu mais dois ou três passos e, com um guincho sufocado e gorgolejante, tombou… Tombou em cima do meu pai!
Corri até lá na mesma hora. Um owlbear adulto pesa centenas de quilos, mas creio que não haveria risco se meu pai não tivesse ficado com a cabeça embaixo d’água. Tentei empurrar aquele corpanzil para o lado, já sabendo que nada conseguiria. Vi uma das mãos do meu pai emergir, desesperada. Eu a peguei e puxei com toda a força, sem resultado. Mergulhei a cabeça na água pensando em soprar-lhe ar dentro da boca. Tentei muito, mas aquelas carnes gordas, cobertas de penas e pêlos odiosos, não permitiam que eu o alcançasse. Percebi que já era tarde demais quando a mão dele afrouxou… Logo ele, tão dedicado à vida selvagem e tão admirado pela bravura, teve essa morte inglória: afogado em meio metro d’água após matar um animal que estava fora de si.
Corri então até minha mãe agonizante. Oh, as garras tinham aberto quatro rasgos no ventre, por onde as vísceras saíam! Ela estertorava, revirava os olhos, segurava os próprios intestinos com as mãos, e havia sangue, muito sangue! Suas últimas palavras: “por que não funcionou?”. Eu odiei a criatura, gritei para a noite estrelada, chorei por meus pais… E voltei para a aldeia sem o Nairun.